Artigo
publicado na edição do Expresso do passado dia 18 de Junho de 2016, que consideramos de
interesse para o conhecimento das várias vertentes que anunciam o desmoronar da
chamada União Europeia.
Leia com olhos de gente o texto… e use a sua cabeça na
abordagem que pomos aqui à sua disposição. Lembre-se que apesar de tudo foi-se um sonho mas “o
mundo pula e avança” – como diz o poeta.
Mesmo que na atualidade avancemos para o caos tempos virão em que quase tudo florescerá desse caos, com um homem novo num mundo novo. Uma nova e mais saudável humanidade. A esperança é a última a morrer. Sabemos que após uma purga tudo melhora. Essa hora aproxima-se. (PG)
BREXIT:
QUE EUROPA É ESTA?
O
Reino Unido vai a votos esta quinta-feira para decidir se fica, ou não, na
União Europeia. Aconteça o que acontecer, a Europa nunca mais será a mesma
Filipe
Ribeiro de Menezes - Expresso
Já só
faltam cinco dias para a União Europeia sofrer — talvez — a maior crise da sua
já longa existência, uma crise cujas proporções e consequências ninguém ainda
quis, ou soube, avaliar: a saída do Reino Unido da UE por via de um referendo.
Estamos habituados há muito à expansão territorial da União. Custa-nos por
isso, apesar dos desencantos dos últimos cinco anos, entender o como e o porquê
da saída de um dos seus membros mais poderosos, um daqueles que não correm o
risco de sanções, cujas contas estão em ordem e cuja economia cresce. Soube o
Reino Unido aproveitar as oportunidades abertas pela União Europeia e soube
também quando dizer ‘não’ a políticas que lhe não interessavam, como Schengen e
o euro. A que se deve por isso o desejo de sair da União, de ‘Brexit’? E o que
poderá dele resultar?
O
Reino Unido não fez parte do lote inicial de países fundadores da antiga
Comunidade Económica Europeia, mas não tardou a entender a necessidade de
aderir a um bloco económico a que pertenciam os seus principais parceiros
comerciais, sobretudo a França e a República Federal Alemã. O fim do ciclo
imperial assim impunha. Mas Londres teve de sofrer para atingir o seu fim,
graças à oposição tenaz de Charles de Gaulle, que vetou a adesão britânica: era
a Grã-Bretanha, explicava De Gaulle, um porta-aviões americano ancorado ao
largo da Europa. Georges Pompidou não seguiu as pisadas do velho general, e em
1973 o Reino Unido aderiu finalmente à CEE. No entanto, já nesta altura se
notava no discurso britânico sobre o “mercado comum” uma forte relutância em
abordar a dimensão supranacional da CEE, fixando-se o debate em torno das
consequências económicas da adesão. Seria assim a CEE unicamente uma versão
superior da EFTA (à qual o Reino Unido já pertencia), em função da importância
das economias envolvidas. Deste engano adviriam graves consequências no futuro.
Foi
a questão económica que dominou o debate em junho de 1975, quando o Governo
Trabalhista de Harold Wilson, tendo renegociado os termos da adesão britânica,
e de acordo com uma promessa eleitoral, realizou um referendo sobre a presença
britânica na CEE. Dois terços do eleitorado participaram no escrutínio; desses,
outros dois terços votaram a favor da permanência. O grosso da oposição
encontrava-se no partido no poder, estando o próprio Governo dividido, um pouco
como hoje: a ala esquerda do partido, onde figuravam Tony Benn e Michael Foot,
receava uma perda de soberania económica que impedisse o partido de defender
uma linha socialista no presente e no futuro. A recém-eleita líder
conservadora, Margaret Thatcher, era a favor da CEE; o seu partido, embora não
de forma unânime, estava com ela; militantes e eleitores receavam os sindicatos
muito mais do que uma “Europa” ainda distante. A vitória foi expressiva,
sobretudo na Inglaterra. Na Escócia e no País de Gales, bastiões trabalhistas,
o resultado foi mais equilibrado.
