Referência
de sucesso da privatização tucana, a Vale distribuiu em 2011 US$ 4 bilhões a
seus acionistas, mas não instalou buzinas que salvariam pessoas da lama.
Saul
Leblon – Carta Maior, editorial
A
ilusão de que a barbárie é um processo incremental que se desenvolve em algum
ponto remoto do planeta, ou do calendário, ofusca uma rotina de convívio com a
sua plena vigência nos dias que correm.
A matança em Paris na última sexta-feira, o avanço de um mar de lama assassina
no interior brasileiro, são ilustrações de uma transição de ciclo histórico,
cuja raiz é sonegada ao discernimento social pela semi-informação emitida do
aparelho midiático conservador.
A cada soluço do inaceitável ergue-se, assim, a boa vontade dos que farejam
algo estranho arranhando a porta do lado de fora.
Em janeiro, dizíamos ‘Somos todos Charlie’.
Em setembro dissemos ‘Somos todos Aylan Kurdi’ ( o menino curdo de três anos,
morto em uma praia na Turquia).
Em novembro estamos dizendo ‘Somos todos franceses’, pranteando a centena e
meia de jovens assassinados em uma única noite em Paris.
Por que estamos sendo jogados periodicamente a nos identificarmos com vítimas
de uma tragédia que se abate sem que se possa detê-la, nem explicar de onde se
origina e por que se repete em formas diversas com a mesma gravidade?
A lista é interminável.
Se a mídia desse a ênfase adequada a outros dramas equivalentes, por
certo teríamos dito também ‘somos todos gregos’, ‘somos todos sírios’,
‘somos todos africanos’, ’somos todos desempregados europeus’, somos
todos despejados espanhóis, somos todos líbios, iraquianos, iranianos, pretos
americanos pobres...
Se desse hoje o alarme suficiente à lamacenta catástrofe promovida pela Vale,
em Minas Gerais, estaríamos dizendo ‘Somos todos rio Doce’....
A solidariedade exclamativa é importante ao evidenciar a nossa inquietação.
Mas é insuficiente.
Quando o que está em jogo é a incompatibilidade entre a ganância estrutural dos
mercados e a dos impérios, de um lado; e a sobrevivência do interesse público,
de outro, a boa intenção exclamativa, a exemplo da caridade cristã, não é capaz
de afrontar os perigos que acossam as bases da sociedade e o seu futuro.
A desordem mundial, movida a incertezas, brutalidades psicopatas, insegurança
social permanente e colapsos recorrentes movidos a forças intangiveis, não
retrocederá se não for afrontada com anteparos do interesse público dotado de
ferramentas à altura do desafio: Estados nacionais democraticamente
fortalecidos.
A ausência de coordenação global entre economias, a subordinação da democracia
a interesses financeiros que se dedicam a esvaziá-la, a incompatibilidade entre
a acumulação irracional e a sobrevivência dos recursos que formam as bases da
vida na terra, não serão superados com boas intenções de organismos não
governamentais.
A crise de 2008 foi o sintoma desse corredor estreito da história para onde
estão sendo tangidas referências e conquistas acumuladas pelas lutas
democráticas e populares desde os primórdios do século 20 e antes dele.
Ao contrário do que recitam colunistas agendados pelos departamentos de
economia dos bancos, ela não acabou.
O cerco em marcha se estreita, como evidenciam os acontecimentos de Paris, ou
seus equivalentes na Síria.
A emergência do ciclo neoliberal nos anos 70 deu carta branca à ganância
rentista, confiante na expertise do dinheiro para alocar recursos com maior
eficiência ao menor custo, tendo o globo como tabuleiro cativo.
Os alicerces da democracia social (o pleno emprego, direitos universais,
Estado, partidos e sindicatos forte) foram corroídos.
Sob explosões de bolhas, bombas, desemprego, náufragos, governos e nações
acuadas por defenderem a destinação social do desenvolvimento, o século 21
assiste agora aos efeitos colaterais dessa troca.
Um poder de chantagem ímpar, dotado de mobilidade sem igual na história do
capitalismo ungiu o bunker financeiro em carrasco das nações.
O preço da mutação é o novo normal sistêmico.
A desigualdade cresce, o emprego definha, o endividamento asfixia famílias e
Estados, a política se desmoraliza, fundos e acionistas enriquecem em uma
sociedade que vegeta, e sobretudo, quando ela empobrece.
A barragem acumula rejeitos de todas as raças, cores e religiões.
Não há lugar para todos serem a mesma coisa em parte alguma nessa engrenagem
seccionada por diques que separam vidas sólidas de massas líquidas
lamacentas.
Se o Estado é capturado integralmente pelos mercados, as pontes para a
construção de laços de valores compartilhados entre as nações e dentro das
nações ficam intransitáveis.
