terça-feira, 16 de junho de 2015

OVERDOSE DE PORTUGAL



Miguel Guedes – Jornal de Notícias, opinião

O ranking do presidente é claro. Cavaco Silva condecora Teixeira dos Santos no dia 10 de Junho, secundarizando o primado da política em relação ao poder financeiro e relegando a cultura para o lugar menor para a qual talvez pense que deva estar originalmente desenhada. A presença portuguesa nos rankings do que quer que seja continua a presentear-nos com lugares tão fatais como o destino. A periferia marítima e ocidental à escala europeia nunca foi trabalhada como uma vantagem competitiva pelos nossos responsáveis políticos, os mesmos que não conseguem fazer de um país tão pequeno em tamanho um grande e simétrico país em dimensão (basta ver a forma como as assimetrias regionais são "combatidas" com o reforço do centralismo pelas mais recentes decisões políticas e económicas). Os rankings são, por sistema, o reforço da nota, a conclusão em números ou a síntese que não desmente. A nós, muito por culpa de quem colocou Portugal com pulseira electrónica controlada pelo carcereiro, venha a cauda da Europa e o meio do Mundo, a permanência na liga de honra da porta dos fundos onde, quase invariavelmente, revezamos os piores lugares pelos lugares piores.

Olhemos uma honrosa excepção, quase inexplicável face aos nossos brandos costumes. Há dias, o "Washington Post" explicava em forma de título: "Porque dificilmente alguém morre de overdose em Portugal". Confere-se o ranking do Centro Europeu de Monitorização das Drogas e da Toxicodependência e somos vice-reis na tabela com baixíssima média de mortes provocada por overdose de drogas entre os 15 e os 64 anos. O caminho para os bons números fez-se pela coragem de tomar decisões políticas que foram, durante anos, duramente criticadas por diversos países e organismos defensores acérrimos do proibicionismo. Não sendo a coragem um valor em si, já a vantagem de ter voz própria e de experimentar fazer diferente é uma virtude e (re)compensa.

Em Portugal, a descriminalização do consumo de todas as drogas (em 2011) fez a diferença, permitindo recentrar a questão das drogas mais perigosas e aditivas no campo da saúde pública e da resposta integrada de valências médicas e sociais. O número de mortes diminuiu, o consumo de heroína e cocaína acompanhou a tendência, a prevalência do uso de drogas em jovens adultos e os casos de sida na população consumidora diminuíram. Ainda que a descriminalização não tenha sido a varinha mágica que tudo transforma, caiu por terra a ideia de que menor repressão e punição poderiam desencadear um fenómeno imparável de crescimento e uma espiral de consumo. Até o aumento da utilização de canábis vem comprovar a tese de que a espiral não existe quando as pessoas são tratadas com respostas adequadas e com profissionais à altura. A não ser que se invente uma nova teoria, a da espiral descendente, na qual os consumidores "hard" suavizariam os seus consumos optando pela canábis. A opção pela coragem venceu e João Goulão, o director-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e das Dependências (SICAD), agora com mandato para cinco anos depois de dois anos a título provisório, é um dos principais responsáveis.

Como no momento de resistência - aquando da destruição do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), em 2012, que parecia ser o algoz do que de bom havia sido feito nas políticas de toxicodependência em Portugal - cabe a João Goulão dar novos e decisivos passos, nomeadamente, abrindo a porta à legalização da canábis (tratando diferentemente o que é diverso e promovendo a diferenciação de tratamento entre a canábis "natural" e "sintética") e reiterando a sua vontade de avançar com as históricas salas de chuto, acompanhadas por profissionais de saúde, apoio social, higiene e segurança, reduzindo riscos e erradicando os piores consumos e utilizações. É necessária companhia, obviamente. A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, recentemente defensora da legalização, foi pronta e publicamente "repreendida" por Pedro Passos Coelho. Hoje e como sempre, falta coragem política para defender opções que não aquelas que sejam impostas e importadas, ainda que se revelem danosas, ultrapassadas e falidas. Tal como reagiu com a troika, eis como reage às novas políticas de combate à ferida societária da toxicodependência: falta ao primeiro-ministro uma overdose de Portugal.

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