Quarenta
e um anos depois, é a Inglaterra que se mostra mais eurocética e um Governo
conservador que se apresenta dividido. O que aconteceu entretanto? Muito. Em
1975 a CEE tinha nove Estados-membros; hoje, após expansões a norte, a sul e,
sobretudo, a leste, a União Europeia conta 28, muitos dos quais não existiam
enquanto países independentes aquando do primeiro referendo britânico. Finda a
Guerra Fria, desapareceram a União Soviética e a Jugoslávia e deu-se a
reunificação alemã, ressurgindo com ela a “questão alemã”, isto é, como evitar
o domínio alemão do continente europeu. A resposta encontrada foi
simultaneamente acelerar e tornar mais abrangente a integração europeia,
criando-se o mercado único, a União Europeia e o euro. Porém, a necessidade de
preparar, regular e proteger o mercado único levou a Comissão Europeia a
intervir em campos cada vez mais diversos. Num país como o Reino Unido, que
insistia em guiar à esquerda e que, por teimosia, resistia à simplicidade do
sistema métrico (como outrora resistira às bombas da Luftwaffe), estas
alterações eram malvistas, porque entendidas — e, sobretudo, explicadas — como
impostas por estrangeiros não-eleitos. A série satírica “Yes, Minister”
explorou tanto este sentimento quanto a forma como, já nos anos 80, ele era
manipulado pela classe política. Foi a defesa da salsicha britânica,
pretensamente em risco devido à fúria regulatória europeia, que facilitou a
ascensão de Jim Hacker, o protagonista da série, à chefia do Governo — mas
quando Hacker pronunciou o discurso churchilliano que lhe angariou a
popularidade necessária para dar esse passo (“Trocaram-nos os quartilhos por
litros e as jardas por metros, mas não podem e não irão destruir a salsicha
britânica”) já sabia que a questão tinha sido resolvida de forma a satisfazer
as reclamações de Londres. Tudo não passara de um enorme embuste.
Nesses
mesmos anos 80, o Reino Unido experimentou as enormes transformações ditadas
por Margaret Thatcher. Indústrias inteiras desapareceram, deixando os outrora
poderosos sindicatos de rastos; uma onda de privatizações reduziu o papel
económico do Estado, tornando precárias muitas ocupações outrora tidas como
seguras; e os serviços financeiros — concentrados na City de Londres —
tornaram-se o centro indiscutível da economia britânica, agora na crista da
onda da globalização. Regiões inteiras empobreceram e uma fortíssima cultura
proletária — um misto de protestantismo, socialismo reformista e patriotismo
forjado nas duas guerras mundiais, a que o Estado-providência juntara a
possibilidade de uma vida melhor, graças ao Serviço Nacional de Saúde, e de
elevação social à geração seguinte, graças à educação pública — viu-se
subitamente ultrapassada e mesmo em vias de extinção. O desejo de enriquecer a
qualquer custo foi elevado a virtude por Thatcher, sendo a principal função do
Governo permitir que tal acontecesse e não velar pelos desprotegidos. A
sociedade, explicou a “Dama de Ferro”, não existia.
As
tensões sociais visíveis durante este período nada tinham que ver com a Europa;
eram o produto da feroz batalha entre duas conceções do Reino Unido
radicalmente opostas. Mas graças à vitória militar sobre a Argentina, em 1982,
que lhe salvou a carreira política, Thatcher compreendeu a utilidade de um
inimigo estrangeiro — e tinha agora um feito à medida. Os anos de Thatcher no
Governo coincidiram com a passagem pela presidência da Comissão Europeia do
socialista francês Jacques Delors. Foi este provavelmente o período mais
importante na história da (futura) União Europeia e de maior confiança no seu
sucesso. Havia pouca margem para compromisso entre Thatcher e Delors. O projeto
europeu, outrora visto como uma arma preciosa contra a ala esquerda dos
trabalhistas, era agora entendido como um entrave à revolução liberal de
Thatcher. À hostilidade teórica de alguns conservadores à perda de soberania
sofrida desde 1973 vinha agora juntar-se a ideia de que esta organização
estaria a prejudicar os interesses económicos de Londres, que se devia libertar
do “continente”, retrógrada, cujo ponto de vista já não partilhava. Thatcher
deu o mote através da campanha pela devolução de fundos — o famoso “rebate”,
que limitava as transferências reais do Reino Unido para os seus parceiros
(compreensível em parte porque o Reino Unido beneficiava menos da Política
Agrícola Comum do que, por exemplo, a França). Foi um primeiro golpe na noção
de solidariedade entre Estados-membros.
