segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Brasil. Fernando Henrique Cardoso: DA TEORIA DA DEPENDÊNCIA À CHEFIA DO GOLPE



A dependência é estrutural, dizia FHC em 1967. A dependência é inexorável, diz agora o chefe do golpe que pretende revigorá-la.

Saul Leblon – Carta Maior, editorial

O fracasso das manifestações da direita neste domingo não deve alimentar ilusões: o golpismo distrai a rua, enquanto costura uma  transição por cima.

A baldeação consiste em chutar a laranja seca representada pelo operador Eduardo Cunha, para substituí-la por uma sigla de sumo adequado ao novo estágio de legitimação: FHC.

A operação assemelha-se à das famílias mafiosas.

Em certo momento dos negócios é necessário polir a reputação para manter o essencial. Entra-se para a vida política.

A dificuldade maior, no caso da famiglia tucana, não é apenas disfarçar o lastro com a vigarice, mas sobretudo provar que o adversário é a exclusiva fonte da vigarice nacional.

Extirpado e curetadas as ramificações com o populismo, tudo será como antes. Voltaremos aos anos dourados dos 90, quando as privatizações, a anemia do investimento público e o porre de capitais especulativos fez do Brasil o que se sabe.

A dificuldade em enterrar o morto é que ele ainda respira. E não apenas por aparelhos.

A atuação brasileira na Conferência do Clima, em Paris --contribuindo de forma marcante para o desfecho superior ao esperado,  desconcertou o jogral do Brasil aos cacos.

Foi preciso que o presidente dos EUA, Barack Obama, orientasse seu secretário de Estado, John Kerry, a ‘colar’  na mediação da brasileira Izabella Teixeira, ministra do meio ambiente, para que o noticioso local admitisse o que o conservadorismo nega, sonega e combate.

O novo degrau do Brasil na geopolítica mundial.

‘Ministra brasileira ganha destaque nos debates da COP-21. Izabella Teixeira é uma das autoridades mais assediadas do encontro’.

Foi o que estampou o site de O Globo no último sábado, quando o documento da CoP 21 era arrematado no joelho pelos negociadores (leia a íntegra do documento aqui)

De onde o ‘insuspeito’ veículo dos notórios Marinhos tirou isso?

Do fato de que o Brasil virou referência na CoP 21 graças a sua ousadia na definição de metas próprias  --única nação em desenvolvimento a se comprometer em cortar emissões em termos absolutos; à credibilidade lastreada em resultados superlativos  já alcançados pelo país e  à qualificação técnica inquestionável  da ministra de Estado, Izabella Teixeira.

Tudo isso soa a conversa de marciano para quem tem como referência exclusiva o noticioso das próprias Organizações Globo, na grande confluência formada internamente entre o golpismo e a vigarice nos dias que correm.

Daí o parêntesis algo desconcertante aberto pelo noticiário da CoP.

A desconexão espantosa não decorre da realidade.

Mas da forma como ela tem sido filtrada pelo oligopólio midiático no país.

Aos fatos.

Quando a crise mundial gritava mais alto, em 2009, eram poucas as nações dispostas a conversar sobre restrições impostas pelo aquecimento global.

A conferência de Copenhague acabou em fiasco.

O Brasil nadou na contracorrente.

Fez na esfera ambiental o que adotaria depois na economia, com políticas keynesianas, a contrapelo da maioria das nações, que dobraria a aposta no arrocho neoliberal.

Por conta própria, o governo Lula fixou então uma meta de redução de gases de efeito estufa, tendo como referência  o ano de 2005.

O noticiário especializado carimbou: ‘retórica’.

Errou.

A redução alcançada até 2012 foi de 41%, graças sobretudo ao recuo de 79% no desmatamento na Amazônia legal entre 2004 e 2015.

Foi a bordo desses números que a ministra Izabella Teixeira desembarcou  em Paris  trazendo na bagagem outra meta igualmente desassombrada – anunciada anteriormente pela Presidenta Dilma Rousseff.

A de reduzir em 37%, até 2025, e em 43%, até 2030, as emissões de gases do efeito estufa do país

O compromisso inclui zerar o desmatamento na Amazônia Legal até 2030.

