quinta-feira, 11 de junho de 2015

Cabo Verde. POPULISMO PUNITIVO



Expresso das Ilhas (cv), editorial

A pena máxima em Cabo Verde vai aumentar de 25 para 30 anos de prisão. O governo já tem a autorização da Assembleia Nacional para fazer a revisão do Código Penal. A proposta de autorização legislativa foi aprovada pela unanimidade dos deputados presentes na sequência de uma discussão a que foi alocado um tempo que não ultrapassou as 2 horas. A principal alteração feita ao pedido de autorização legislativa foi baixar a pena máxima proposta de 35 para 30 anos.

Com essa decisão Cabo Verde rompeu com uma tradição quanto ao regime de penas que vem do século XIX e do tempo colonial. Em 1884, Portugal foi o primeiro país do mundo a acabar com a prisão perpétua e a adoptar a pena máxima de 25 anos. A Constituição de 1992 consagrou esse ganho civilizacional e proibiu explicitamente a prisão perpétua (artigo 33º). O Código Penal aprovado em 2003 confirmou a pena máxima em 25 anos de prisão. Uma alteração desse regime 12 anos depois deveria merecer justificação fundamentada e discussão aprofundada. Parece que não se conseguiu fazer nem uma, nem outra.

Apesar de na nota justificativa que acompanhou a proposta se reconhecer que “não é a severidade das penas que afasta as pessoas dos ínvios caminhos da criminalidade mas sim a certeza da condenação” aumenta-se, mesmo assim, a pena mais 10 anos.  Pergunta-se porquê? A resposta na nota referida é que “isso vai ao encontro das preocupações das pessoas”. Ou seja, em vez de focalizar os esforços em investigar e conseguir a condenação dos criminosos, fica-se pelo mais fácil mas menos eficaz e também custoso expediente de aumentar a pena. Posto de outra forma: muda-se um regime de penas centenário simplesmente por razões de política que alguns classificariam de populismo punitivo?

Há algum tempo que se vinha discutindo uma revisão do Código Penal mas ninguém pensava em mexer na pena máxima. O assunto só veio à tona em Janeiro deste ano, na sequência do atentado ao filho do Primeiro-ministro e meses após a tentativa de assassinato da mãe de uma inspectora da PJ. Foi a resposta mediática encontrada para o sentimento generalizado de insegurança da população. Todos desataram a discutir a questão e provavelmente outras discussões mais pertinentes para a prevenção e combate à criminalidade e às incivilidades múltiplas no país ficaram secundarizadas no processo.

Nos meses que se seguiram, a proposta de aumento da pena máxima não conseguiu muitos apoiantes fora do círculo governamental. O Presidente da República pronunciou-se contra em várias ocasiões. Numa das suas intervenções disse que «Os estudos indicam que não é com base na severidade das penas que se resolve o problema, mas sim com a criação da capacidade de investigação para descobrir os suspeitos, julgá-los em tempo adequado e aplicar uma pena justa. É assim que a sociedade funciona com tranquilidade».

Recentemente, em sede da Comissão Especializada dos Assuntos Jurídicos e Constitucionais, foram ouvidas várias entidades ligadas à Justiça sobre a matéria. O Provedor da Justiça e a Bastonária da Ordem dos Advogados declaram-se contra a proposta de revisão da pena máxima. O próprio Procurador-Geral da República a quem cabe dirigir a execução da política criminal diz que só aumentar a pena não chega e que a resposta à “percepção de que as pessoas saem demasiado depressa das prisões” poderá passar pelo cumprimento efectivo das penas.

É tentador aumentar penas para passar uma mensagem de combate firme contra a criminalidade. Na realidade não passa de um efeito mediático dirigido para aumentar a sensação de segurança dos cidadãos. Para muitos especialistas do Direito Penal o aumento não tem nenhuma eficácia nem nenhuma utilidade porque não servirá para reduzir o número de delitos. Países como os Estados Unidos foram por essa via punitiva: não conseguiram diminuir o crime mas criaram um problema terrível com o aumento da população prisional e da violência nas prisões. Estudos recentes citados neste jornal (nº 710) mostram que depois de uma certa idade a capacidade de violência diminui consideravelmente. Manter as pessoas presas por mais de vinte ou vinte e cinco anos anos não traz qualquer ganho para a pessoa, para o sistema prisional ou para a sociedade. A eficácia do sistema de justiça fica diminuído porque só consegue punir mas não proporciona a reeducação nem incarna a possibilidade de reinserção social.

É evidente que as duas horas no Parlamento foram insuficientes para se debater adequadamente a revisão do Código Penal tendo em conta as suas implicações e a necessidade que todos vêem em se ter leis funcionais que resolvam os problemas com que a sociedade se depara. Aprovar nessas condições é quase como passar um cheque em branco ao governo. Considerando as reservas manifestadas por várias entidades da área da justiça e alguma preocupação vinda da sociedade civil seria provavelmente proveitoso que o Parlamento chamasse a si a ratificação do decreto legislativo que o governo vai aprovar ao abrigo do artigo 183 da Constituição. Uma oportunidade para se aplicar um dos poderes do Parlamento na fiscalização do governo adquiridos na última revisão constitucional de 2010. A revisão do Código Penal pela sua importância devia voltar outra vez ao Parlamento. Fundamental manter o elevado nível grau de consenso na sua alteração de que beneficiou o primeiro Código Penal.

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