Tendo
assim minimizado o impacto financeiro do alargamento a Sul (Espanha e
Portugal), que iria necessariamente requerer um investimento inicial por parte
da Comunidade Europeia (através, por exemplo, dos fundos estruturais contidos
no “Pacote Delors”), Thatcher deu-lhe luz verde. Aprovou também o Ato Europeu
Único, cujo fim era a criação do mercado único europeu até 1992, facilitado
pela introdução do voto por maioria qualificada (e não por unanimidade, como
até então), nas questões que lhe diziam respeito. Mas a hostilidade de Thatcher
a Bruxelas foi sempre crescendo, e ficou como parte do seu legado ao Partido
Conservador e ao país. O seu herdeiro, John Major, reeleito em 1992 com uma
maioria exígua, sofreu às mãos dos eurocéticos dentro do partido, que lhe
conseguiram impor uma derrota, de mãos dadas com a oposição, aquando da votação
do Tratado de Maastricht, em julho do ano seguinte. Ficou famosa a descrição de
Major dos inimigos que, dentro do próprio Governo, lhe obstruíam a ação — “the
bastards”. Por esta altura já tinha ocorrido a “quarta-feira negra”, quando os
mercados internacionais, liderados por George Soros, julgando a libra esterlina
sobrevalorizada dentro do Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio, forçaram a sua
saída, apesar dos esforços do Banco de Inglaterra. Esse dia de pânico
financeiro, em que foram gastos milhares de milhões de libras numa tentativa vã
de sustentar o valor da moeda, deixou marcas profundas na Grã-Bretanha, sendo
interpretado como uma humilhação dispensável, provocada apenas pelo desejo de
pertencer ao futuro euro.
A
Major seguiram-se, em 1997, Tony Blair, decidido a reparar as relações entre o
Reino Unido e a União Europeia, e, em 2007, Gordon Brown. O regresso dos
trabalhistas ao poder foi marcado pela introdução dos “cinco critérios” para a
adoção do euro e, mais tarde, pela recusa de Brown, já como primeiro-ministro,
em aderir à moeda única. Ressentiam-se as instituições europeias, por esta
altura, do enorme esforço empreendido para alargar e aprofundar a União. Foram
aprovados os Tratados de Amesterdão (1997) e de Nice (2001), mas derrotada,
pelo eleitorado francês e holandês, a Constituição da União, parte importante
da qual foi, mesmo assim, reciclada no Tratado de Lisboa (2007). A Irlanda,
entretanto, foi forçada a repetir os referendos sobre Nice e Lisboa, como a
Dinamarca repetira já um referendo sobre Maastricht. A sucessão de tratados
descritos como essenciais e as manobras para os impor prejudicaram, como seria
de esperar, a reputação democrática da União Europeia, tornando-a um alvo fácil
para os seus inimigos. Entretanto, dentro do Partido Conservador, forçado a uma
travessia do deserto de treze anos, a guerra civil continuou, intensificando-se
até com o passar dos anos. Eurocéticos assumidos como Michael Howard e Iain
Duncan-Smith passaram pela liderança partidária e cresceu a corrente que
defendia a realização de um segundo referendo, para decidir de uma vez por
todas o futuro do Reino Unido dentro da União. David Cameron, líder desde 2005,
não pertencia a este grupo, mas mostrou-se incapaz de pôr cobro às dissensões
em torno da questão europeia. Nunca escondeu, porém, a sua frustração com
Bruxelas, e raramente se lhe ouviu uma palavra de apreço sobre todo o projeto,
tido essencialmente como um mal necessário (uma atitude que se reflete na
campanha eleitoral em curso). Durante os Governos de Blair e Brown cresceu — e
muito — a fação do Partido Conservador que interpreta o projeto transnacional
