terça-feira, 1 de março de 2016

OS OLEODUTOS DA MORTE E DA DESTRUIÇÃO



 Rui Peralta, Luanda

Especiais agradecimentos, pela sua colaboração, aos jornalistas Ashraf al-Falahi (al-Monitor) e Nafeez Ahmed (Middle East Eye).

Taiz, outrora uma próspera cidade do Sul do Iémen, é um pesadelo onde impera a morte e a destruição. Desde Abril de 2015, quando se iniciaram os combates entre as forças Houthi e as falanges do deposto presidente Ali Abdullah Saleh, a dor e a tristeza tornaram-se o quotidiano dos cidadãos de Taiz. O cenário é, no que respeita ao drama humano, idêntico ao de muitas cidades sírias. A situação catastrófica levou o Programa Mundial para o combate á Fome, das Nações Unidas, a considerar urgente a sua intervenção na cidade.

Cerca de 70% dos 600 mil habitantes da cidade partiram para zonas seguras fora da cidade. A situação humanitária é trágica e na cidade não há alimentação nem medicamentos. Os bombardeamentos constantes provocam um cenário de caos e destruição e semeiam a morte. Feridos e refugiados formam colunas aguardando por um momento de tréguas para saírem da cidade. A ajuda internacional, quando chega, não cobre mais de 5% das necessidades dos que se encontram cercados na cidade.

Taiz, em 2011, rebelou-se contra Saleh. Quando as forças governamentais tomaram a cidade, esta tornou-se num bastião de resistência contra o anterior presidente. As forças Houthis cercam a cidade, controlada pelas milícias fieis a Saleh, e as forças leais ao actual presidente Abed Rabbo Mansour Hadi – suportado pela Arábia Saudita e com o apoio dos USA – não conseguem retomar a cidade. Aos poucos as forças Houthis – apoiadas pelo Irão – apertam o cerco sobre as milícias de Saleh e avançam para o controlo da cidade. 

Quanto ao exército leal ao actual presidente Abed Hadi, encontra-se em divergências internas devido a um desentendimento entre os Emiratos Árabes Unidos e a Arábia Saudita. Os sauditas apoiam o Islah (Partido da Congregação iemenita para a Reforma), que faz parte da Irmandade Muçulmana (IM), enquanto os Emiratos consideram que a IM é um inimigo a combater e tão perigoso como os xiitas Houthis apoiados pelo Irão.

A situação de Taiz é um espelho da situação em que se encontra o Iémen. Um milhão de refugiados já foram gerados por esta guerra. Mais de 14 milhões de pessoas padecem de má nutrição. 3 Milhões de crianças estão subnutridas. Por todo o país calcula-se que cerca de 20 milhões de pessoas carecem de água potável. A força aérea Saudita bombardeia sistematicamente a infra-estrutura civil. Um relatório das Nações Unidas, enviado para o Conselho de Segurança, refere que os sauditas efectuam ataques aéreos contra civis e objectivos civis, incluindo campos de refugiados, além de bombardearem indiscriminadamente hospitais, escolas, mesquitas e mercados. Estes bombardeamentos já destruíram o aeroporto de Sanaa, o porto de Hudaida e grande parte das estradas e vias de comunicação. O relatório conclui que estas acções são crime de guerra, posição que já foi, timidamente, assumida pelo secretário-geral da ONU.

Os governos norte-americano e britânico fornecem armas á Arábia Saudita não querem responsabilizar-se por estes crimes de guerra, afirmando que apenas prestam assessoria militar e que não estão directamente envolvidos nas operações da coligação liderada pela Arábia Saudita. Mas estas afirmações entram em contradição com as declarações do ministro das relações exteriores do reino saudita, Adel al-Jubeir, que revelam a participação de militares britânicos e norte-americanos nas operações e ao nível do centro de comando dos ataques aéreos contra o Iémen. Em Abril de 2015 o vice-secretário de Estado norte-americano Anthony J. Blinken afirmou, em Riade, que os USA aumentaram os intercâmbios ao nível dos serviços de inteligência com a Arábia Saudita e criaram um centro de planificação conjunta de coordenação que incluía a selecção de objectivos militares.

Os objectivos da coligação encabeçada pelos sauditas são baseados no pressuposto de que os houthis são uma força dominada pelo Irão e que a rebelião houthi é um componente do cerco estratégico a que o Irão tenta submeter os Estados do Golfo, cerco que foi iniciado no Iraque e que se encontra agora reforçado pela participação iraniana na Síria e no Líbano. A esta dedução a Arábia Saudita acrescenta o acordo nuclear que permitiu ao Irão integrar-se na economia-mundo, abrindo a este país os poços petrolíferos e de gaz, consolidando a sua posição regional.

Mas estes pressupostos tornam os objectivos dos sauditas pouco claros. Bernadette Meehan, porta-voz do Conselho Nacional de Segurança da administração Obama afirmou que o Irão não controla a rebelião houthi. Por sua vez Jamal Benomar, enviado especial da ONU para o Iémen, afirmou, ao Wall Street Journal, que os ataques aéreos sauditas impediram um acordo de paz, encabeçado pelo Irão, que teria permitido um acordo entre os grupos políticos rivais e uma repartição do Poder politico entre os beligerantes, criando condições para uma transição que permitisse criar condições para implementar um Iémen democrático.

