segunda-feira, 21 de março de 2016

O REINO DAS DUNAS



Rui Peralta, Luanda 

Diferentes sinais e significados são perceptíveis na relação entre Riade e Moscovo. Os ministros do petróleo russos e sauditas encontraram-se, a 16 de Fevereiro em Doba, Qatar. Conjuntamente com o Qatar e com a Venezuela acordaram em congelar o aumento da produção petrolífera, mantendo os níveis de Janeiro deste ano. Esta foi uma decisão cuidadosa, devidamente calibrada, que permitiu – pela primeira vez em 18 meses – mostrar que a Arábia Saudita e a Rússia, ou seja os dois maiores produtores (sendo os sauditas os maiores no seio da OPEC e os russos fora da OPEC), preocupavam-se com a situação, dando inicio a um processo de gestão dos níveis de produção, tentando controlar a queda do preço do barril aplicando medidas do lado da oferta. 

Apesar deste diálogo no sector petrolífero, russos e sauditas na Síria mantiveram-se em posições opostas. A Rússia procurou uma solução politica, negociou e negocia as tréguas e um acordo alargado entre as diversas forças sírias que coloque um fim á guerra, ao mesmo tempo que foi decisiva no terreno ao atacar as posições do Daesh e ao auxiliar o reforço das forças governamentais sírias no território. Em contrapartida a Arábia Saudita ameaçou por diversas vezes enviar forças milites para território sírio, com o objectivo de combater o Daesh (sem nunca o fazer), apostou nos grupos armados da oposição (principalmente nos grupos sunitas) financiando-os, equipando-os e dando-lhes formação militar, a sua actuação em relação ao Daesh foi dúbia e acabou por tornar-se parte do problema na Síria.

Pouco antes da cimeira com os russos sobre o petróleo, o ministro saudita dos negócios estrangeiros, Adel Jubeir referiu o envio de forças militares sauditas para combater o Daesh, mas logo após a cimeira referiu que o governo saudita iria enviar misseis terra-ar para os grupos da oposição armada. O mais provável é os misseis serem usados contra a força aérea síria (uma vez que os russos cessaram as operações militares no território). Os sauditas acusaram os russos de terem bombardeado de forma indiscriminada o Daesh e os grupos oposicionistas sírios que combatiam o Daesh, mas um facto é que as tréguas continuam a vigorar, sem que o combate contra o Daeh tenha cessado. E isto constitui uma pesada derrota para os interesses sauditas.

Uma opinião comum nos meios oficiais da Arábia Saudita e no Qatar considera que os Estados do Golfo são ameaçados por uma aliança russa/iraniana e consideram que USA e U.E capitularam ao permitirem a “nuclearização” do Irão. Perante isto propõem o apoio a grupos que possam combater a “ameaça iraniana”, muitas vezes subentendida como “ameaça xiita”. Foi assim que 55 clérigos sauditas editaram uma “fatwa” (um apelo á jihad, ou seja, á guerra santa) contra o governo sírio (diabolizando o presidente sírio, Bashar al-Assad), os seus aliados russos (considerados cruzados, pelos clérigos) e iranianos (considerados apóstatas).

Recentemente alguns diplomatas e académicos sauditas conceberam a ideia de divulgar o país na Rússia. Os laços históricos entre ambos os países são escassos. Putin, em 2007, foi o primeiro líder russo a visitar a Arábia Saudita. O ex-chefe da inteligência saudita, Bandar bin Sultan visitou a Rússia e o ministro saudita da defesa, Mohammed bin Salman encontrou-se com Putin em 2015. Existem, efectivamente, potenciais áreas de comum interesse no aprofundar do relacionamento entre ambos. Os sauditas exploram áreas de interesse comum com a Rússia. A preocupação com o Irão é um dos pontos principais dos sauditas, para além das relações económicas. Os sauditas observaram atentamente como os israelitas iniciaram a aproximação com a Rússia e estão dispostos a avançar com entendimentos mais consistentes com os russos.

Mas a diplomacia saudita continua a persistir nas suas políticas erróneas. E isto é o que acontece com a política saudita em relação ao Líbano. As tensões latentes entre os dois países tomam proporções de ruptura de relações, processo causada pela rivalidade entre Riade e Teerão e que no Líbano reflecte-se na crescente influência xiita. A 19 de Fevereiro os sauditas anunciaram o cancelamento de 3 mil milhões de USD em ajuda ao exército libanês e cerca de mil milhões de USD para a polícia. Alguns dias depois o ministro dos negócios estrangeiros saudita pediu aos cidadãos para não viajarem ao Líbano, Em breve o Kuwait, os Emiratos Árabes Unidos (EUA), o Qatar e o Bahrein apoiaram a decisão saudita e juntaram-se á campanha.

