Rostislav
Ischenko
Como
poderia a Rússia, em apenas 20 anos, sem guerras ou outras perturbações,
erguer-se de uma posição de meia-colônia a uma reconhecida posição de líder
mundial, de igual entre as mais altas?
"Esrategistas"
abrangentes [do inglês ‘kitchen ‘strategists’’; uma alusão à expressão
‘everything, but the kitchen sink’: ‘tudo, mas a pia da cozinha’; tudo o que
pode ser concebido de uma dada situação (dicionário Collins)], que acreditam
sinceramente que um maciço ataque nuclear é a solução universal para qualquer
problema internacional (ou mesmo um confronto bem quente, perto de confronto
militar), estão insatisfeitos com a posição moderada da liderança russa na
crise com a Turquia. No entanto, eles consideram insuficiente até mesmo a
participação direta do exército russo no conflito sírio. Eles também estão
insatisfeitos com as atividades de Moscou na frente ucraniana.
Mas,
por alguma razão... ninguém faz uma pergunta simples: Como aconteceu que, de
repente, a Rússia começou não só a se levantar ativamente frente ao poder
hegemônico do mundo, mas a ganhar com sucesso contra ele em todas as frentes?
Por
que agora
No
final da década de 1990, a Rússia era um estado que econômica e financeiramente
estava a nível de Terceiro Mundo. Uma rebelião anti-oligarcas estava se
formando no país. Ela estava lutando uma guerra sem fim e sem esperança com
chechenos, que se espalhou ao Daguestão. A segurança nacional era garantida
apenas por armas nucleares, pois para realizar qualquer operação séria, mesmo
dentro de suas próprias fronteiras, o exército não tinha nem pessoal treinado
nem equipamentos modernos, a frota não poderia navegar, e a aviação não poderia
voar.
Com
certeza, qualquer um pode dizer como a indústria, incluindo a militar, foi
revivida gradualmente, como o crescente nível de vida estabilizou a situação
interna, como o exército foi modernizado.
Mas,
a pergunta-chave não é quem fez mais para reconstruir o exército russo: Shoygu,
Serdukov ou o Estado-Maior. A questão fundamental não é quem é o melhor
economista, Glaziev ou Kudrin, e se seria possível alocar ainda mais recursos
para as despesas sociais.
O
fator chave desconhecido nessa empreitada é o tempo. Mas, como a Rússia teve
tempo? Por que os EUA deram tempo à Rússia para preparar a resistência, para
crescer o músculo econômico e militar, para aniquilar o lobby pró-americano
financiado pelo Departamento de Estado na política e nos meios de comunicação?
Por
que o confronto aberto, no qual estamos agora à frente de Washington, não
começou mais cedo, 10 a 15 anos atrás, quando a Rússia não tinha chance de
suportar sanções? Na realidade, os EUA, na década de 1990 ou de 2000. começaram
a instalar regimes fantoches no espaço pós-soviético, incluindo Moscou, que foi
considerada uma das várias capitais da Rússia desmembrada.
O
conservadorismo saudável dos diplomatas
As
condições do sucesso militar e diplomático de hoje foram construídas por
décadas na frente invisível (diplomática).
Deve
ser dito que, entre ministérios centrais, o Ministério dos Assuntos Exteriores
foi o primeiro a recuperar-se da confusão administrativa decorrente do colapso
do fim da década de 1990. Ainda em 1996, Evgeny Primakov tornou-se Ministro dos
Assuntos Exteriores, e, além de virar de volta o avião do governo sobre o
Atlântico ao saber da agressão dos EUA contra a Jugoslávia, virou também a
política externa russa que, depois disso, nunca mais seguiu o curso dos Estados
Unidos.
Dois
anos e meio mais tarde, ele recomendou Igor Ivanov como seu sucessor, o qual
lentamente (de forma quase imperceptível), mas certamente, continuou a
fortalecer a diplomacia russa. Ele foi sucedido em 2004 pelo atual ministro
Sergey Lavrov, sob cuja liderança a diplomacia acumulou recursos suficientes
para mudar de uma posição de defesa para uma contundente posição ofensiva.
Entre
estes três ministros, só Ivanov recebeu a medalha Estrela de Herói; mas, tenho
certeza de que seu antecessor e seu sucessor são igualmente merecedores desse
prêmio.