Uma resolução de paz que encaminhe o Iémen para uma democracia é algo que contrasta com os interesses norte-americanos na região. Para os USA o Iémen tem uma importância estratégica relativa, em função da estabilidade da Arábia Saudita e das restantes petro-monarquias do Golfo. O território e as ilhas iemenitas desempenham um papel-chave na segurança de um ponto de passagem obrigatório localizado no extremo-sudeste do Mar Vermelho, a Porta das Lágrimas (Bab al-Mandab), um estreito que é passagem obrigatória entre o Corno de África e o Próximo-Oriente e de importância estratégica para o controlo do fluxo entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Indico. Pela Porta das Lágrimas circulam a maioria das exportações provindas do Golfo Pérsico, que passam pelo Canal do Suez, além do oleoduto SUMED, na linha Suez-Mediterrâneo.

Um Iémen soberano e democrático seria um sério concorrente que poderia ameaçar o tráfico pelo Canal do Suez, assim como o fluxo diário de petróleo e seus derivados, cujo fluxo foi incrementado substancialmente (de 2,9 milhões de barris/dia em 2009 para 3,8 milhões de barria/dia em 2013), segunda a EIA (Agência de Informação sobre Energia, da administração norte-americana). Por outro lado o Iémen tem um potencial ainda não explorado, que o constitui como alternativa de rotas de transporte marítimo do petróleo e gaz sauditas, evitando o Estreito de Ormuz e o Golfo Pérsico, que poderão ser bloqueados pelo Irão, em caso de conflito.

A Arábia Saudita pretende explorar este potencial construindo um oleoduto, cuja propriedade seria em exclusivo dos sauditas, através de Hadramawt, até a um porto no Golfo de Áden, Saleh sempre se opôs a este projecto, mas a Arábia Saudita conseguiu o apoio de altos oficiais militares iemenitas e comprou a lealdade dos chefes tribais, posicionando-se para garantir os direitos sobre este projecto. Não é por acaso que a província de Hadramawt não sofreu os bombardeamentos sauditas. Esta é a maior província do Iémen, onde se localizam a maior parte do gaz e petróleo produzidos no país e o seu governador é um dos maiores apoiantes iemenitas ao projecto saudita…

O projecto do oleoduto nasce do facto de as monarquias do Golfo viverem no temor de que o Irão bloqueará, num futuro próximo, o Estreito de Ormuz, o que as leva a procurar alternativas, pressionadas pelo seu medo, mas também pressionadas pelos USA, que têm os mesmos receios. Assim, em 2007, Arábia Saudita, Bahrain, Emiratos Árabes Unidos (EAU), Omã e Iémen, empreenderam em conjunto o projecto do Oleoduto Transarábia. Este projecto implicava a construção de diversas linhas de abastecimento, a serem iniciadas na cidade saudita de Ras Tannurah, uma linha nos EAU (no Emirato de Fujairah, ligando-o ao Gofo de Omã), duas linhas em Omã e duas linhas no Iémen (que colocaria o petróleo e o gaz no Golfo de Áden). Em 2012 entrou em funcionamento a conexão Abu Dhabi / Fujairah, nos EUA. No entanto Omã e Irão efectuaram um acordo sobre um projecto bilateral para construção de um oleoduto, o que despertou a desconfiança da Arábia Saudita, aumentando o atractivo pela opção Hadramawt, no Iémen. O presidente Saleh (um firme apoiante do Transarábia) era um obstáculo á opção Hadramawt, por este ser um projecto exclusivo dos sauditas.

As esperanças da Arábia Saudita, residiam no próprio regime de Saleh, como vimos, entre as chefias militares e os chefes tribais, na esperança de pressionarem Saleh, ou de um eventual sucessor no seio do regime mas, em 2011, os levantamentos populares, que exigiam a democracia, frustraram os planos sauditas e obrigaram á passagem do “Plano B”: a al-Qaeda da Península Arábica (AQAP, pelas suas siglas em inglês).

Esta organização foi beneficiada pela estratégia saudita no Iémen. Em Hadramawt o porto e o aeroporto internacional de al-Mukalla estão sob controlo da AQAP, em óptimas condições e nunca sofreram qualquer ataque aéreo saudita. Aliás o exército saudita abastece a AQAP em Hadramawt, com armas, munições e equipamentos. Esta aliança saiu á luz do dia em Junho de 2015, quando o governo de transição de Mansour Hadi, apoiado pela Arábia Saudita, enviou um representante a Genebra, como delegado oficial para as negociações com a ONU. O representante iemenita era Abdulwahab Humayqani, identificado em 2013 pelas autoridades fiscais norte-americanas como um recrutador de apoios financeiros da AQ, embora o seu cadastro remontasse a 2012 quando dirigiu um atentado (carro-bomba) a um quartel da Guarda Republicana iemenita, que causou a morte a 7 pessoas.

A Arábia Saudita e seus aliados armam uma grande quantidade de milícias no Sul do Iémen, Uma grande parte deste armamento e financiamento vão para a AQAP, um delegado útil para os sauditas, na sua guerra contra os houthis. O que levanta uma questão: e o que acontece com o Estado Islâmico? A resposta é simples: é, também um beneficiado da ajuda saudita, embora em menor grau. E em menoridade porque o que está a ser preparado é o caminho para o surgimento do Estado Islâmico no Iémen, assim como para o ressurgimento da AQ.

Existe uma lição a reter no caso do Iémen: a Arábia Saudita não quer um Iémen forte e democrático no outro lado da fronteira (fronteira com mais de mil e 500 km). Para as petro-monarquias do Golfo, em geral, e para os sauditas, em particular, é necessário um Iémen submisso e submetido aos ditames imperiais e neocoloniais. E a guerra, hoje (como o prova a invasão norte-americana ao Iraque, ou a destruturação que a NATO provocou na Líbia), não impede os oleodutos e gasodutos de funcionarem, desde que se pague tributo…e no Iémen os sauditas anteciparam o pagamento e transformaram-no em salário. 

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