Nesse mesmo prazo, 12 milhões de hectares de florestas, o equivalente a uma Inglaterra inteira, serão reflorestados.

A economia passará a girar a partir de então com 1/3 (33%) de energia renovável (contra 28% hoje).

Uma pergunta é obrigatória.

Pode uma nação em ruína, como quer o jogral conservador, servir assim de referência da agenda que vai definir o destino dos povos em nosso tempo?

Um grão de mostarda de honestidade intelectual responderia que não.

Somos levados a intuir, portanto, que aquilo que a aliança do golpismo com a vigarice chama de ‘ruína lulopetista’ talvez configure outra coisa.

Na verdade, uma encruzilhada clássica na  história das nações.

Que não isenta de erros os seus protagonistas.

Mas que se caracteriza sobretudo pela crispação dos dilemas que envolvem as transições de ciclo de desenvolvimento.

Quais sejam: a disputa pela riqueza corrente se intensifica; a desigual distribuição do estoque torna-se ostensiva  e as prioridades,  direitos e condicionalidades sobre o fluxo futuro exacerbam as contradições sobre o passo seguinte da sociedade.

Os parâmetros levados pelo governo brasileiro a Paris incorporam a essa travessia por si difícil a contrapartida do ingrediente ambiental.

Considerar indissociável a economia sustentável, da nação socialmente sustentável é o  que consagrou o Brasil como referência das nações em luta pelo desenvolvimento na CoP 21.

Ou dito à moda brasileira, como tem acontecido em todos os fóruns   internacionais: um futuro sustentável é incompatível com a fome, a miséria, o desabrigo, o arrocho, a insalubridade, as periferias conflagradas e os recursos sonegados às grandes maiorias.

Essa visão de mundo contradiz a de FHC sociólogo, a de FHC presidente e a de FHC golpista.

Por quê?

Porque ela entende que construir uma nação é um ato de ruptura.

Que se renova periodicamente em choques contra interesses dominantes internos e externos.

Delimitar um espaço, fincar estacas e declarar a soberania não é coisa que se faça impunemente em tempo algum e em qualquer latitude

Menos ainda quando se trata, como é o caso brasileiro, de um dos maiores territórios do globo, dotado das maiores reservas de água, de minérios, petróleo, terras férteis, potencial hidrelétrico e solar; ademais de florestas e biodiversidade, tudo isso arrematado por um gigantesco mercado de massa.

O que significa ser tudo isso em uma mudança de época em que a civilização terá que se apoiar nos recursos em declínio –que o Brasil ainda dispõe em abundância-- para construir as novas bases de sua sobrevivência?

Significa combinar a articulação internacional com a soberania intransigente, e justamente por isso expor-se a uma colisão sem trégua com a lógica dos capitais sem lei.

São essas correntezas violentas que movem as raízes estruturais da conjura entre o golpismo e a vigarice nos dias que correm.

Quem melhor encarna esse elo entre a superfície e as profundezas,  entre o varejo  e o atacado da reordenação do poder local e global é o recém assumido chefe das operações contra Dilma, o tucano Fernando Henrique Cardoso.

Diga-se a seu favor que não se trata de uma ruptura, mas de um desdobramento evolutivo, ancorado em uma antiga certeza: não há espaço para um povo comandar o seu destino no capitalismo do século 21.

Menos ainda –diz hoje FHC-- para a teimosa insistência ‘lulopetista’ em construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.

Os acontecimentos recentes referendariam a célebre análise do sociológica de 1967, ‘Dependência e desenvolvimento na América Latina’.

Escrita com Enzo Falletto, no Chile, quatro anos depois do golpe no Brasil, e publicado em 1973, ano da queda de Allende, ela teorizava sobre a inviabilidade de um modelo de desenvolvimento soberano na região.

A dependência é estrutural, dizia FH em 1967.

A dependência é virtuosa, adicionaria FH presidente nos anos 90.

A dependência é inexorável, diz agora o baluarte do golpe institucional, que prescreve a derrubada do governo resiliente em contrariar o enredo consagrado pelo acadêmico e líder conservador.