da União Europeia como um atentado aos pilares da política doméstica e
internacional do Reino Unido: as tradições de soberania parlamentar e de
evolução gradual e cautelosa, fundamentada por observações empíricas e não
preceitos ideológicos; o receio de se ver envolvido em questões continentais,
em vez de permanecer “esplendidamente isolado”; a “relação especial” com os
Estados Unidos, perseguida com afinco desde Winston Churchill, por vezes (como
aquando da segunda guerra do Iraque) de forma embaraçosa; e o comércio livre
(agora sob o rótulo de “globalização”). Para quem se guia por estes princípios
— esquecendo-se necessariamente da importância do império para a grandeza do
Reino Unido — a União Europeia surge como um pesadelo burocrático, em tudo
contrário aos interesses seculares do país. Estes conservadores lembram que,
quando em 1946, em Zurique, Churchill recomendou a criação dos Estados Unidos
da Europa, incluiu a Grã-Bretanha (com a sua Commonwealth) no lote dos amigos e
patrocinadores da empresa, lado a lado com os Estados Unidos e a União
Soviética, e não entre os seus membros.
É
já sob a liderança de Cameron que assistimos aos desenvolvimentos essenciais
para entendermos o que se passa agora no Reino Unido. Depois de várias vagas de
emigração chegadas do antigo império — da Irlanda (uma constante ao longo dos
séculos XIX e XX), das Caraíbas, do subcontinente indiano e de África — chegou
a vez, na última década, da imigração europeia, oriunda de toda a União:
imigração essa que o Estado britânico, graças à liberdade de movimento inerente
ao mercado único, não pode travar nem controlar (e que num primeiro momento,
após o alargamento a Leste, quando ainda era possível fazê-lo, não quis
retardar), apesar de promessas insensatas por parte de Cameron sobre a redução
do número de estrangeiros a viver no Reino Unido. Esta imigração europeia é
motivada quer pela boa prestação da economia britânica, a segunda da União,
quer pela incapacidade de grande parte da população de beneficiar dessa boa
prestação. Porquê? Porque não está qualificada para participar nos serviços
financeiros da City, cujo alcance (e recrutamento) é hoje global, ou porque
desdenha os empregos criados no sector de serviços — cuja precariedade é
notória, em grande medida porque a legislação laboral do Reino Unido (por
oposição à do resto da União Europeia) assim permite. O que alguns desprezam, a
outros, vindos da Europa meridional ou de Leste, aparece como o ponto de
partida para uma nova vida num país onde os salários são, por comparação aos
praticados nos países de origem, altíssimos. Porém, foi enorme o mal-estar
provocado por esta imigração entre a população local, que, mal guiada por uma
imprensa eurocética e sensacionalista, e uma classe política habituada a usar
Bruxelas como um bode expiatório, depressa começou a confundir causas e
efeitos. Assim, os resultados práticos dos cortes impostos nos serviços sociais
pela política de austeridade do chanceler George Osborne foram interpretados
como consequência da necessidade de esticar aos limites o Estado-providência de
forma a abranger os recém-chegados. Entretanto, os partidos políticos tradicionais
viraram as costas ao público sobre a imigração, receando ser acusados de
xenofobia. Na campanha de 2010, Gordon Brown foi inadvertidamente gravado a
queixar-se de uma eleitora com quem conversara, a quem chamou “mulher
preconceituosa”. Estava encontrado o tema capaz de tornar popular a causa
eurocética, até então basicamente limitada a elementos do Partido Conservador.
