Autoridades
húngaras, que há meses convivem com o afluxo migratório tanto da Síria como do
Afeganistão, tentam distorcer as regras do Tratado de Dublin em favor próprio.
No impasse, quem mais sofre são os migrantes.
Virando
uma esquina próxima à estação ferroviária Keleti de Budapeste, há uma pequena
praça gramada que ganhou o apelido "Parque Afegão". Boa parte dos
migrantes que viviam ao ar livre, em torno da estação, receberam finalmente a
permissão para deixar a Hungria. No entanto, alguns grupos, na maioria
masculinos, ainda estão instalados sobre os colchonetes dolorosamente finos,
envoltos em cobertores, alguns em barracas. Uma fileira de toaletes portáteis
ao longo de um dos lados da praça é a única instalação sanitária de que
dispõem.
Quase
todos os sírios se foram, ao saber das promessas de asilo feitas pela chanceler
federal alemã, Angela Merkel. Mas muitos afegãos permanecem, na incerteza de se
valerá a pena fazer todo o caminho até a Alemanha, somente para serem enviados
de volta nos termos do Tratado de Dublin.
"Nós
dissemos para eles: 'Por favor, vão, é no interesse de vocês", afirma
Zsuszanna Zsohar, que faz parte da Migration Aid, uma organização de
voluntários fundada na Hungria há apenas dois meses. "Mas eles não sabem o
que fazer. É claro que estão se arriscando a serem mandados de volta."
Alguns
migrantes do Afeganistão estão simplesmente cansados e decidiram fazer uma
pausa de alguns dias em Budapeste. É o caso de Umar, de 15 anos, que passou
dois meses caminhando até a Hungria, através de Irã, Turquia e Bulgária.
"Nas
montanhas do Irã não havia casas, não tinha nada, às vezes não tinha comida por
quatro ou cinco dias", conta.
Ainda
assim, ele resolveu enfrentar a arriscada odisseia. No Afeganistão não havia
vida para ele, depois de a escola que o presidente mandara construir para sua
comunidade ser detonada pelos talibãs.
Crise
inegável
A
crise migratória que dominou as manchetes europeias durante uma semana já tomou
conta da Hungria dois meses atrás. Durante semanas, os habitantes da capital
que passavam por Keleti deparavam com algumas dezenas, às vezes até cem
refugiados vagando ou dormindo no chão da estação.
Para
Marc Speer, colaborador da ONG Border Monitoring, sediada em Budapeste, há dois
motivos para a catástrofe humanitária dos refugiados ter se desencadeado no fim
de agosto.
"Por
um lado, simplesmente veio muito mais gente. Mais ou menos um mês atrás, umas
1.500 pessoas atravessavam a fronteira diariamente; atualmente esse número
chega a 2.500, até 3 mil. E outro fator é que menos pessoas saíram da
Hungria", explica.
A
flutuação usual, com os migrantes permanecendo por alguns dias, até encontrarem
contrabandistas dispostos a transportá-los à nova destinação, foi abruptamente
sustada pela tragédia
do fim de agostona Áustria, em que os cadáveres de 71 refugiados foram
encontrados no interior de um caminhão.
"Depois
desse desastre, esse caminho ficou bloqueado para muitos, porque a Áustria
acirrou os controles de fronteira, e os traficantes de pessoas suspenderam suas
atividades", comenta Speer. "E aí, é claro, foi proibido eles pegarem
os trens. Foi isso que gerou esta situação."
Farsa
europeia
Do
ponto de vista dos grupos húngaros de assistência aos migrantes, o caos que se
desenrolou na última semana em Budapeste, Viena e Munique é apenas uma versão
em grande escala e concentrada da farsa e autoilusão que durante anos tem
marcado a política migratória da União Europeia.
Um
voluntário do grupo Migszol, de solidariedade aos migrantes, atuante na estação
Keleti, ilustrou bem a esquizofrenia da atual postura de Bruxelas para com os
refugiados. Ele acabava de voltar de Röszke, a central de acolhimento húngara
na fronteira com a Sérvia, onde tirou fotos das vans pertencentes à agência de
gestão de fronteiras da UE, Frontex, portando números de placa holandeses.
"Então cercas são contra os valores europeus, mas a Frontex não?",
indaga o ativista.
Até
agora, a política da Hungria para os recém-chegados a Röszke vinha sendo tirar
suas impressões digitais, cadastrá-los e entregar-lhes um passe para os trens,
dizendo-lhes para encontrarem sozinhos o campo de refugiados a que tenham sido
designados. Como muitos já decidiram que querem ir para a Áustria ou a
Alemanha, eles ignoram as instruções, indo direto para Keleti.
No
entanto, segundo Zsuszanna Zsohar, isso acabou desde o último fim de semana,
pois aparentemente as autoridades húngaras decidiram reter os recém-chegados em
Röszke. "Ainda há muita gente vindo para a Hungria, entre 1.800 e 2 mil, a
cada dia, mas para onde os estão levando, eu não sei." Na noite de domingo
chegaram as notícias de que cerca de mil refugiados tinham partido numa marcha
de 250 quilômetros até Budapeste.
Maquinações
de Budapeste
Tem
havido muita especulação sobre se o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban,
não teria deliberadamente criado o atual congestionamento migratório, a fim de
forçar seu ponto de vista a Bruxelas. Entretanto, diz Marc Speer, isso não é
tudo.
"Tenho
certeza de que, nos bastidores, a Alemanha e a Áustria fizeram pressão para que
não se permitisse às pessoas prosseguir viagem", afirma.
Quando
a tragédia na Áustria e a política das autoridades húngaras vieram à tona, ela
se viram compelidas a providenciar ônibus especiais para o transporte até a
fronteira austríaca. No entanto, como concordaram Merkel e Orban num telefonema
na noite do sábado, essa era uma "solução emergencial", uma exceção
humanitária à regra de Dublin.
Quaisquer
que sejam as maquinações em nível europeu, é um segredo público que nos últimos
anos Budapeste tem tacitamente ignorado as regras do Tratado de Dublin,
manipulando sua burocracia e sistema de seguridade social a fim de dissuadir os
requerentes de asilo de ficar e incentivá-los a seguirem em direção ao norte.
Para
os migrantes, a única chance de permanecer na Hungria é assinar um
"contrato de integração". Em troca de ter reconhecido seu status de
refugiados, eles devem se apresentar a uma autoridade de "assistência
familiar" uma vez por semana, durante seis meses, e mensalmente pelos
próximos dois anos. Na prática, porém, muito poucos optam por esse caminho.
"O
requerimento de asilo é, de fato, um visto de trânsito", explica Speer.
"E os gregos e macedônios estão fazendo exatamente o mesmo."
Ben
Knight, de Budapeste (av) – Deutsche Welle
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