FH partiu de um diagnóstico correto, verdade seja dita.

Ele apontou o equívoco de boa parte da esquerda brasileira, que em 1964 via na burguesia nacional um aliado dos trabalhadores na luta pelo desenvolvimento.

Mas extraiu daí conclusões equivocadas.

Focado na natureza efetiva dos interesses locais que se opunham aos das massas populares, ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’ iluminaria a contrapartida  estrutural disso: a complementariedade de propósitos entre o capital local e o estrangeiro.

Tal convergência, antes de levar à estagnação pela atrofia do mercado interno, permitiria um padrão de desenvolvimento associado e dependente, no qual o consumo da classe média forneceria o lubrificante de equilíbrio político e econômico.

Nisso a reflexão sociológica representou um avanço.

Sem todavia, definir um verdadeiro marco histórico.

Faltou abordar o essencial: os conflitos inerentes à associação entre o capital local e o internacional  e o seu custo em libras de carne social.

A ausência desse olhar dialético magnificaria aquilo que FHC criticava na esquerda nos anos 60: a troca da materialidade da luta de classes por um fatalismo alheio às contradições transformadoras da realidade.

Com a supremacia financeira, a partir dos anos 70/80, o enredo mecanicista ganharia a aparente robustez de um interesse hegemônico, dotado de mando e ubiquidade efetivas.

A aparente consagração da teoria deu estofo ao  projeto político do sociólogo  na Presidência da República, que a exerceria disposto a  personificar sua obra e suas consequências dilapidadoras.

Assim o fez.

O surgimento do PT e a vitória desconcertante do líder operário em 2002 e 2006 –que fez  a sucessora em 2010, reeleita em 2014--  introduziria um ruído insuportável no escopo desse conformismo estratégico.

Para revalidar a teoria  –e os interesses aos quais ela consagra uma dominância irreversível, é necessário desqualificar a heresia de forma exemplar.

É essa vendeta que impele FHC agora.

É preciso provar que o conformismo de 1967  não esgotou o prazo de validade, após 13 anos de avanços sociais e geopolíticos, sob o comando de governos hereges.

Essa é a sofreguidão embutida na manchete da Folha deste domingo.

‘Após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida’. E rebaixado em tipologia bem miúda: ‘No período, renda dos mais pobres subiu 129%’. Dissonância logo rebatida na legenda da foto  abaixo: ‘crianças atendidas pelo Bolsa Família alimentam-se de arroz e feijão, sem carne’.

Não seria um risco alto demais reduzir-se uma transição de ciclo de desenvolvimento a essa composição de densidade colegial?

Não se o torniquete financeiro internacional  –ancorado nas agências de risco e no arrocho fiscal interno --  tanger a pasta de dente de volta ao tubo com chibatadas de juros altos, retração do investimento público, volta do desemprego  em massa e a reversão dos ganhos salariais.

É nisso que FHC arrisca sua autoestima póstuma.

Para tanto, o país precisa derreter.

Por dentro e por fora.

O que aconteceu na conferência de Paris neste fim de semana conflita com o enunciado conservador.

Nela, o Brasil deixou de ser a Geni do conservadorismo para se tornar a referência ambiental das nações em desenvolvimento.

Na frente interna, o baile é mais complicado, na medida em que o governo Dilma apostou na discutível tese de que a melhor forma de resistir ao golpismo é adotar a sua agenda econômica.

A busca de indulgência, como se sabe, apenas enfraqueceu a base social do governo, arrastando a economia para um labirinto recessivo que hoje é o maior aliado do golpe.

A disputa extremada se dá agora sob dominância da rua.

Derrotar a sociologia da dependência, neste caso, requer um grau de ousadia maior do que adotar os seus pressupostos de ajuste.

O requisito, a essa altura do campeonato, pressupõe libertar a democracia da passividade a que foi condenada no modelo de governança nas últimas décadas.

É uma corrida contra o tempo.

O desafio maior para o governo e o PT é deixar de ser refém das suas próprias renúncias e omissões.

O sociologia da dependência golpista aposta seu prestígio póstumo no fracasso dessa empreitada.

A ver

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