Poder
global crescente de Pequim pode livrar região da dependência secular
diante de Washington. Mas falta projeto próprio, que não signifique mera
troca de patrões
Alfredo
Serrano Mancilla, na Alai – Outras Palavras - Tradução Inês
Castilho
Muito
se escreveu no século XXI sobre o papel da República Popular da China no mundo.
Contudo, as agências norte-americanas de classificação de risco não a
enxergam, ao fazer avaliações para muitos países na América Latina. Na mesma
linha estão organismos internacionais, com a liderança do Fundo Monetário
Internacional, que encobrem as relações do gigante asiático com a região em
assuntos comerciais, financeiros, tecnológicos, energéticos e de investimentos.
Tanto uns como outros vêm proclamando que Argentina e Venezuela, por exemplo,
padecem de um preocupante estrangulamento financeiro externo; ou que estão em
plena insolvência, sem recursos para o pagamento de credores internacionais.
Essa teoria se afirmaria se deixássemos fora do mapa mundi tudo o que a China
representa, tanto no terreno geopolítico como geoeconomicamente. Pois não
existe passe de mágica que possa fazer desaparecer os 1,3 bilhão de chineses
que habitam o país mais povoado do planeta. Tampouco é possível passar por cima
do fato de que hoje a China representa 16,5% da economia mundial (frente a
16,3% dos EUA); ou que o Banco do Povo da China possui quase quatro bilhões de
dólares em reservas internacionais, e que o yuan se conterveu consequentemente
na sétima divisa mais usada para pagamentos internacionais.
O
yuan como contrapeso ao dólar
Apesar
de tudo isso, a China só tem 3,81% dos votos na direção do FMI, muito longe do
que ela realmente representa no contexto econômico mundial. O FMI não tem
regras democráticas, nem que respondam à potência econômica, porque não permite
que Pequim possa ampliar sua participação para alcançar ao menos o mesmo
poder de veto que têm hoje os Estados Unidos (que participam com 16,74%). Em
resposta, a China acaba de abrir uma nova instituição financeira, o Banco
Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), ao qual já aderiram uns 57
países (além dos BRICS, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Holanda,
Austrália, Espanha, Coreia do Sul, Israel). O Consenso de Pequim, como
certos autores o chamam, é uma realidade a favor de uma nova diplomacia
financeira.
A
China continua aumentando seus investimentos diretos no exterior: em média, 200
bilhões de dólares anuais; embora menos que os Estados Unidos, que investem 367
bilhões anualmente, mas cada vez mais em seus calcanhares.
Pequim situou-se no centro de uma gravitação econômica mundial
alternativa, o que obriga os Estados Unidos a abandonarem, pouco a pouco, sua
hegemonia unipolar. Este novo polo foi capaz, além disso, de estabelecer fortes
laços com o resto dos blocos geoeconômicos, com relações muito fortes entre si,
não unicamente comerciais, mas que abarcam outras dimensões, também políticas.
China,
a nova aliada
Embora
sob o protesto dos poderes econômicos tradicionais, a China é um parceiro
estratégico real e muito pró-ativo para a América Latina, na nova era global.
Desde o início do século XXI, ela conseguiu multiplicar por vinte o volume de
seu comércio bilateral com os países que formam a Celac (Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos). Na cúpula do bloco, no início de 2015,
comprometeu-se a investir na América Latina nos próximos dez anos um total de
250 bilhões de dólares — uma média de 25 bilhões anuais, muito acima dos 10
bilhões que mantinha em média nos anos anteriores a 2010.
Esses
números não se referem a comércio intra-regional nem a financiamento
tradicional, mas a investimentos em setores chaves (infraestrutura, indústria,
tecnologia, energia, comunicação). Neste âmbito, o potencial é muito grande,
porque atualmente só 4,1% dos investimentos diretos das empresas chinesas no
exterior dirigem-se à América Latina. O valor comprometido para a próxima
década é um salto quantitativo e qualitativo. Some-se a isso que o próprio
presidente chinês, Xi Jinping, incentivou um esforço para duplicar
o volume de comércio bilateral para até 500 bilhões de dólares, ao longo
dos próximos dez anos.
São
números nada desprezíveis, num momento de transição geoeconômica em que se
disputa o sentido da nova ordem econômica mundial. A América Latina
mantém com o gigante da Ásia uma relação privilegiada, que não deve
converter-se em efeito bumerangue. No atual processo de mudança de época, a
China é um aliado capaz de facilitar a nova reinserção econômica soberana
e estratégica no sistema econômico — sempre e quando isso não signifique ser um
aliado-possessivo. Quer dizer, a América Latina precisa da China como
parceiro, não como patrão.
