sábado, 13 de fevereiro de 2016

OS EUA ESTÃO PRONTOS PARA UM PRESIDENTE SOCIALISTA?



Sanders nunca escondeu suas ideias, mas suas propostas para universalizar o sistema de saúde e reduzir as despesas de ensino fazem dele uma ameaça perigosa

The Guardian, em Carta Maior

A Dra. Krissy Haglund não se importa por ser rotulada como “socialista” ou “purista ideológica”. Nem com qualquer dos demais epítetos lançados sobre os americanos que estão se reunindo em apoio aBernie Sanders para a nomeação presidencial democrata. Ela sabe quem é: uma mulher farta.

"Eu tenho pacientes que estão optando por não ter filhos. Outros que não podem comprar uma casa devido aos gastos com empréstimos estudantis",disse a médica de família de Minneapolis, que nesta semana viajou quatro horas com os dois filhos para ver o senador discursar em Iowa.

"Meu empréstimo vale agora $283 mil dólares", diz ela. "Ele subiu em $60 mil nos últimos seis anos desde que me formei na escola de medicina. Esta é uma crise nacional que precisa de profunda e imediata atenção".

Como único candidato que propõe a supressão das despesas de ensino nas universidades públicas, Sanders frequentemente assume o papel de um leiloeiro às avessas, pedindo ao público, durante seus comícios, para gritar o tamanho da dívida estudantil que eles ainda têm a pagar. Por algum tempo, o recorde era de $300 mil. Mas agora ele conheceu um dentista que se formou com empréstimos de $400 mil..

Mas pagar as faculdades através de tributação sobre as especulações de Wall Street não é a única política que torna o senador de Vermont uma ameaça perigosa - inclusive para membros de seu próprio partido. Apesar das limitadas reformas no sistema de saúde passadas por Barack Obama, 29 milhões de americanos continuam sem qualquer cobertura e muitos mais estão subcobertos de tal forma que não podem se dar ao luxo de ver um médico.

Então Sanders faz o mesmo com os planos de saúde, pedindo ao público para competir quanto ao tamanho de sua franquia - o valor fixo por procedimento que deve ser pago pelo paciente antes que sua seguradora contribua com qualquer fração do tratamento. Em quase todos os comícios, alguém chega a $5 mil dólares, muitas vezes em lágrimas.

Seu plano para expandir o Medicare e substituir o atual sistema burocrático e dispendioso é semelhante ao modelo de seguro usado no Canadá, com um "único pagador" (ao invés da prestação direta do Estado, como no caso do Serviço Nacional de Saúde da Grã-Bretanha). A intenção é reduzir os altos custos causados %u20B%u20Bpor hospitais e empresas farmacêuticas que cobram os pequenos consumidores americanos muitas vezes o equivalente a outros países que se beneficiam do poder de compra em atacado.

No entanto, quando inevitavelmente alguém questiona se os EUA podem mesmo se dar ao luxo de seguir o caminho de outros países ricos que universalizaram a cobertura de saúde e o acesso ao ensino superior, Sanders gosta de lembrá-los dos trilhões de dólares de redistribuição de renda que já foram encaminhados na direção oposta: uma tendência que coloca em queda o salário médio, mas que garante 58% de todos os novos rendimentos indo para o top 1% (desde a crise do Subprime\2007).

"Basta" [ou “Enough is Enough”], gritam os membros da audiência.

"Há alguns anos atrás, você poderia terminar o ensino médio e conseguir um emprego. Se trabalhasse muito duro, talvez você fosse capaz de conseguir o que queria", concorda Anna Mead, 22, estudante de New Jersey, no comício de New Hampshire. "Agora as coisas certamente não funcionam mais assim. A desigualdade cresceu de tal forma ao longo das últimas décadas, que o top 1% acumulou uma quantidade de riqueza que excede os 40% mais pobres da população americana. Eu sinto que os Estados Unidos sempre avançaram quando presidentes agiram de modo a estender a classe média. Quando você constrói todo mundo, todo mundo pode fazer melhor".

Talvez pareça simplista essa noção, proposta por Sanders, de que um corrupto sistema de financiamento de campanha é a única coisa que impede os eleitores de transformarem toda essa realidade. Mas ela está se provando muito popular.

Do início da campanha até a abertura da corrida nas primárias democratas, Sanders fechou a diferença entre ele e Hillary Clinton, de 36% para apenas 2%, de acordo com pesquisa nacional divulgada na semana passada.

Embora poucos acreditem que esta sondagem possa ser um indicativo consistente do cenário nacional, a votação no caucus de Iowa resultou em um Sanders apenas 0,3% atrás de Clinton.

Em New Hampshire, na votação para o candidato democrata da terça-feira, Sanders derrotou Hillary com uma margem gigantesca: 60,4% para o socialista e apenas 38% para a ex-secretária de Estado. Os assessores da candidata já previam a derrota, mas torceram até o final por uma diferença menor do que dois dígitos. A esperança é a última que morre.

