Hoje,
evitar o impeachment. Mas em seguida, inventar lógicas que recuperem a política
como projeto coletivo, resgatem a esfera pública e reabilitem a potência da
ação coletiva
Tatiana
Roque – Outras Palavras
Defender
a democracia. Esse é o mote que tem reunido ações de diferentes correntes
político-partidárias. Há um sentimento de que há algo em risco, algo bem maior
que o governo. Mas parece exagero pensar, por outro lado, que uma ditadura nos
espreita, nem mesmo um projeto coordenado de usar meios autoritários que
ameacem a liberdade do cidadão comum. A percepção de que a democracia está
fragilizada é real, mas, ao invés de representar um retorno ao passado, pode
ser explicada por uma compreensão aguda da atual fase do capitalismo
neoliberal. Lembremos que, no pedido de impeachment, o suposto crime de
responsabilidade seria um desrespeito à austeridade fiscal. Ou seja, se julgado
procedente, representará uma criminalização da política econômica.
O
neoliberalismo está muito além, contudo, de uma orientação da economia.
Trata-se de uma racionalidade política que envolve um tipo preciso de
organização social, um modelo de Estado e mecanismos eficazes de produção de
subjetividade. Práticas de governança, nos termos de Foucault, que se traduzem
como uma razão política normativa que abarca muitos campos para além daqueles
ligados ao mercado.
Entendido
desse modo, o neoliberalismo implica uma desativação de diversos princípios que
regem a democracia liberal. Só para dar alguns exemplos de fenômenos em curso:
-
suspensão da separação entre esfera pública e esfera privada;
-
tratamento de opções políticas como ofertas concorrentes que o
cidadão-consumidor deve escolher;
-
conformação da ação pública aos critérios da produtividade e da rentabilidade;
-
exacerbação dos poderes de polícia, que deixa de estar submetida a qualquer
controle;
-
desvalorização simbólica da lei, considerada mais tática do que princípio, com
consequente fragilização do sistema jurídico;
-
confusão entre as esferas política e econômica;
-
centralidade dos temas da gestão para a avaliação da boa governança.
A
democracia liberal, diante desse quadro, segue operando como esfera política
ideal, mas perde sua face normativa. Wendy Brown1 chega a denominar
des-democratização a desativação atual de fundamentos como: igualdade,
universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania,
regras ditadas pela lei e imprensa livre. Pierre Dardot e Christian Laval2 ressaltam que o neoliberalismo
é distinto do liberalismo clássico justamente pela função proeminente do Estado
que deve, ao mesmo tempo, construir o mercado e se construir segundo as normas
do mercado. As leis do mercado deixam de ser concebidas, portanto, como leis
naturais e cabe ao Estado garantir o bom funcionamento da concorrência. Seu
papel é deslocado, assim, da esfera da justiça e das garantias ao cidadão para
a esfera da gestão, cuja função é gerar um ambiente propício para a ação das
empresas. A partir dessa lógica, podemos entender que seja mais importante
respeitar a meta fiscal do que garantir o pagamento dos programas sociais, ou o
financiamento da universidade pública. A lei adquire um papel tático que pode
ser flexibilizado em prol da performance: uma legalidade de resultados.
Essas
mudanças impõem-se gradativamente em um ambiente social degradado, em um mundo
no qual a participação política é percebida como inócua: só nos resta cuidar de
nossas vidas, pois a ação coletiva não tem consequência e não dá retorno algum.
O indivíduo deve ser empresário de si, ficando responsável pela sua sorte, pelo
investimento em si mesmo, como um capital que deve render frutos, mantendo-se
produtivo e empregável. Além disso, a racionalidade liberal responsabiliza o
indivíduo pela solução de problemas tipicamente sociais, como educação e saúde.
Como consequência, os direitos do cidadão seguem cada vez uma lógica de
direitos do consumidor.
Compreende-se,
assim, o esvaziamento da política: o desinteresse do cidadão pela esfera
pública, a desvalorização do bem público e da ordem jurídica. No momento em que
vivemos, a dissolução da democracia corresponde ao esgotamento desses
pressupostos. Mais do que o risco de qualquer regime autoritário, estamos
diante de uma indiferenciação dos regimes políticos: não importam os partidos,
não importam os governos, as práticas de gestão e as políticas de austeridade
serão as mesmas.
Diante
da dificuldade desse quadro, a esquerda se vê frequentemente na posição
desconfortável de defender um regime em declínio. Defender a democracia liberal
é o que temos para hoje, mas depois de amanhã precisaremos de diagnósticos mais
eficazes. O desafio é inventar racionalidades políticas à altura do que o
neoliberalismo tem de inédito e, sobretudo, do que tem de operacional em todas as
esferas da existência.
1 Wendy Brown, “American Nightmare:
Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization”. Political Theory,
Vol. 34, No. 6, 2006, pp. 690-714.
2 Christian Laval ePierre Dardot, A
nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoliberal. Boitempo Editorial,
Coleção Estado de Sítio, 2016.
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