Presidente
afirma: partidos contra “austeridade” não podem governar – ainda que
conquistem, nas urnas, maioria dos votos…
Jacques
Sapir – Outras Palavras em 28.10.2015 - Tradução: Vila Vudu
Portugal
é vítima, nos últimos dias, de um silencioso golpe de estado organizado pelos
dirigentes portugueses pró-Europa [1]. É evento especialmente grave. Acontece
quando ainda está fresco na memória o golpe de força bem-sucedido contra o
governo grego, pela combinação de pressões políticas vindas do eurogrupo e
pressões econômicas (e financeiras) vindas do Banco Central Europeu. E confirma
a natureza profundamente antidemocrática, não só da zona do euro, mas também —
e muito se deve lamentar — da União Europeia.
O
resultado das eleições portuguesas
Muito
se disse, especialmente na mídia, que a coalizão de direita saíra vitoriosa nas
últimas eleições legislativas em Portugal, realizadas em 4 de
outubro. É mentira. Os partidos de direita, comandados pelo primeiro-ministro
Pedro Passos Coelho, não tiveram mais de 38,5% dos votos e perderam 28 assentos
no Parlamento. A maioria dos eleitores portugueses – 50,7% – votou contra as
primeiras medidas de arrocho (“austeridade”). Eles votaram em candidatos da
esquerda moderada, mas também do Partido Comunista Português e de outras
formações da esquerda radical. O Partido Socialista Português tem 85 cadeiras,
o Bloco de Esquerda (esquerda radical) 19, e o Partido Comunista Português 17.
De 230 cadeiras/votos do Parlamento, as forças anti-arrocho têm 121; a maioria
absoluta é de 116 [2].
Seria
possível pensar num acordo entre os partidos da direita e o Partido Socialista.
Mas esse acordo nunca seria possível sem a rediscussão de parte do programa de
“austeridade”, que resultou do acordo entre o governo português e as
instituições europeias. E rediscussão que não deixaria de evocar a situação da
Grécia…
Os
socialistas e o “Bloco de Esquerda” disseram claramente que aquele acordo teria
de ser revisto. Foi o que motivou o presidente Cavaco Silva a rejeitar o
projeto de governo apresentado pela esquerda. Mas os considerandos da
declaração presidencial vão ainda mais longe. Disse que “Considerados todos os
sacrifícios importantes feitos no quadro de um importante acordo financeiro, é
meu dever, e no exercício de minhas prerrogativas constitucionais, fazer todo o
meu possível para impedir que se enviem falsos sinais para as instituições
financeiras e os investidores internacionais [3].”
Essa
declaração é, afinal, o verdadeiro problema. Que Cavaco Silva pense que governo
da esquerda unida possa levar a um enfrentamento com o Eurogrupo e a União
Europeia, é direito dele. E é até bastante provável que seja como ele diz. Mas
numa república parlamentarista como é Portugal hoje, o presidente não tem
absolutamente qualquer “dever” ou poder de interpretar intenções futuras, para
opor-se à vontade dos eleitores.
Se
uma coalizão de esquerda e de extrema esquerda tem maioria no Parlamento e se
apresenta – como nesse caso – um programa de governo, a lei manda que a maioria
forme o novo governo. Qualquer outra decisão aproxima-se de ato
inconstitucional, e pode configurar golpe de Estado.
Situação
econômica de Portugal
O
golpe de Cavaco Silva surge quando a situação econômica de Portugal, quase
sempre apresentada pelos jornais e jornalistas e “especialistas” de televisão
como caso de “sucesso” das políticas de “austeridade”, continua extremamente
precária. O déficit no orçamento ultrapassou 7% em 2014 e teria de estar
naquele ano bem abaixo de 3%. A dívida pública já ultrapassa 127% do PIB. O
país foi empurrado dez anos para trás por conta das políticas de arrocho, com
golpe social (desemprego) extremamente forte.