Eis
aqui a grande pergunta do milhão. Nestes anos, a China pode ser
uma alternativa real para que a América Latina sustente o ritmo de
crescimento necessário para colocar em prática políticas públicas a favor das
maiorias. Muitos críticos de uma suposta neodependência em relação a
Pequim ignoram que não há opção efetiva de curto prazo, para
manter crescimento redistributivo, se em aliança com quem lidera a
nova era econômica. É ingênuo acreditar que, partindo de onde estava, com
economias golpeadas e endividamento social e financeiro, seria pensar
em transformações estruturais sem superar as tensões próprias de uma conjuntura
adversa.
Cada
vez é mais comum, entre o pensamento não-convencional, pensar em longo prazo,
evitando limitar-se ao curto prazo para resolver aquilo que afeta
negativamente a maioria dos cidadãos. O assunto China precisa ser
analisado e problematizado a partir dessa perspectiva econômica, social e
política complexa e real, desde essa dialética entre o que é tático e o que é
estratégico, entre as respostas de natureza circunstancial e as mudanças
estruturais. É irresponsável criticar os novos laços entre a América Latina à
China sem avaliar quais os verdadeiros desafios estratégicos do novo
cenário econômico, naquilo que constitui a vida cotidiana das maiorias.
O
Consenso Bolivariano da América Latina
Mas
isso não pode e não deve significar que o futuro, que está em disputa e vai ser
decidido nos próximos anos, continue no mesmo caminho do passado recente. Surgirão múltiplos
desafios econômicos para estabelecer uma relação virtuosa. A América
Latina precisa sair de vez do Consenso de Washington, sem cair nas redes
de um possível Consenso de Pequim. Ainda que a nova diplomacia financeira chinesa
seja menos invasiva do que foi a diplomacia financeira made em USA, o
objetivo para a América Latina é constituir-se sob seu próprio consenso, no
qual instituições como a Celac ou Unasul tenham firmeza e capacidade real para
reinserir-se no mundo de forma emancipada.
A
inserção do BRICS no mundo precisa passar, necessariamente, pela
inserção latino-americana no mundo. Um Banco do Sul precisa ser a
instância adequada para que a América Latina dialogue com o Banco de
Desenvolvimento dos Brics ou com o BAII. Por exemplo, uma agência de
qualificação de risco, como instituição pública e latino-americana, deveria ser
a encarregada de avaliar a dívida pública em cada país da região, a partir de
convênios com as novas agências econômicas chinesa ou russa — mas sem
submeter-se a elas, como a região tem feito até agora com Fitch, Moodys ou
Standard & Poors.
O
sistema de arbitragem que se está sendo criado na Unasul deve ser a
forma adequada para que a região se relacione com os investimento
estrangeiros diretos que venham da China. Deve também ser discutida a
distribuição do valor agregado gerado a partir das novas relações de integração
produtiva entre China e América Latina. As condições de transferência de
tecnologia e propriedade intelectual são outros elementos cruciais para repensar
que tipo de relações com a China são as mais úteis para que a América Latina
continue caminhando numa trilha de mudança a favor das maiorias sociais.
Diz
um provérbio chinês, justamente, que “o fogo é fundamental para cozinhar, mas
pode também acabar queimando a cozinha”. Neste caso, a América Latina necessita
da China (e vice-versa, ainda que não na mesma proporção); mas a virtude reside
em que essa necessidade não venha a se constituir numa limitação infinita para
obter a segunda e definitiva independência da região. Na atual disputa
geoeconômica mundial, não existem ilhas Robinson Crusoe nas quais se possa
esconder ou asilar; o ponto de bifurcação está colocado entre a subordinação
aos EUA e a inserção nos BRICS. A primeira via já tem o seu próprio currículo;
a segunda ainda tem perguntas a ser feitas. Sua condição necessária não elimina
os riscos que pode causar quanto a uma possível desaceleração ou impedimento de
inserção regional soberana no mundo. Trata-se de avaliar as consequências desta
nova paisagem geopolítica em favor da América Latina.
A
chave será construir uma relação capaz de aproveitar o vento a favor, evitando
que ele acabe fagocitando o processo de mudança regional que vinha se
produzindo. Abre-se um cenário geopolítico novo e melhor, que exige, por sua
vez, rediscutir e atualizar taticamente uma nova política econômica interna e
externa, para não perder jamais o horizonte estratégico traçado a partir
do Sul. Isso evitará os riscos de cair nas redes sedutoras de qualquer Outro
Norte, se este vier a se produzir.
Mais
do que nunca, é o momento para a América Latina latinoamericanizar
integralmente a necessária relação com a China — mas de igual para igual, sem
sentimento de inferioridade, com soberania e sem neodependência. Embora
necessária, que seja apenas como condição temporária para alcançar a
irreversibilidade deste processo de mudança, em sintonia com a continuidade do
avanço em tudo o que falta conquistar.
Sem comentários:
Enviar um comentário