Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Ocorre-me
o que aprendi há muitos anos. Páscoa significa passagem: passagem de um tempo
de trevas para outro de luzes, isto muito antes de ser considerada a principal
festa da cristandade. Na cultura judaico-cristã, a Páscoa assinala a libertação
de um povo ocorrida há mais de três mil anos.
Este
é o período do ano em que os cristãos são chamados a despirem-se de complexos e
a saberem ser insubmissos e incómodos, a recusarem a escravidão, apostando na
transformação criadora e vivificante das pessoas, das suas estruturas sociais,
políticas e religiosas, a combaterem fechamentos humanos. É um chamamento
oportuno que todos podemos e devemos abraçar.
Há
cinco anos que vivemos em penosa austeridade - uma espécie de cativeiro que nos
vem privando de esperança no futuro. Sentimos necessidade de Páscoa, de
libertação de múltiplas opressões, violências e injustiças. É preciso ação
solidária com os muitos que gritam pela passagem a horizontes de uma vida nova.
Libertação
de ideologias e de políticas sufocantes que nada propõem senão cortes em
direitos sociais e humanos e empobrecimento para pagar dívidas que não param de
crescer. Libertação de discursos políticos mentirosos que se alimentam de
sucessos propagandísticos que só não vemos porque estão sempre no virar da esquina.
Libertação das imposições egoístas dos países mais poderosos. Libertação dos
interesses poderosos de uma ínfima minoria que se desligou do comum dos mortais
para viver em nenhum lado, entre paraísos fiscais e praias tropicais.
Libertação de um capitalismo que asfixia os povos, transformando tudo (ou quase
tudo) em fonte de capital, de lucro e de consumo.
Até
as festas, grande parte delas de caráter religioso, como a Páscoa ou o Natal, o
Dia da Mãe, ou o Dia da Criança, são tomadas apenas como dias de um consumo
maior. Sem abdicarmos de viver certas dimensões de prazer que podemos e devemos
usufruir, há que repor, na nossa vida individual e coletiva, sentidos originais
e humanos nas festas que comemoramos.
Com
as possibilidades de produção e de distribuição de riqueza hoje existentes, a
pobreza é ignóbil escravidão: os pobres têm o direito à passagem para uma vida
digna e todos temos a obrigação de nos indignarmos ativamente perante a
pobreza, as injustiças e as humilhações. Não podemos continuar submissos a
políticas que entre 2008 e 2015 reduziram a população ativa em mais de 600 mil
pessoas, que provocam uma taxa de desemprego oficial de 14,1%, mas muitas mais
centenas de milhares dos portugueses em "desemprego oculto", de
acordo com as categorias (catalogação) do INE, de organismos europeus e da OIT.
Tomemos
as simbologias da Páscoa e incitemos os jovens a não abdicarem de sonhar, de
exigirem condições para uma vida feliz, pessoal e em família; a escorraçarem os
vendilhões das precariedades e inseguranças, das ruturas entre gerações, da
"inevitabilidade" dos baixos salários.
Temos
de construir passagem para uma sociedade que cumpra as promessas da democracia.
Em que governem não os assalariados das elites cosmopolitas ao serviço da
minoria que de tudo se apropria, mas pessoas que se dispõem a contribuir, por
imperativo cívico durante um período das suas vidas, para assegurar a boa
governação do que é de todos. Em que todos tenham direito ao trabalho e o
trabalho não seja uma corveia indigna. Em que o dinheiro não seja condição para
aceder aos direitos sociais fundamentais a que todos devem ter direito.
Temos
de nos libertar das escuridões de hoje. Dos "fanatismos ideológicos"
e dos conflitos gerados pelos interesses de um sistema económico e financeiro cego
e tirano, sustentado pela idolatria do dinheiro, sistema que se implantou e vai
medrando debaixo da capa de falsos pragmatismos.
Passemos
a ser mais incómodos e insubmissos nas nossas vidas, nas organizações, nos
movimentos sociais, culturais e religiosos, nas universidades, nos partidos
políticos. A esperança nasce da resistência às opressões e humilhações, da
disponibilidade e empenho em transformar a sociedade harmonizando os interesses
dos seres humanos e a relação destes com a natureza, e não abdicando do novo
que representa uma sociedade sem exploração e solidária.
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