Deve
ser dito que a tradicional proximidade de castas e o conservadorismo saudável
do corpo diplomático contribuíram para o rápido restabelecimento do trabalho do
Ministério dos Assuntos Exteriores. O tradicionalismo e a paciência de que os
diplomatas são acusados ajudaram. "Kozyrevshchina" [a palavra é
derivada do nome de Andrei Kozyrev, Ministro dos Assuntos Exteriores de 1990 a
1996; a palavra significa "agir como Kozyrev", ou seja, de forma subserviente,
contra seus próprios interesses – nota do tradutor] nunca pegou no Ministério
dos Assuntos Exteriores porque não se encaixava.
Período
de consolidação interna
Vamos
voltar a 1996. A Rússia está no fundo do poço, economicamente, mas o padrão de
1998 ainda está à frente. Os EUA desconsideram totalmente o direito
internacional, substituindo-o por suas ações arbitrárias. A OTAN e a UE estão
se preparando para mover-se para a fronteira russa.
A
Rússia não tem nada com o que responder. A Rússia (como a URSS antes dela) pode
aniquilar qualquer agressor em 20 minutos; mas, ninguém planeja combatê-la.
Qualquer desvio da linha aprovada por Washington, qualquer tentativa de
conduzir uma política externa independente, conduziria ao estrangulamento
econômico e à desestabilização interna subsequente – naquele tempo, o país
dependia de créditos ocidentais.
A
situação é ainda mais complicada pelo fato de que, até 1999, o poder está nas
mãos da elite compradora em dívida com os EUA (como o atual poder ucraniano), e,
até 2004-2005, os compradores ainda estão lutando pelo poder com a burocracia
patriótica de Putin. A última batalha na retaguarda, dada pelos compradores a
perder, foi uma tentativa de revolução em 2011, na Praça Bolotnaya. O que será
que teria acontecido se eles tivessem feito essa insurreição em 2000, quando
tinham uma vantagem esmagadora?
Os
líderes russos precisavam de tempo para consolidação interna; para restauração
dos sistemas econômico e financeiro, garantindo sua autossuficiência e
independência do Ocidente; e para reconstruir um exército moderno. Finalmente,
Rússia precisava de aliados.
Os
diplomatas tinham uma missão quase impossível. Era necessário, sem recuar sobre
questões-chave, consolidar a influência da Rússia nos Estados pós-soviéticos,
aliar-se com outros governos resistindo os EEUU, reforçando-os, se possível, e
ao mesmo tempo criar uma ilusão em Washington de que a Rússia era fraca e
estaria pronta a fazer concessões estratégicas.
A
ilusão da fraqueza da Rússia
Uma
demonstração do fato de que essa tarefa foi alcançada com êxito são os mitos
que ainda estão vivos entre alguns analistas Ocidentais e "oposição"
russa pró-americana. Por exemplo, se a Rússia se opõe a alguma instância do
aventureirismo ocidental, está "blefando para salvar a pele"; as
elites russas são totalmente dependentes do Ocidente porque "o dinheiro
está lá"; "a Rússia trai seus aliados".
No
entanto, os mitos de que "foguetes enferrujados não voam",
"soldados com fome estão construindo moradias para generais", e sobre
"economia em frangalhos" praticamente desapareceram. Apenas marginais
[os que estão ‘fora dos livros’, aquém do limite dos discursos; com referência
à posição filosófica – N.T.] acreditam nisso – esses marginais não são
realmente incapazes, mas têm medo de reconhecer a realidade.
Essas
ilusões de fraqueza e prontidão para retroceder que enganaram o Ocidente na
crença de que a questão russa fora resolvida e detiveram rápidos ataques
políticos e econômicos em Moscou deram à liderança russa o precioso tempo para
reformas.
Naturalmente,
nunca há muito tempo, e a Rússia teria preferido adiar o confronto direto com
os EUA, que começou em 2012-13, por mais 3-5 anos, ou até mesmo evitá-lo
completamente; mas, a diplomacia ganhou 12 a 15 anos para o país – um enorme
período de tempo no mundo rapidamente em mudança de hoje.
Diplomacia
russa na Ucrânia
Para
economizar espaço, vou dar apenas um exemplo muito claro, muito relevante na
situação política atual.
