sexta-feira, 23 de outubro de 2015

O PROCESSO DOS 17 E A CRIMINALIZAÇÃO DA SANDUÍCHE EM ANGOLA



Rui Verde* – Maka Angola, opinião

Há um dito no direito criminal inglês segundo o qual até uma sanduíche pode ser acusada. Ao ler a Pronúncia do Processo n.º 125-A/15 referente a Domingos Cruz, Albano Bingobingo, Sedrick de Carvalho e a outros 16 cidadãos (entre os quais Luaty Beirão, de 33 anos, que no documento surge rejuvenescido, com 19 anos!), fica-se com a sensação de que uma sanduíche foi transformada em crime.

Tentemos, no entanto, fazer um exercício: consideremos que a Pronúncia é um documento jurídico redigido por pessoas que sabem de direito e que dominam as suas ferramentas.

Vamos então analisar a Pronúncia do ponto de vista técnico, tentando perceber se é possível chegar a alguma conclusão legal, ou se tudo é manifestamente uma charada sem pés nem cabeça.

Essencialmente, estes 17 jovens vêm pronunciados pelo crime de actos preparatórios. Uma nota prévia para anotar que actos preparatórios não constituem crime, mas sim uma forma de crime, pelo que haverá aqui um lapso. Isto quer dizer que o acto preparatório tem que estar associado a qualquer finalidade criminal, pois por si só não quer dizer nada. Por exemplo, no crime de homicídio, a morte é a consumação do crime (uma forma), se se tenta matar mas a arma encrava há tentativa (outra forma) e a compra da arma é o acto preparatório (outra forma). Logo, um acto preparatório em si mesmo não é nada, só se tiver ligação a um crime que se queira efectivamente cometer.

Interessa saber, afinal, que actos preparatórios foram esses que geraram a necessidade de punição. A pronúncia enumera três:

Primeiro, a formação de um complô para destituir e substituir os titulares de órgãos de soberania do Estado angolano. Segundo, a elaboração de um programa de formação denominado “Curso de activismo sobre as ferramentas para destruir o Ditador e evitar nova Ditadura”; e, finalmente,  a frequência do referido curso.

Mas tentando subsumir os factos a esses actos preparatórios surgem dificuldades intransponíveis.

Sobre a formação de complô afirma-se que este foi planeado num jardim defronte da administração municipal de Viana. Será complô uma reunião num jardim em frente ao órgão público de município? Esta afirmação não tem qualquer credibilidade.

O programa de formação, apesar do seu título pomposo, é o resumo da obra de Gene Sharp “Da Ditadura à Democracia”. Gene Sharp é um académico norte-americano que se dedicou ao estudo das formas não-violentas de transição da ditadura para a democracia. Será que o resumo de um livro académico norte-americano sobre não-violência é um acto preparatório de uma rebelião? Também não tem qualquer credibilidade, esta asserção.

O terceiro aspecto liga-se à frequência do curso de formação. Aprendeu-se a fazer bombas e a disparar Kalashnikovs nesse curso? Não. Os temas eram “Confiança colectiva” ou “Gestão orientada para a acção”. Não parecem temas destinados a provocar realmente o derrube do Governo.

Que actos preparatórios são estes que se resumem a reuniões em jardins e traduções de livros americanos?

A punição de um acto preparatório é uma excepção e não uma regra, por isso tem de ser encarada com especial cuidado e não de forma leviana.

Os actos preparatórios têm de ser já dominados por uma finalidade: a perpetração de um crime. Os actos preparatórios pressupõem a intenção de consumar o crime. Portanto, não podem ser meras declarações de intenções ou expressões de descontentamento. Têm de ser a primeira fase de um iter criminis que se desenvolverá até à consumação do crime. Esta é a questão, e a verdade é que os poucos factos aduzidos na pronúncia não se traduzem na preparação de um crime de rebelião ou semelhante. Reuniões num jardim frente à administração municipal, resumo de um livro sobre não- violência, duas ou três palestras sobre esse livro não preparam revolução nenhuma.

Nada disto são actos preparatórios de uma rebelião. Actos preparatórios de uma rebelião seriam reuniões secretas com recrutamento de militares e polícias, armazenamento de armas, treinos militares, criação de células guerrilheiras, e por aí adiante.

O que temos neste caso são encontros de jovens descontentes com o regime que se manifestam, tendo como pressuposto a liberdade de expressão.

Assim, o que existe neste processo é um ataque à liberdade de expressão mascarado de punição de actos preparatórios que não preparam nada.

O governo angolano não pode ter uma janela aberta para a mente dos seus cidadãos e controlar tudo.

Estamos de facto perante uma charada jurídica que tem como único objectivo amedrontar uma população cada vez mais insatisfeita com a incompetente gestão macroeconómica do Governo.

Qualquer juiz com bom senso absolverá estes jovens. Mas há falta de bom senso no poder judicial e a injustiça poderá servir de catalista para os jovens içarem, bem alto, a bandeira da liberdade por que lutam.

* Doutor em Direito

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