Os terroristas que mataram 127 jovens em uma só noite em Paris diziam
exatamente isso enquanto disparavam:
‘Vamos fazer com vocês o que vocês fazem na Síria’, em alusão ao
intervencionismo aberto do governo Hollande que se estende da Síria ao Iraque,
do Iraque a nações africanas.
Estamos falando de um governo socialista, ou melhor, de mais um sintoma da
doença maligna que faz da política o novo idioma do caos.
A chave religiosa apenas reforça esse hospício ordenado pela razão financeira,
que instala uma guerra social aberta de abrangência global, em nosso tempo.
Frentes conflagradas espalham-se pelos mapas das nações e dentro de cada uma
delas, nas periferias urbanas onde os rejeitos humanos dos embates se acumulam.
Volta e meia ali também as barragens se rompem.
A UE tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papéis; 120 milhões de pobres e 27
milhões de desempregados.
Após seis anos de arrocho neoliberal para curar a trombose de 2008, o
desemprego, a desigualdade, o futuro obscuro, o esfarelamento do padrão de vida
dos trabalhadores e da classe média –condensado em uma geração de jovens que
dificilmente repetirá a faixa de renda dos pais-- turbinou a rejeição ao
estrangeiro, criou o medo da 'islamização, alimentou a extrema direita e
liberou a demência terrorista dos alijados.
Não necessariamente nessa ordem, mas com essa octanagem.
A consciência dessa longa travessia é um dado fundamental para renovar a ação
política num tempo de supremacia das finanças desreguladas, ungidas à condição
de um templo sagrado, dotado de leis próprias, revestido de esférica coerência
endógena, avesso ao ruído das ruas, das urnas e das aspirações por cidadania
plena.
Corta. Feche o foco agora no Brasil dos dias que correm.
É nesse cenário de guerra aberta que o conservadorismo e seu jornalismo de
propagação ‘acusam’ o governo de não ter jogado o país ao mar em 2008, como
tantos ‘estadistas’ do ajuste fizeram.
O custo de não tê-lo afogado na hora certa –vertem boquirrotos economistas de
bancos-- acarretou os custos insustentáveis que ora explodem em desequilíbrios
fiscais e orçamentários
O ‘voluntarismo lulopopulista’ terá que ser pago a ferro e fogo, lambuza nossos
ouvidos a voz pastosa do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, com seu conhecido
domínio da macroeconomia.
Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada em 2008 de uma
talagada só, como Joaquim Levy gostaria, encorajado pelo poleiro de tucanos da
Casa das Garças.
Só há um jeito de escapar da loucura disfarçada de racionalidade: tirar a
economia do altar sagrado da ortodoxia e expô-la ao debate democrático do qual
participem todas as forças sociais, unidas em uma frente de propósitos
específicos.
Novo corte para um close na gosma em movimento no Brasil.
Pode-se identifica-la literalmente na massa de lama derramada de uma barragem
da mineradora Vale, que já atingiu nove municípios de Minas e do Espírito Santo
e avança para matar 880 kms de rios, riachos, ribeirões e fontes.
Referência de sucesso da privatização tucana, recordista em distribuir
dividendos a seus acionistas, a Vale durante anos só deixou 1% do lucro obtido
na mineração de Mariana/MG ao município.
Em compensação, despejou agora 60 bilhões de litros de lama tóxica no seu
entorno, uma lava que viaja pelo Rio Doce para compartilhar com o
Espírito Santo a maior catástrofe ambiental da história brasileira.
A devastação está apenas no começo.
A convalescença pode demorar séculos.
Esse é o tempo –advertem geólogos-- para que a lama cuspida pela incúria
gananciosa se transforme em solo fértil outra vez.
A Vale não vai cuidar do interesse público nessa longa mutação.
O governo Dilma já deveria ter montado um gabinete de crise para enfrenta-la e
coagi-la a assumir custos, no limite com intervenção na empresa para saber a
extensão das ameaças que esconde.
No vácuo, o prefeito Neto Barros (PCdoB-ES), de B.Guandu (ES), fez o que cabe
diante das dimensões de um roteiro que começa com o colapso do abastecimento de
água, avança para doenças, inclusive câncer, encerra a destruição de cadeias
alimentares, representa a falência de agricultores e de cidades, e desemboca em
desemprego, revolta e migrações para periferias conflagradas.
Neto Barros fechou a ferrovia da Vale com a patrulha de máquinas da prefeitura
até que a presidência da empresa aceite negociar.
Pergunta: isso é terrorismo? É atentado?
Não.