As
pessoas ainda culpam a Rússia por não conter os EUA na Ucrânia de forma
suficientemente ativa, por não conseguir criar uma "quinta coluna"
pró-russa para contrabalançar a pró-americana, por trabalhar com as elites e
não com as pessoas, etc. Avaliemos a situação com base em capacidades reais, ao
invés de ilusões.
Apesar
de todas as referências aos cidadãos, é a elite que determina a política do
Estado. A elite ucraniana, em todas as suas ações, sempre foi e ainda é
anti-russa. A diferença é que a elite ideologicamente nacionalista
(gradualmente se tornando nazista) era abertamente russofóbica, enquanto que a
elite econômica (compradora, oligárquica) era simplesmente pró-ocidental mas
não se opunha às ligações lucrativas com a Rússia.
Eu
gostaria de lembrá-lo que não foram outras pessoas, mas representantes do
supostamente pró-russo Partido das Regiões que gabavam-se de que não
permitiriam negócios russos em Donbass. Eles também eram aqueles que tentaram
convencer o mundo que eram melhores para a integração europeia do que os
nacionalistas.
O
regime de Yanukovich-Azarov precipitou o confronto econômico com a Rússia em
2013, exigindo que apesar de a Ucrânia assinar o tratado de associação com a
EU, a Rússia retivesse e até mesmo aprimorasse um regime favorável à Ucrânia.
Afinal de contas, Yanukovich e seus companheiros no Partido das Regiões,
enquanto tinham poder absoluto (2010-2013), suportaram nazistas informativamente,
financeiramente e politicamente. Eles os trouxeram de nicho marginal à política
dominante a fim de ter um adversário conveniente nas eleições presidenciais, em
2015, enquanto suprimiram qualquer atividade informativa pró-Rússia (para não
mencionar atividade política).
O
partido comunista ucraniano, mantendo a retórica pro-Rússia, nunca teve uma
chance no poder e desempenhou um papel de oposição leal conveniente
indiretamente apoiando oligarcas, canalizando a atividade de protesto em locais
seguros para qualquer poder (incluindo o atual).
Nessas
condições, qualquer tentativa russa de trabalhar com ONGs ou criar uma mídia
pró-Rússia seria percebida como uma invasão dos direitos dos oligarcas
ucranianos para roubar o país sozinha, o que causaria outro deslize do
oficialismo ucraniano em direção ao Ocidente, visto por Kiev como um contrapeso
para a Rússia. Os EUA, muito naturalmente, veriam isso como transição da Rússia
para o confronto direto e iriam redobrar seus esforços para desestabilizar a
Rússia e apoiar elites pró-ocidentais em todo o espaço pós-soviético.
Nem
em 2000, ou em 2004, a Rússia estava pronta para confrontar abertamente os EUA.
Mesmo quando (não por escolha de Moscou) isso aconteceu em 2013, a Rússia
precisava ainda de cerca de dois anos para mobilizar seus recursos a fim de dar
uma forte resposta ao conflito na Síria. A elite Síria, em contraste à
ucraniana, desde o início (2011-2012) rejeitou a opção de se comprometer com o
Ocidente.
É
por isso que, durante 12 anos (a partir de ação "Ucrânia sem Kuchma",
que foi a primeira tentativa de golpe pró-americano na Ucrânia), a diplomacia
russa trabalhou em duas frentes principais.
Primeiro,
ela procurou manter a situação na Ucrânia em equilíbrio instável; segundo, ela
procurou convencer a elite ucraniana de que o Ocidente era um perigo para seu
bem-estar, enquanto que uma reorientação para a Rússia seria a única forma de
estabilizar a situação e salvar o país, bem como a posição da elite em si.
A
primeira tarefa foi alcançada com êxito. Os EUA conseguiram alternar o modo
multidirecional da Ucrânia para o modo anti-russo somente em 2013, tendo gasto
uma enorme quantidade de tempo e recursos e tendo adquirido um regime com
enormes contradições internas, incapaz de existir independentemente (sem
crescente apoio americano). Em vez de usar recursos ucranianos em seu
benefício, os EUA é forçado agora a gastar seus próprios recursos para
prolongar a agonia do Estado ucraniano destruído pelo golpe de estado.