Existem cerca de 300 mil trabalhadores libaneses nos Estados do Golfo, principalmente no pequeno comércio, hotelaria, turismo e construção. As relações económicas entre ambos os Estados são profundas. O investimento saudita no Líbano é importante e existe desde sempre. Na década de 60 o Líbano tornou-se uma zona tampão entre as hegemonias regionais. Na luta entre os regimes nacionalistas progressistas e as monarquias tradicionais as tensões internas libanesas desdobraram-se, tornando o país foi utilizado como um escudo saudita contra as tendências nacionalistas árabes. Os comerciantes libaneses de Beirute e de Sídon, maioritariamente sunitas reforçaram os seus laços comerciais com os sauditas e acabaram por promover os interesses da Arábia Saudita nas suas comunidades. Uma relação de subserviência acabou por submeter o Líbano aos interesses sauditas. 

O peso deste relacionamento não foi quebrado pelas guerras civis libanesas, nem pelas invasões sionistas ou sírias, mas sim pelo assassinato do primeiro-ministro libanês (descendente de famílias sauditas) Rafik Hariri em 2005. Desde aí o Irão e a Síria tomaram o lugar comercial da Arábia Saudita no país. A destruição da infra-estrutura libanesa, provocada pela guerra de 34 dias com Israel, foi o segundo golpe decisivo para o fim da hegemonia saudita no país. O Hezbollah tornou-se uma força política dominante no Líbano, ao encabeçar a resistência nacional contra a invasão israelita. Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah tornou-se um “Herói da Resistência”, reconhecido pelo Iraque, Jordânia, Síria, Irão e pelos Estados do Magrebe, isolando a posição saudita que acusava o Hezbollah de ter provocado a invasão israelita e de servir os interesses do Irão e da Síria. Ao invés de ajudarem a resistência libanesa contra Israel, os sauditas alimentaram o sectarismo sunita.

O novo monarca saudita, Salman bin Abdul-Aziz Al Saud e o seu filho o príncipe Mohammed bin Salman, radicalizaram as posições sauditas nas relações com os restantes estados da região e estabeleceu uma “diplomacia sunita”, suportada pelos seus aliados do Golfo e pela Turquia. Esta abordagem típica dos “falcões” da região (abordagem oposta á tradicional e delicada diplomacia árabe, tendente á resolução pacifica e dialogada dos conflitos) acabará por isolar os sauditas e seus aliados da região. Para um Poder regional como a Arábia Saudita a política de “disciplina e punição” utilizada nas relações com um pequeno Estado como o do Líbano, é contraproducente e trará consequências imprevisíveis nos equilíbrios da região.

Na sua ânsia de controlar a influência iraniana e de esmagar o Hezbollah no Líbano, os sauditas recorrem aos seus aliados na região mobilizam forças para a intensificação do conflito. Rabbo Mansour Hadi, o presidente iemenita suportado pelos sauditas, acusou o Hezbollah de apoiar os Houthis, seus rivais políticos, de origem xiita. Alguns dias depois o ministro saudita da defesa, Ahmad Assiri reforçou a acusação do presidente iemenita ao afirmar que os serviços de inteligência saudita tinham gravações e filmagens que comprovavam o envolvimento do Hezbollah na revolta Houthi. No mesmo dia surge um vídeo nas cadeias informativas internacionais, que apresenta imagens de um miliciano libanês do Hezbollah a dar instrução militar a um grupo de rebeldes houthis.

Os governantes sauditas e do Estados do Golfo pretendem alterar o Poder político no Líbano, seja através de uma força política emergente, seja através do enfraquecimento do Hezbollah, que antecipou-se às medidas dos Estados do Golfo enviando uma delegação ao Cairo. Esta delegação encontrou-se com oficiais egípcios que aceitaram servir de mediadores entre os sauditas e o Hezbollah. O problema é que os sauditas rejeitaram a mediação egípcia e consideraram que o Egipto é um Estado que suporta os Houthis (muitos destes fizeram a sua formação em universidades egípcias).

As retaliações sauditas contra o Líbano surpreenderam muitos observadores e são parte de uma série de medidas de segurança que Riade tomou contra figuras e partidos que operam, directa ou indirectamente, na Arábia Saudita a favor do Irão e do Hezbollah. Estas medidas incluem as restrições bancárias e controlo das contas bancárias, os investimentos e propriedades de 44 libaneses residentes na Arábia Saudita e considerados simpatizantes e afiliados do Hezbollah.

As autoridades sauditas também perseguem os clérigos xiitas nas províncias de Qatif e Ihsaa por estes efectuarem campanhas de recolhas de fundos nas comunidades xiitas da Arábia Saudita com o objectivo de criarem redes comunitárias de assistência social, educação e saúde. Alguns clérigos foram detidos nas operações contra “lavagem de dinheiro”, como o caso do Sheik Kaled Seif, julgado em Outubro do ano passado e condenado a uma pena de 5 anos.  As autoridades sauditas acusam o Hezbollah de ser uma “quinta coluna” do Irão que teria como missão penetrar no Golfo e paralisar os planos da Arábia Saudita para liderar a região, ao nível militar e de segurança.