As
“reformas” impostas como contrapartida do plano de “ajuda” oferido a Portugal
para financiar a dívida e os bancos não resolveram o problema principal do
país: a baixa produtividade do trabalho. Ele tem diversas razões: mão de obra
pouco ou mal formada e investimento produtivo muito insuficiente. Portugal pôde
acomodar-se a essa baixa produtividade nos anos 1980 e 1990 porque podia deixar
que a moeda se desvalorizasse. Depois de 1999 e da entrada no euro, isso
tornou-se impossível. Não surpreende, portanto, que a produção esteja
estagnada.
Os
sucessivos planos de “austeridade” postos em ação têm o objetivo de achatar os
salários (em valor) – tanto diretos quanto indiretos. Mas esse achatamento só
beneficia as exportações, porque ao mesmo tempo deprime o consumo interno [4]
(…) A responsabilidade do euro na situação econômica de Portugal é inegável.
Mas a responsabilidade das autoridades europeias no caos econômico e político
que pode estar a caminho é também indiscutível.
Lições
a aprender
Fala-se
frequentemente de uma tendência a aceitar o desastre, que levaria os povos a se
abandonar ao pior. Nada disso se vê na atual situação. Os portugueses tentaram
aplicar métodos inspirados pelo eurogrupo e Comissão Europeia, e hoje constatam
que esses métodos não dão os resultados prometidos. O voto nas eleições
legislativas é o resultado desse processo. Mas dirigentes submissos ao exterior
– ou seja, às instituições europeias, decidiram não levar em conta os votos.
O
que hoje se passa em Lisboa é tão grave, mesmo que pareça menos espetacular,
que o que se viu acontecer na Grécia.
A
natureza profundamente antidemocrática do eurogrupo e da União Europeia afirma-se
ainda mais uma vez, e confirma-se. Só cego não vê. E esse segundo evento
poderia bem ser a gota d’água. Mas, para que seja, é imperativo que todas as
forças decididas a lutar contra o euro encontrem formas de coordenarem suas
ações. É preciso também não esquecer o que La Boétie escreveu no Discours de la
servitude volontaire publicado em 1574 [5]: “os tiranos só nos parecem grandes
porque estamos ajoelhados” [6]. Poder-se-ia retomar essa fórmula, que parece
tão contemporânea e formulá-la assim: “as instituições europeias só parecem
grandes porque (os soberanistas) estamos divididos”.
Mais
que nunca, está diante de nós a questão da coordenação entre as diferentes
forças soberanistas. Essa coordenação não significa que não haja divergências
entre estas forças, nem que elas possam ser postas de lado. Trata-se da mesma
lógica das “frentes” que marcou a “Frente Unida Anti-Japão” (formada na China
pelo Partido Comunista Chinês e o Guomindang), que não são alianças no senso
estrito do termo, mas permitem marchar separadamente e atacar juntos. Mas a
realidade, por desagradável que pareça a alguns, é que, se não formos capazes
de nos coordenar, um poder, na realidade minoritário, poderá continuar a
exercer sua tirania. E de golpe de estado em golpe de estado, instaurar um
regime permanente de golpe de estado.
NOTAS
[1]
Evans-Pritchard A. “Eurozone crosses Rubicon as Portugal’s anti-euro Left
banned from power”, The Telegraph, 23/10/2015 [traduzido no Blog do Alok].
[2]
Reuters, “LEAD 2-La gauche portugaise travaille à la formation d’un
gouvernement ” 12/10/2015,
[3]
Evans-Pritchard A. “Eurozone crosses Rubicon as Portugal’s anti-euro Left
banned from power”, op.cit..
[4]
Blanchard O. et D. Leigh, Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers, FMI
Working Paper WP/13/1, Washington DC, janvier 2013.
[5]
Etienne De La Boétie. [1574] Discurso da Servidão Voluntária. Tradução: Laymert
Garcia dos Santos. Comentários: Claude Lefort, Pierre Clastres e Marilena
Chauí. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982 [NTs]..
[6]
Essa frase conheceu grande sucesso às vésperas de 1789, mas noutra forma: “Os
grandes só parecem grandes porque andam montados nas nossas costas;
sacudâmo-los de cima de nós, rastejarão pelo chão.
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