Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
No
relatório da sua recente inspeção em Portugal, o FMI diz-se muito preocupado
com o impacto negativo "da reversão de algumas reformas estruturais, tais
como uma possivelmente menos flexível negociação coletiva e um salário mínimo
mais elevado".
O
FMI sofre de obsessão crónica com os salários - com os "custos
salariais", como eles dizem - e agora com a possibilidade de se realizarem
políticas que permitam alguma recuperação do seu valor, seja através de
revitalização da negociação coletiva (de que até agora não há sinais), seja
através do aumento do salário mínimo, que só timidamente foi atualizado. É a
persistência na tecla: a competitividade exige que os salários continuem a
baixar.
De
tempos a tempos, lá surge um alto funcionário da instituição a demonstrar que
esse caminho é errado, mas a submissão à agenda neoliberal e aos supremos
interesses do poder económico e financeiro predomina sempre. Até parece que o
FMI não é capaz de aprender que:
1)
a redução dos "custos salariais", ao contrário de aumentar a
"competitividade" de quem a pratica, tem um efeito desqualificante
sobre o modelo de desenvolvimento, altera a repartição do rendimento entre
capital e trabalho em desfavor deste, enfraquece a segurança social, comprime a
procura de bens e serviços e acaba, quase sempre, por não criar emprego;
2)
o aumento dos rendimentos dos capitais não se transforma em investimento
produtivo quando a procura de bens e serviços está deprimida e o emprego cai;
3)
os capitais não aplicados na esfera produtiva desviam-se para os mercados
financeiros sob a forma de crédito ou de aquisição de ativos (ações,
obrigações, casas e terrenos, colheitas que ainda não foram semeadas,
matérias-primas que ainda não foram extraídas);
4)
a existência de crédito abundante pode, durante algum tempo, alimentar a
procura tornada escassa por falta de rendimento dos assalariados, mas acaba por
explodir em crises bancárias;
5)
o desvio dos capitais para a esfera financeira tende a sobrevalorizar
artificialmente o valor dos ativos, produzindo bolhas que ao rebentar se
transformam em dívidas de todos;
6)
os capitais mais chorudamente remunerados têm a "vocação" de fugir
aos impostos e de se esconderem em paraísos fiscais;
7)
os estados, ao ficarem privados das receitas fiscais, são condenados ao colapso
dos seus orçamentos, ficam incapacitados de cumprir as suas obrigações para com
os cidadãos na saúde, no ensino, na justiça, na proteção social e em outras
áreas.
Isto
está tudo ligado. Na origem das crises que se sucedem está a pressão sobre os
salários e a não utilização da riqueza para a criação de emprego, seja em
Portugal, seja na Alemanha, seja nos EUA, seja mesmo em países ditos
emergentes.
O
trabalho é a fonte do valor, assim diziam os clássicos da economia. Todas as
outras "fontes" são, em grande parte, ilusórias. Pode dizer-se que
para além de ilusórias elas são predatórias: alimentam-se do valor criado pelo
trabalho. Quando a especulação se sobrepõe ao trabalho e ao investimento
produtivo, o barco começa a meter água submergindo primeiro os que remam no
porão, depois os que ocupam o convés e por último os chicos-espertos que
treparam à gávea.
O
barco da economia e da finança mundial está a meter água, muita água. É preciso
nadarmos na direção da devolução do valor ao trabalho.
Existe
riqueza, condições e formas para a distribuir melhor. Há necessidade e
possibilidade de se criarem milhões e milhões de empregos úteis, do ponto de
vista económico, social e cultural, favorecendo a resolução de problemas graves
com que nos deparamos: empregos motivadores e que nos responsabilizem a todos
no funcionamento das sociedades. Ponha-se termo a esta louca especulação e ao
roubo que sustentam os offshores.
Entretanto,
cuidemos dos salários: se logo na produção da riqueza não se garantir uma
distribuição justa que se reflita na valorização do salário, dificilmente a
justiça distributiva será recuperada depois, através do sistema fiscal. Os
escândalos e os "roubos legais" monstruosos a que hoje assistimos
provam, à exaustão, que os sistemas redistributivos resistem muito mal à greve
do capital.
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