Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Cavaco
Silva falou ao espelho até o partir em cacos. Cavaco, face à inexistência de um
compromisso formal à esquerda, fez o que tinha a fazer e disse tudo o que não
podia dizer. As primeiras reacções às palavras do presidente da República foram
emocionais e vieram dos excluídos pelo discurso. Ao fazer sapateado político
sobre cerca de 20% dos portugueses votantes do BE e da CDU, atirando-os
ideológica e permanentemente para o campo da não solução governativa do país,
Cavaco Silva fez mais pela união da Esquerda em Portugal em pouco mais de dez
minutos do que mais de 40 anos de democracia alguma vez conseguiram.
Pessoalmente, inflige-se uma derrota em toda a linha quando tinha pela frente a
decisão mais simples dos seus mandatos. O que quer que seja que tenha passado
pela cabeça do presidente, passou e veio para ficar.
Cavaco
não foi rei nem roque, foi joker. E jogou o seu "wild card" no fim do
jogo, quando poderia assumir a sua posição sultana de estátua do regime. Mas,
pelo contrário, ao terminar o segundo mandato, resolveu ter uma conversa em
família à boa maneira do dedo em riste, apontando para os meninos maus que
pensam algo que ele julga como absolutamente abominável. Resolve dar uma lição
de democracia e sai-lhe uma pedagógica lição sobre exclusão. Não contente,
comete outro erro estratégico: ao seduzir os deputados do PS para a liberdade
de voto "limiano", voltou a não perceber que António Costa tem a
bancada parlamentar consigo (como se veria, posteriormente, na eleição de Ferro
Rodrigues para presidente da AR). Pior. Cavaco terá percebido que alinhou toda
a Esquerda contra si e que condenou as negociações à esquerda a um
entendimento, seja ele qual for, sólido ou movediço. A Esquerda sempre foi
autofágica mas, convenhamos, nunca teve que lidar com um presidente assim.
As
ameaças, juízos de valor e insinuações que traçou sobre as opções políticas de
parte dos portugueses que deveria respeitar, faz todas as equações saltarem
para cima da mesa. A "partidarite" de Cavaco Silva acompanha o seu
bloqueio ideológico mental. É verdade que daí a sustentar um Governo de gestão
ou de iniciativa presidencial vai um grande e gigantesco passo. Mas Cavaco
Silva pode querer dá-lo por não conceber que bloquistas e comunistas, os seus
estimados activos tóxicos da democracia, possam fazer parte do poder pela
primeira vez durante o seu consulado. Para o presidente, já bastam os
socialistas. Se inviabilizar uma solução governativa à esquerda, que ninguém se
surpreenda: o aviso foi dado. Nada é pior do que um estadista que, perante o
crepúsculo do seu fim político, resolve ficar na história pelas suas próprias
motivações internas. E no semblante imperturbável da esfinge, esta motivação é
o que lhe sobra. Encostaria então o seu Citroën BX à direita e, já a
estacionar, passaria de imediato para a leitura dos seus livros de história.
Tudo
já seria mau se não fosse pior. Ou como a história nos pode cair em cima,
convocando o divã. Despertava o ano de 1986 na Comissão Política Nacional do
PSD. Aníbal Cavaco Silva (então primeiro-ministro e presidente do PSD) denuncia
o comportamento indisciplinado de militantes do partido que apoiaram Mário
Soares nas eleições presidenciais, em detrimento de Freitas do Amaral. Na
sequência dessa denúncia, o Conselho Jurisdicional do PSD decide pela suspensão
de 21 militantes (entre os quais, Adriano Jordão e Valentim Loureiro) e pela
expulsão de três militantes do partido e sindicalistas da UGT: José Veludo,
António Castro e Rui Oliveira e Costa (este último, deputado, que a partir
desse momento exerceria o seu mandato como independente). As expulsões e
suspensões obedeceram ao "bom timing", esperando pelos resultados
eleitorais que derrotariam Freitas e entoariam o slogan "Soares é
fixe" em Belém. Agora e antes, a política do facto consumado, do bloqueio
ideológico, do pensamento único. Cavaco Silva teve coragem para impor sanções
disciplinares partidárias nas únicas eleições (as presidenciais) em que os
partidos não podem apresentar formalmente candidatos nem obrigar à disciplina
de voto (nem ao apoio público ou silêncio) dos seus militantes. O presidente do
PSD que punia o delito de opinião no passado é o mesmo presidente da República
que alicia deputados do PS no presente, alertando-os para pensarem bem antes de
votar uma moção de rejeição ou Orçamento do Estado, actos políticos estes, onde
a disciplina de voto tem, obviamente, um sentido de grandeza maior. Como aqui
questionava há duas semanas, a Esquerda podia mesmo esperar. E ainda bem que,
negociando, esperou. Para ver isto.
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