Se
ignorarmos a extrema-direita pura e dura (o British National Party), o primeiro
partido a explorar e a beneficiar dos receios da população britânica quanto a
uma imigração impossível de controlar — e gozando de importantes garantias
legais quanto à sua entrada e permanência no Reino Unido — foi o United Kindgom
Independence Party (UKIP), de Nigel Farage, criado originalmente para combater
a adoção do euro e, se possível, retirar o Reino Unido da União. De 600 mil
votos em 2005 passou a 3,8 milhões no ano passado — o mesmo que, por exemplo, a
soma dos votos no Partido Nacionalista Escocês (que elegeu 56 deputados) e nos
Liberais Democratas, de Nick Clegg (oito deputados). Apesar deste magnífico
resultado, Nigel Farage ficou fora do Parlamento, elegendo o UKIP apenas um
único deputado. Nas eleições para o Parlamento Europeu, porém, o potencial do
UKIP ficara já demonstrado em 2004, quando os seus 2,6 milhões de eleitores
representaram 16,1% dos votos. Em 2014 estes números aumentaram para 4,4
milhões e 27,5% (elegendo o UKIP 24 dos 73 eurodeputados britânicos) — uma
vitória inequívoca para o partido de Farage.
A
tendência para minimizar a importância de eleições para o Parlamento Europeu é
comum a todos os Estados-membros; mas os resultados obtidos pelo UKIP a partir
de 2005 mostravam que algo de importante se passava: o partido deixara de ser
uma agremiação de ex-conservadores frustrados pela pusilanimidade de sucessivos
governos perante as intromissões de Bruxelas, para ser o partido de
ex-trabalhistas ingleses e galeses que desde Tony Blair haviam deixado de se
rever num partido que já não os entendia e que muito menos lhes defendia os interesses
— um partido que, nas mãos de Blair, Brown e Miliband, piscava o olho às
classes médias e mostrava-se mais preocupado com o crescimento económico e
liberdade de escolha do que com as necessidades dos seus apoiantes
tradicionais. À frente das preocupações deste eleitorado estava agora a
imigração, vista por uma crescente fatia da população como descontrolada e a
causa de um declínio constante de salários e de condições de trabalho, mas
sobre o qual o partido não dizia uma palavra. Simples xenofobia? Não
necessariamente. Um dos fenómenos mais curiosos em torno desta nova imigração é
a revolta das comunidades de imigrantes não-europeias, que se sentem ofendidas
pela facilidade com que polacos, romenos, portugueses, italianos e franceses se
apresentam no Reino Unido sem vistos, nem convites de emprego, nem, em muitos
casos, mais do que algumas palavras de inglês. Segundo os dados do Migration
Observatory, da Universidade de Oxford, em 2014 13,1% da população do Reino
Unido nascera no estrangeiro e 8,5% era composta por estrangeiros (refletindo a
diferença o número de imigrantes entretanto naturalizados). Entre os
estrangeiros, a comunidade polaca, extremamente recente, representava já 15,1%
do total (por comparação com a indiana, em segundo lugar, com 7,3%).
Pressionado
pela poderosa ala eurocética do seu próprio partido e, segundo as sondagens
então realizadas, incapaz de conquistar uma maioria absoluta nas eleições
marcadas para maio de 2015, David Cameron prometeu realizar um referendo sobre
a União Europeia, de forma a acalmar as suas hostes. Julgava Cameron na altura
que, para poder governar, precisaria de um parceiro — provavelmente renovando a
coligação com os democratas-liberais de Clegg, com quem vinha colaborando
razoavelmente desde 2010. Europeístas por excelência, não permitiriam os
lib-dems a inscrição de um tal referendo no programa de Governo, a negociar
depois das eleições. Foi esta, no fundo, a grande aposta de Cameron: uma
promessa que julgou nunca ter de cumprir. Mas, para seu espanto, os conservadores
conseguiram mesmo conquistar uma maioria absoluta, à custa, curiosamente, dos
lib-dems, cujo eleitorado não perdoou a Clegg a coligação com os conservadores
e desertou do partido. Na Inglaterra e no País de Gales, o UKIP fez mais
estragos aos trabalhistas do que aos conservadores; na Escócia, os
nacionalistas destroçaram o que restava dos trabalhistas. Tudo se conjugou para
dar a Cameron um triunfo inesperado que o deixou refém de uma promessa
impossível de ignorar: a de que a permanência do Reino Unido na União Europeia
tinha de ser sufragada pela população.