A
segunda tarefa não foi realizada devido a razões objetivas (independente dos
esforços da Rússia). A elite ucraniana acabou por ser totalmente inadequada,
incapaz de pensamento estratégico, de avaliar os riscos reais e as vantagens,
mas vivendo e agindo sob a influência de dois mitos: primeiro – o Ocidente vai
facilmente ganhar em qualquer confronto com a Rússia e partilhar os despojos
com a Ucrânia; segundo – nenhum esforço, exceto a inabalável posição
anti-russa, é necessário para uma existência confortável (às custas de
financiamento ocidental). Na situação de escolha entre voltar-se para a Rússia
e sobreviver, ou tomar o lado do Ocidente e morrer, a elite ucraniana escolheu
a morte.
No
entanto, mesmo com a escolha negativa da elite ucraniana, a diplomacia russa
conseguiu vantagem máxima. A Rússia não se deixou atolar num confronto com
regime ucraniano, forçando Kiev e o Ocidente a um processo de negociação
cansativo tendo como pano de fundo uma guerra civil moderada e excluindo os EUA
do formato de Minsk. Centrando-se nas contradições entre Washington e a UE, a
Rússia conseguiu sobrecarregar financeiramente a Ocidente com a Ucrânia.
Como
resultado, a posição consolidada inicialmente de Washington e Bruxelas se
desintegrou. Quanto à ofensiva-relâmpago [blitzkrieg] político-diplomática, os
políticos europeus não estavam preparados para um confronto prolongado; a
economia da UE simplesmente não podia apoiá-lo. Por sua vez, os EUA não estavam
prontos a aceitar Kiev exclusivamente na própria folha de pagamento.
Hoje,
após um ano e meio de esforços, a "velha Europa", que determina a
posição da UE, como a Alemanha e a França, abandonou a Ucrânia completamente e
está procurando uma maneira de estender uma mão para a Rússia sobre as cabeças
limítrofes do Leste Europeu pró-americano (Polônia e Países Bálticos). Até
Varsóvia, que costumava ser o principal "defensor" de Kiev na União
Europeia, abertamente (embora semi-oficialmente) sugere a possibilidade de
dividir a Ucrânia, tendo perdido a fé na capacidade das autoridades de Kiev a
manter o país unido.
Na
comunidade política e de especialistas ucraniana, a histeria sobre "a
traição da Europa" está crescendo. O ex-governador da região de Donetsk
(nomeado pelo regime nazista) e oligarca Taruta Sergey afirma que seu país tem
mais oito meses de existência. O oligarca Dmitry Firtash (que tinha a reputação
de "rei criador" ucraniano) prevê a desintegração na primavera.
Tudo
isso, silenciosa e imperceptivelmente, sem o uso de tanques e da aviação
estratégica, foi conseguido pela diplomacia russa. Alcançado em um confronto
difícil com o bloco dos países mais poderosos, militar e economicamente, a
partir de uma posição muito mais fraca e com os aliados mais peculiares, nem
todos felizes sobre o crescimento do poder russo.
Avanço
no Médio Oriente
Em
paralelo, a Rússia conseguiu: retornar ao Oriente; reter e desenvolver a
integração dentro do espaço pós-soviético (União Econômica Eurasiana);
juntamente com a China, implantar um projeto de integração da Eurásia
(Organização de Cooperação de Xangai); e dar início a um projeto de integração
global através do grupo BRICS.
Infelizmente,
o espaço limitado não nos permite discutir em detalhes todas as ações
estratégicas da diplomacia russa nos últimos 20 anos (a partir de Primakov até
hoje). Um estudo abrangente tomaria muitos volumes.
No
entanto, quem quiser tentar responder honestamente como Rússia conseguiu,
dentro de 20 anos, sem guerras ou convulsões, levantar-se de uma posição de
semicolônia a uma posição de líder reconhecida do mundo, teria que reconhecer
as contribuições de muitas pessoas na Smolenskaya Square [onde o Ministério dos
negócios estrangeiros está localizado – nota do tradutor]. Seus esforços não
toleram barulho ou publicidade; mas, sem sangue e sem vítimas, produzir
resultados comparáveis aos obtidos por exércitos de milhões em muitos anos.
Rostislav Ischenko
– Rede Voltaire.net - Tradução Marisa Choguill
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