Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião (ontem)
Hoje
poderemos estar a viver politicamente o último dia do Reino Unido na União
Europeia (EU). O referendo de amanhã à permanência do Reino Unido na UE pode
mesmo apontar o caminho da rua pelas mãos de Cameron, o exterminador
implacável. A longa-metragem do "Brexit" escreve-se pelas mãos de um
David e não de um James. David Cameron, primeiro-ministro, pode passar à
história por ter sido o homem capaz de contribuir decisivamente para a
desintegração da EU e, em simultâneo, para a desagregação do Reino Unido onde a
Escócia nem parece passar pelas medidas dos ajustes da porta de saída.
Na
realidade, este foi sempre um fato feito à medida de um estado que nunca
abraçou o projecto europeu e que dele nunca foi crítico senão em proveito
próprio. O cínico Reino Unido pode deixar a UE pela mão de um David sem
virtudes, armado em Golias do neoliberalismo. Mais do mesmo, depois de ficar de
fora da moeda única ou da Carta dos Direitos Fundamentais, de Schengen ou do
que quer que seja que implicasse acerto e resolução comum. Sem nunca
influenciar a política europeia e sem nunca exercer juízo crítico pelo facto de
estar pé-meio-fora-meio-dentro, o Reino Unido sempre foi uma espécie de
empecilho que dava jeito às contas. Um espantalho na terra por lavrar.
Tony
Blair também resolveu brincar com o fogo há cerca de uma década: "Let the
issue be put. Let the battle be joined", disse. Mas quando lançou o debate
para um referendo à Constituição europeia em 2004, ainda foi a tempo de recuar
após a experiência da França e Holanda. Hoje a realidade mudou. E Cameron só
tarde terá percebido o beco sem luz em que se enfiou quando, em nome da sua
sobrevivência política e do populismo, anunciou o referendo em Janeiro de 2013.
A extrema-direita europeia mudou, cresceu, fortaleceu-se. O neoliberalismo
afundou a Europa na eurocracia do défice e do empobrecimento. A democracia e o
poder de decisão equitativo na UE tem sido sempre o parente pobre de um
projecto de construção ao contrário. As pessoas deixaram de acreditar que a
moeda revelasse um rosto na outra face. Será triste mas revelador que a
hipotética saída do Reino Unido da União Europeia seja uma vitória da Direita
mais conservadora mas, pelo contrário, a hipotética permanência não seja uma
vitória da Esquerda mais progressista. A Europa já perdeu.
A
história conta que Portugal e Reino Unido mantêm a mais antiga aliança do
Mundo, firmada em 1386. Mas este é já um assunto particular, revestido pelo pó
da prateleira dos protocolos. O Reino Unido, após as cedência que conseguiu da
UE e mesmo que permaneça, é só uma presunção de conforto. A aliança já não cabe
no dedo.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e advogado
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