Algumas pessoas, porém, afirmam que New Hampshire foi seduzida principalmente pela proximidade com Vermont [estado do senador Sanders], um bastião progressista a que os iconoclastas mais libertários se referem com suspeita.

Este argumento ignora que o estado representado por Hillary Clinton no Congresso Nacional fica a apenas 50 milhas da fronteira com New Hampshire, além de que New York alegadamente guarda sentimentos ambíguos em relação à sua ex-senadora. De acordo com a campanha de Sanders, ela recusou os pedidos de realizar um debate ali.

No entanto, por mais que doa a seus apoiadores reconhecer qualquer fragilidade, Sanders está sob crescente pressão de Clinton durante os seus debates. A estratégia de ataque varia. Às vezes, ela argumenta que eles estão girando em falso ao debater quem é o verdadeiro progressista. Outras vezes ela afirma que as propostas do Sanders são irrealistas.

Em privado, a máquina de ataque da Clinton foi mais longe, acusando o candidato de simpatias comunistas. O que serve de prelúdio caso Sanders venha a enfrentar os republicanos, no evento ainda improvável de que ele vença as primárias democratas.

Sanders nunca escondeu o seu passado político e deixou muito pano na manga para os críticos. Mas é a sua firme determinação de não esconder o rótulo de "socialista democrático" que provoca ainda mais confusão.

Em um longo discurso na Universidade de Georgetown, em novembro passado, ele argumentou que sua filosofia política caminha em harmonia com a de Franklin D Roosevelt, que também propôs algo semelhante a uma mistura de obras públicas, auxílio aos pobres e reformas para tirar os EUA da Grande Depressão.

"Eu não sei o que queremos dizer quando dizemos que ele é um socialista, porque na minha concepção Bernie Sanders é um liberal FDR", concorda Sharon Ranzavage, 69, um advogado de Flemington, Nova Jersey. "Ele está de volta para o futuro. É por isso que eu estou animado. Eu acho que o Partido Democrata se desviou muito para a direita. Nós temos que voltar ao que somos, o que significa tomar conta uns dos outros. Nós somos um país capitalista, mas é preciso modular os extremos do capitalismo''.

A confusão também decorre do fato de que Sanders usa a frase "socialista democrático", em parte para enfatizar sua crença de que a mudança deve vir através das urnas, mas também porque, na Europa continental, pelo menos, ele provavelmente seria conhecido como um social-democrata, etiqueta que não se traduz com facilidade para os EUA.

''Democrata", no jargão dos EUA, é algo que o senador independente de Vermont só se tornou quando decidiu procurar a nomeação presidencial do partido em maio. Qualquer um que usa a palavra "social" na política americana poderia muito bem ir até o final e se dizer "socialista", antes que outra pessoa o faça.

Num contexto britânico, também seria difícil de categorizar Sanders. Muitas de suas propostas fundamentais - acesso universal aos cuidados de saúde, licença maternidade paga e um salário mínimo mais generoso - são aceitas, pelo menos em princípio, por todos os principais partidos britânicos, inclusive os conservadores, que recentemente defenderam um aumento salário mínimo como peça central do seu orçamento.

Em termos relativos, Sanders representa uma guinada para a esquerda no partido democrata, o que é análogo a recente vitória de Jeremy Corbyn na liderança da campanha trabalhista. Mas em termos de política externa e de comparações absolutas no que se refere a políticas domésticas, ele provavelmente se aproximaria mais das reformas trabalhistas pré-Blairistas dos anos 1980 e 90, como Neil Kinnock ou John Smith.

De volta a Nova Hampshire, nas últimas semanas, um estado de espírito radical é evocado em comícios que pedem uma "revolução política" e entoam Power to the People de John Lennon. Mas quando Sanders ergue seu punho para cima, ele rapidamente volta atrás, para evitar uma imagem muito estridente.

Vamos ter de esperar por vários resultados das primárias para saber se a política americana está pronta para um socialista auto-declarado. A resposta de apoiadores indica que esta é a pergunta errada: ''Eu sinto que finalmente tenho um político que irá corresponder meus sentimentos e esperanças para este país", diz Haglund.

Os EUA estão prontos para o socialismo? Provavelmente não. Mas podem estar prontos para Sanders

Perguntas

O que é errado em ser um socialista?

Dwayne Hamm, 23 anos, de New Brunswick, New Jersey:

''Eu acredito que as pessoas se confundem sobre o que significa ser um socialista e temem um supostamente perigoso comunismo(...). Você vai ver que não há nada errado. Tudo o que estamos pedindo é igualdade. E para aqueles que tem privilégios, isso pode parecer desconcertante. E eu sinto que esse é o problema''.

- É possível ser um socialista democrático?

Anna Mead, 22, de Long Beach, New Jersey:

''Eu não acho que o socialismo possa existir adequadamente sem democracia. O socialismo implica regulamentação comunitária dos meios de produção e distribuição''.

**Tradução por Allan Brum - Créditos da foto: Wikimedia Commons

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