Estas acusações radicalizaram-se quando o rei Salman bin Abdul-Aziz Al Saud ascendeu ao Poder e foram ampliados pelo seu ambicioso filho Mohammad bin Salman que lançou as operações de combate á “lavagem de dinheiro” (Operação Tempestade Decisiva). Os planos de combate ao Hezbollah e á “influência” iraniana continuaram quando os sauditas formaram a aliança para combater os houthis no Iémen, mais tarde ampliada em Dezembro com uma aliança de 34 Estados islâmicos para combate ao “terrorismo”.

O embaixador saudita em Beirute, Awad Assiri, lançou em Abril de 2013 uma campanha diplomática contra o Hezbollah. A campanha falhou, uma vez que o governo libanês não consegue controlar o Hezbollah. Agora Riade vai além da campanha diplomática e passou á “guerra económica”. Para já é visível uma situação que joga contra Riade: O principal afectado é o governo libanês, enquanto o Hezbollah não dá sinais de ser afectado pelas sanções sauditas.

Mas o combate ao Hezbollah, no Líbano e aos houthis no Iémen, não é a única preocupação saudita no seu braço de ferro contra o Irão. No Iraque desenrola-se uma nova campanha para os governantes sauditas, preocupados com as milícias xiitas no país, que trabalham coordenadas nas Unidades de Mobilização Popular do Iraque (UMPI), organização criada e suportada pelo Irão, em meados de 2014, com o objectivo de combater o Daesh no Iraque.

Esta organização engloba mais de 40 grupos e milícias xiitas iraquianas (os principais são o Asa`ib Ahl al-Haq, o Kata`ib Hezbollah e a Organização Badr). Os sauditas e as milícias sunitas iraquianas acusam o UMPI de albergar milícias xiitas causadoras de massacres entre as comunidades sunitas. O próprio UMPI é considerado, pelos sauditas e seus aliados no terreno, uma organização sectária xiita que tem como objectivo realizar uma revolução xiita no Iraque, ao estilo iraniano.

Preparando-se para efectuar um ataque a estas milícias num futuro próximo, está a ser efectuado no Norte da Arábia Saudita, junto á fronteira com o Iraque, um exercício militar massivo, sob o nome de código “Trovão do Norte”, que engloba combatentes dos grupos sunitas iraquianos aliados da coligação antiterrorista. No exercício militar participam forças terrestres, aéreas e navais, conduzidas pela Guarda Nacional Saudita, sendo as forças terrestres constituídas por cerca de 75 mil elementos, incluindo forças especiais, infantaria, artilharia e cavalaria às quais se juntam forças aérea e navais de 20 países, incluindo o Paquistão, Egipto, Malásia, Sudão, Jordânia, Marrocos, Tunísia, Senegal, Mauritânia, Chade e os Estados do Golfo, num total de aproximadamente 200 mil elementos.

Esta coligação liderada pela Arábia Saudita justifica o exercício devido ao que considera ser a negligência dos USA e da NATO perante as milícias xiitas iraquianas, constituídas por mais de 100 mil combatentes e equipadas pelo Irão. Algumas destas milícias (caso da Asa´ib Ahl al-Haq e da Organização Badr) estão activas desde a sublevação xiita iraquiana em 2004. Por sua vez a Kata´ib Hezbollah, cujos militantes combateram na Síria, ao lado das forças governamentais de Bashir al-Assad e no Líbano ao lado do Hezbollah, consta na lista de organizações terroristas do Departamento de Defesa dos USA, uma vez que o grupo combateu contra a invasão norte-americana no Iraque, sendo responsável por diversas acções e atentados contra as forças norte-americanas e aliadas. Quanto á Organização Badr, formada no Irão em 1982, como ala militar do Supremo Conselho para a Revolução Islâmica no Iraque (SCRII), é conhecida pelos seus grupos especiais (estilo esquadrões da morte) e pela sua capacidade logística (infantaria ligeira e artilharia antiaérea) sendo conhecidas as suas acções militares e atentados contra o governo de Sadam Hussein e mais tarde contra as forças de ocupação, além de serem acusadas de massacres perpetrados contra as comunidades sunitas iraquianas.

No início do ano o embaixador saudita em Bagdade acusou as forças xiitas iraquianas de estarem a intensificar as tensões sectárias na região, considerando “exacerbado” o seu número de combatentes na coligação contra o Daesh. O embaixador acusou as milícias xiitas iraquianas de executarem cerca de 40 líderes comunitários sunitas e de incendiarem 9 mesquitas sunitas em retaliação pelos atentados que matarem cerca de 25 milicianos xiitas em princípios de Janeiro.
O “Reino”, temendo um eventual isolamento (devido á posição russa, que retirou-lhe a iniciativa na região) e frustrado com a derrota diplomática dos seus aliados ocidentais, tenta manter a sua influência na região. Nem que para isso tenha de recorrer á ameaça, á extorsão e á guerra, arrastando o Ocidente e toda a região para o caos e para o “Inferno do deserto”…

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