Mutatis mutante isso é a reação desesperada à supremacia dos interesses de
mercado sobre a segurança da sociedade, o bem-estar das populações, a
preservação das fontes da vida e o direito ao futuro sonegados por um
bombardeio de lama.
Numa entrevista famosa em 2009, ao portal da revista Veja, FHC justificou a
venda da Vale do Rio Doce – que tinha em Serra o defensor mais entusiasmado,
entregou o ex-presidente-- entre outras razões, ao fato de a 2ª maior empresa
de minério do mundo ter se reduzido - na sua douta avaliação - a um cabide
empregos estatal, 'que não pagava imposto, nem investia'.
Filho dileto do ciclo tucano das grandes alienações públicas, Roger Agnelli
-presidente da Vale do Rio Doce de 2001 a 2011 -- foi durante anos reportado ao
país como a personificação da eficiência privada reconhecida nessa transação.
Com ele, graças a ele, e em decorrência da privatização-símbolo que ele
encarnou, a Vale tornou-se uma campeã na distribuição de lucros a acionistas.
Vedete das Bolsas, com faturamento turbinado pela demanda chinesa por minério
bruto, que o Brasil depois reimportava, na forma de trilhos, por exemplo, --a
única laminação para esse fim foi desativada pelo governo FHC-- a Vale
tornou-se o paradigma de desempenho corporativo aos olhos dos mercados.
Um banho de loja assegurado pelo colunismo econômico, ocultava a face de um
negócio rudimentar, um raspa-tacho do patrimônio mineral alçado à condição de
referência exemplar da narrativa privatista.
Agora se vê o mar de lama acumulado por debaixo do veludo.
A 'eficiência à la Agnelli' lambuzou o noticiário pró-mercadista durante uma
década de fastígio.
Da cobertura econômica à eleitoral, era o argumento vivo a exorcizar ameaças à
hegemonia dos 'livres mercados' pelo lulopopulismo.
Projetos soberanos de desenvolvimento, como o da área de petróleo, eram fuzilados
com a munição generosa da menina dos olhos do neoliberalismo: a Vale de
balancetes nas nuvens.
A política agressiva de distribuição de lucros aos acionistas --na verdade um
rentismo ostensivo, apoiado na lixiviação de recursos existentes, sem agregar
capacidade produtiva ao sistema econômico-- punha na Petrobrás o cabresto do
mau exemplo.
Era a resiliência estatista nacionalisteira, evidenciada em planos de
investimento encharcados de preocupação industrializante e 'onerosas' regras de
conteúdo local.
A teia de acionistas da Vale, formada por carteiras gordas de endinheirados,
bancos e fundos, com notável capilaridade midiática, nunca sonegou gratidão .
Enquanto o mundo mastigava avidamente o minério de teor de ferro mais elevado
do planeta, a Vale era incensada a cada balanço, seguido de robustas rodadas de
distribuição de lucros e champanhe.
No primeiro soluço da crise mundial, em 2008, a empresa administrada pela
lógica pró-cíclica dos rentistas reagiu como tal e inverteu o bote: foi a
primeira grande empresa a cortar 1.300 trabalhadores em dezembro daquele ano,
exatamente quando o governo Lula tomava medidas contracíclicas na frente do
crédito, do consumo e do investimento.
A Petrobrás não demitiu; reafirmou seus investimentos no pré-sal, da ordem de
US$ 200 bilhões até 2014.
Se a dirigisse um herói dos acionistas, teria rifado o pré-sal na mesma roleta
da Vale: predação imediatista, fastígio dos acionistas e prejuízos para o país.
Em seu último ano na empresa, Agnelli --apoiador confesso da candidatura
derrotada de Serra contra Dilma, em 2010-- distribuiu US$ 4 bi aos
acionistas.
Saiu carregado nos ombros da república dos dividendos.
Indiferente aos apelos de Lula, manteve-se até o fim fiel à lógica que o ungiu:
recusou-se a investir US$ 1,5 bi numa laminadora de trilhos que agregasse valor
a um naco das quase 300 milhões de toneladas de minério bruto exportadas
anualmente pela empresa.
Com a derrota de Serra, o conselho da Vale destituiu o camafeu ostensivo da
coalizão tucanorentista, em abril de 2011.
Agora se sabe que o centurião de alardeada proficiência administrativa, além de
recolher apenas 2% de royalties ao país, nunca conseguiu reunir recursos para
instalar uma simples buzina, que poderia ter salvo vidas levadas pelo mar de
lama que legou ao país, enquanto brindava os acionistas com bilhões.
Estamos diante de um exemplo em ponto pequeno da desordem global, que à falta
de melhor conceito, pode ser batizada de barbárie de mercado.
É rudimentar conceito. Porém é mais encorajador do que dizer apenas e
tristemente ‘somos todos idiotas’.