Que
não está cá para matemáticas. O governo é coisa séria. Não há cá esquerdices
para ninguém. Um milhão de votos? Brinquem no parlamento. No governo só
maiorias amigas. Era o que mais faltava.
Alice Brito – Esquerda,
opinião
Quando
a criatura fala a mediocridade delira. A criatura é um homem cinzento. Da cor
do cimento. Às vezes parece mansa. Sonsa. Lassa. De uma lentidão de azeite. Mas
não é. A criatura, quando é chamada a decidir, esganiça-se, sobe o tom e a
velocidade. Discursa. Mal, mas discursa. Só fel.
A
criatura absolve e branqueia crimes cometidos pelos seus oficiais. Trava
combates a descair para a peçonha.
A
criatura é míope de alma. É um homem sem visão. Pior que isso, é um homem sem
olhar. Há por ali uns orifícios que contêm olhos. Só isso. Nem expressão, nem
qualquer evidência de que ali haja outra coisa que denote um mínimo de vida
interior.
O
que terá lido a criatura ao longo da vida? Com sorte o Pato Donald. Aposto que
nunca leu o Asterix. Asterix? Demasiado ousado, eventualmente subversivo.
Por
isso dá erros. Fala em “cidadões” porque realmente o que ele domina é a
gramática dos interesses. Tem, aliás, razão para isso. Bem lucrou com ela!
A
criatura gostaria de ter à sua frente uma esquerda letárgica, num ensimesmado
torpor sonolento. Uma esquerda pianinha, conformada, coisa menor e recatada.
Saiu-lhe
ao caminho uma esquerda lampeira e a criatura passou-se.
Quando
há tempos soou o grito helénico a criatura avisou. Cuidado.
Os
avisos são aliás a sua especialidade. Ele avisa que o sol vai nascer, que o
inverno vai ser mais frio que o Verão, e que os mercados estão indispostos. A
semana passada pediu-lhes que vomitassem.
No
dia em que a criatura saltou do ecrã e entrou descaradamente em casa das
pessoas disparou mais um discurso: Pensei em tudo. Nos cenários, na música,
coreografia e actores e texto.
E
tão honesto, tão dado à disciplina e ao rigor, tão vertical nos seus
compromissos, roncou um grito de guerra convocando alguns deputados para o
exercício da facada. Não votem com o vosso partido. Votem com o meu.
O
discurso fez ricochete e o tipo lixou-se. Os destinatários da encomenda da
traição fizeram-lhe um grandessíssimo manguito. Podou dúvidas e fez crescer
certezas. O homem é, de facto, um traste.
Até
os apaniguados do costume abanaram a cabecinha.
Entretanto,
a lei constitucional contorce-se na aflição do incumprimento.
Cá
fora, neste Outono inseguro, longe dos cenários e decisões e dislates, a
passividade treinada ao longo de décadas sucessivas deu de si enquanto, por
outro lado, se anuncia uma coisa parecida com um governo. Uma coisa volátil
como éter, efémera como uma guinada de abcesso. Mesmo assim, notável na
dimensão do descaramento. É a continuidade a que acresce o piorzinho da
utensilagem laranja.
Ainda
não tomou posse e já ali se pressente a penugem do bolor.
Vamos
ver o que a criatura fará, quando cair sem história nem glória o pano sobre a
farsa.
Vamos
ver até onde nos levará o narcisismo cavaquista. Continuaremos a empobrecer em
duodécimos? Continuaremos com esta tribo a governar-nos?
Esta
gente não presta. É gente filha do séc. XXI e de mais qualquer coisa.
Alice Brito - Advogada,
dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo
ortográfico de 1990
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