O
‘Brexit’ assenta assim numa vaga de fundo inegável. Aos milhões que votaram no
UKIP nas eleições de 2015 juntam-se agora cada vez mais ex-trabalhistas,
provenientes de uma esquerda frustrada e abandonada, e os “little englanders”,
conservadores tradicionais, receosos do mundo para lá do Canal da Mancha e
insatisfeitos com as traduções operadas no seio do seu país, sobre o qual,
sentem, perderam o controlo. Em 2015 votaram no Partido Conservador por causa
da promessa do referendo com que sonham há muito. Que seja a União Europeia a
causa dos males contra os quais ambos reagem é duvidoso, mas não interessa:
depois de décadas de uma cobertura corrosiva das instituições europeias (ficou
célebre a primeira página de “The Sun” de 1 de novembro de 1990, com o título
intraduzível “Up Yours Delors”), argumentos racionais deixaram de afetar o
debate sobre a União Europeia. Há anos que a News Corporation de Rupert
Murdoch, que inclui a cadeia televisiva Sky e jornais como “The Times” e “The
Sun”, combate o projeto europeu por todos os meios, sendo acompanhada neste
desígnio por outros títulos sonantes da imprensa britânica, como o “Daily
Telegraph”, o “Daily Mail” e o “Daily Express”. Embora Murdoch seja um campeão
da globalização (e um inimigo da regulação), não é apenas sob esta bandeira que
os seus jornais combatem a União. E seguindo-lhe os passos, a campanha oficial
a favor do ‘Brexit’ é dominada por um misto de saudosismo e xenofobia, com
muita mistificação à mistura. É de certa forma o espelho britânico do projeto
de Donald Trump. E tal como nos Estados Unidos, onde um bilionário conhecido
pelos seus excessos e mau génio dá voz à frustração de todos aqueles que julgam
estar o seu país a desaparecer, graças à imigração, à desindustrialização e ao
“politicamente correto”, no Reino Unido são figuras igualmente improváveis que
surgem à frente da campanha para o ‘Brexit’ — não só Farage como — e sobretudo
— Michael Gove e Boris Johnson, conservadores, ex-jornalistas oriundos de
escolas privadas e de Oxford e membros indiscutíveis do establishment contra o
qual se insurgem os milhões que vão votar ‘não’ à permanência do Reino Unido na
União Europeia.
A
tarefa dos defensores dessa permanência não é facilitada pela atual liderança
trabalhista; Jeremy Corbyn, herdeiro ideológico de Foot e Benn, com um longo
passado de oposição à União e à sua deriva liberal, não convence agora como
europeísta, contribuindo com a sua inação para a confusão em que está claramente
mergulhado o partido. Com cada sondagem cresce a impressão de que o voto
trabalhista (se é que ainda pode ser descrito como tal) tenderá para o
‘Brexit’. Corbyn, que se recusa a fazer campanha ao lado de Cameron, pouco se
vê, permitindo assim que a campanha eleitoral se confunda com a batalha pela
liderança do Partido Conservador: David Cameron contra Boris Johnson. A
situação vivida há anos na periferia da zona euro também não ajuda a causa da
União. Transparece a ideia de crise permanente e insolúvel, da qual o Reino
Unido faria bem em afastar-se o mais possível.
