Miguel
Guedes* - Jornal de Notícias, opinião
Longe
de ser um brasileirismo, objecto radiológico ou uma questão de hereditariedade.
Quem pretender reduzir o caso das "salutares bofetadas" virtuais de
João Soares a uma questão de sangue e genes, radiografia com caracteres
primários em transmissão por nome de família no longo avental genealógico da
democracia portuguesa, tropeça na facilidade da análise a tender para o
desaforo. Ainda que nos recordemos dos pequenos humores de Mário Soares
sintetizados para a posteridade na forma desabrido-bonacheirona com que
vociferava "Ó senhor guarda, desapareça!" em plena Estrada Nacional
10, na presidência aberta de 1993 em Lisboa. Ainda assim, é curto morder a
língua e soletrar "runs in the family".
Até
porque a realidade contemporânea se encarrega de nos abrir portas em família, é
desnecessário recuar no tempo para relembrar os antagonismos entre os irmãos
bíblicos Abel e Caim ou as relações - na mitologia grega - entre Urano, Cronos
e respectiva descendência. Convém ter a noção das conveniências e do peso das
comparações. E é por isso que não é compreensível que João Soares se defenda
pela comparação com o estilo de Eça de Queiroz. Eça poderia anunciar bofetadas
enquanto cônsul mas nunca foi ministro e, estou certo, nunca abriria uma conta
no Facebook ou nas linhas dos livros para colocar na boca de "uma
amiga" referências à saúde mental ou consumo de álcool dos outros.
Porventura, à falta de neurologistas, bebia-o.
O
trabalho cultural desenvolvido por João Soares enquanto presidente da Câmara de
Lisboa tem sido bastante valorizado e foi repetidamente colocado em cima da
mesa como argumento aquando da sua nomeação para ministro da Cultura. Mas mesmo
aqueles que olhavam com desconfiança ou desilusão para o nome que personificava
a transformação de uma Secretaria de Estado num Ministério, concordavam na tese
do peso relativo: se João Soares não era um peso pesado da intelectualidade ou
da gestão cultural, parecia inegável que importava para a cultura um enorme
peso político. Então por que se esqueceu de ser político, conquistando - em
poucas semanas - a fama de ser o ministro que menos dialogava com os próprios
partidos que lhe "emprestavam" apoio parlamentar? Por que se esqueceu
de ser ministro para aparentar um enorme erro de casting?
Para
a chapa ou fotografia fica um problema que António Costa resolveu após curta criação.
João Soares seria sempre uma pequena bomba em contra-relógio. Porventura, nunca
se adaptaria. E o aviso fica dado. Para memória futura, sobra a certeza de que
nenhum ministro duvidará da autoridade pragmática de Costa, nome de família do
primeiro-ministro que ainda não cumpriu a promessa de nos devolver um
Ministério. Que seja desta.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico
e advogado
Sem comentários:
Enviar um comentário