terça-feira, 27 de outubro de 2015

Portugal. À MEMORIA DE CAVACO



Miguel Guedes – Jornal de Notícias, opinião

Cavaco Silva falou ao espelho até o partir em cacos. Cavaco, face à inexistência de um compromisso formal à esquerda, fez o que tinha a fazer e disse tudo o que não podia dizer. As primeiras reacções às palavras do presidente da República foram emocionais e vieram dos excluídos pelo discurso. Ao fazer sapateado político sobre cerca de 20% dos portugueses votantes do BE e da CDU, atirando-os ideológica e permanentemente para o campo da não solução governativa do país, Cavaco Silva fez mais pela união da Esquerda em Portugal em pouco mais de dez minutos do que mais de 40 anos de democracia alguma vez conseguiram. Pessoalmente, inflige-se uma derrota em toda a linha quando tinha pela frente a decisão mais simples dos seus mandatos. O que quer que seja que tenha passado pela cabeça do presidente, passou e veio para ficar.

Cavaco não foi rei nem roque, foi joker. E jogou o seu "wild card" no fim do jogo, quando poderia assumir a sua posição sultana de estátua do regime. Mas, pelo contrário, ao terminar o segundo mandato, resolveu ter uma conversa em família à boa maneira do dedo em riste, apontando para os meninos maus que pensam algo que ele julga como absolutamente abominável. Resolve dar uma lição de democracia e sai-lhe uma pedagógica lição sobre exclusão. Não contente, comete outro erro estratégico: ao seduzir os deputados do PS para a liberdade de voto "limiano", voltou a não perceber que António Costa tem a bancada parlamentar consigo (como se veria, posteriormente, na eleição de Ferro Rodrigues para presidente da AR). Pior. Cavaco terá percebido que alinhou toda a Esquerda contra si e que condenou as negociações à esquerda a um entendimento, seja ele qual for, sólido ou movediço. A Esquerda sempre foi autofágica mas, convenhamos, nunca teve que lidar com um presidente assim.

As ameaças, juízos de valor e insinuações que traçou sobre as opções políticas de parte dos portugueses que deveria respeitar, faz todas as equações saltarem para cima da mesa. A "partidarite" de Cavaco Silva acompanha o seu bloqueio ideológico mental. É verdade que daí a sustentar um Governo de gestão ou de iniciativa presidencial vai um grande e gigantesco passo. Mas Cavaco Silva pode querer dá-lo por não conceber que bloquistas e comunistas, os seus estimados activos tóxicos da democracia, possam fazer parte do poder pela primeira vez durante o seu consulado. Para o presidente, já bastam os socialistas. Se inviabilizar uma solução governativa à esquerda, que ninguém se surpreenda: o aviso foi dado. Nada é pior do que um estadista que, perante o crepúsculo do seu fim político, resolve ficar na história pelas suas próprias motivações internas. E no semblante imperturbável da esfinge, esta motivação é o que lhe sobra. Encostaria então o seu Citroën BX à direita e, já a estacionar, passaria de imediato para a leitura dos seus livros de história.

Tudo já seria mau se não fosse pior. Ou como a história nos pode cair em cima, convocando o divã. Despertava o ano de 1986 na Comissão Política Nacional do PSD. Aníbal Cavaco Silva (então primeiro-ministro e presidente do PSD) denuncia o comportamento indisciplinado de militantes do partido que apoiaram Mário Soares nas eleições presidenciais, em detrimento de Freitas do Amaral. Na sequência dessa denúncia, o Conselho Jurisdicional do PSD decide pela suspensão de 21 militantes (entre os quais, Adriano Jordão e Valentim Loureiro) e pela expulsão de três militantes do partido e sindicalistas da UGT: José Veludo, António Castro e Rui Oliveira e Costa (este último, deputado, que a partir desse momento exerceria o seu mandato como independente). As expulsões e suspensões obedeceram ao "bom timing", esperando pelos resultados eleitorais que derrotariam Freitas e entoariam o slogan "Soares é fixe" em Belém. Agora e antes, a política do facto consumado, do bloqueio ideológico, do pensamento único. Cavaco Silva teve coragem para impor sanções disciplinares partidárias nas únicas eleições (as presidenciais) em que os partidos não podem apresentar formalmente candidatos nem obrigar à disciplina de voto (nem ao apoio público ou silêncio) dos seus militantes. O presidente do PSD que punia o delito de opinião no passado é o mesmo presidente da República que alicia deputados do PS no presente, alertando-os para pensarem bem antes de votar uma moção de rejeição ou Orçamento do Estado, actos políticos estes, onde a disciplina de voto tem, obviamente, um sentido de grandeza maior. Como aqui questionava há duas semanas, a Esquerda podia mesmo esperar. E ainda bem que, negociando, esperou. Para ver isto.

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