A questão da total liberdade de movimento de trabalhadores dentro das fronteiras da União Europeia é crucial para o futuro não só da Grã-Bretanha mas de toda a União (se é que a segunda pode existir sem a primeira), à qual se poderá estender. É o ponto preciso em que o projeto europeu, o mercado único que forma o seu núcleo e a vocação universalista da União chocam com as expectativas das populações dos vários Estados-membros e a falta de informação generalizada sobre o que é, e para que serve, a União Europeia. Esta questão confronta as populações com a realidade da falta de poder dos respetivos governos para travar a transformação das comunidades em que vivem, fazendo-as despertar para uma nova realidade, na qual o Estado-nação já não funciona como o defensor dos seus interesses mais imediatos. De nada lhes serve fazer parte de um gigantesco mercado único, se dele nunca beneficiaram. Daí o slogan mais eficaz dos partidários do ‘Brexit’: “Take back control [recupera o controlo]”. O fluxo de refugiados chegados de África e do Médio Oriente, ainda longe de terminar, veio juntar-se à imigração intraeuropeia, criando a impressão, bem explorada por alguns, de um enorme movimento de massas em direção à Grã-Bretanha. Como prova são apontados os acampamentos semipermanentes de refugiados e imigrantes clandestinos em cidades portuárias francesas, como Calais. A capa do “Daily Express” de 2 de junho, com uma fotografia de albaneses acampados em Dieppe debaixo do título “The Invaders”, explora este receio de forma chocante.
Os
líderes da campanha pró-‘Brexit’ têm um trunfo ainda maior na manga, que não
hesitam em jogar, por irresponsável e insultuosa que seja tal ação: a Turquia,
com os seus mais de setenta milhões de habitantes, cuja adesão à União
Europeia, descrita como inevitável, é apresentada como a estocada final à
coesão interna do Reino Unido. Num futuro próximo, explicam, essa enorme massa
humana irá atravessar a Mancha à procura de emprego. Será o fim. Pelo caminho,
desprezam Farage, Gove e Johnson argumentos da maior importância para um debate
racional: que os imigrantes já no Reino Unido trabalham e produzem a riqueza
que sustenta o Estado-providência, contrariando o envelhecimento da população
britânica; que para continuar a ter acesso ao mercado único, o Reino Unido terá
de continuar a permitir o livre movimento de trabalhadores; e que mesmo se
renunciar aos dois, terá de continuar a importar trabalhadores estrangeiros.
Se,
em 1975, foi a Inglaterra, onde reside a grande maioria da população britânica,
que mostrou mais entusiasmo pela então CEE, hoje é o contrário: A Escócia e a
Irlanda do Norte mostram-se mais abertas à permanência na União Europeia
(estando o País de Gales alinhado com a Inglaterra). A Política Agrícola Comum
representa uma fonte importante de rendimento para a economia norte-irlandesa,
onde a componente rural é fortíssima. Mas a saída da União significa um enorme
retrocesso no processo de paz na Irlanda do Norte e nas relações entre esta (e
o Reino Unido em geral) e a Irlanda. Muitas vezes nos esquecemos de que o Reino
Unido tem uma fronteira terrestre e que esta, durante longas décadas, foi
extremamente problemática. Tudo o que seja vincar as diferenças entre os dois
lados dessa fronteira é visto em toda a ilha com apreensão, pois o processo de
paz assentou precisamente na diluição de identidades e soberanias, algo
facilitado pelo livre movimento de bens, pessoas e serviços característico da
União Europeia. Mas como controlar a entrada de cidadãos europeus no Reino
Unido pela fronteira terrestre com a Irlanda (onde têm todo o direito de
residir e trabalhar) sem fiscalizar os 500 km de fronteira, interrompendo, por
exemplo, a autoestrada que agora liga Dublin a Belfast? E o que fazer às
inúmeras estradas e caminhos rurais que, mesmo durante os tristes anos dos
Troubles, o exército britânico nunca conseguiu controlar devidamente? A criação
de postos de fronteira seria saudada como um enorme retrocesso para a paz e
estabilidade de toda a Irlanda. A alternativa — controlar o trânsito marítimo
entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido — é politicamente inaceitável.
Mais
problemática ainda é a situação da Escócia, que também viu desaparecer as suas
indústrias tradicionais ao longo dos anos 80 (a começar, claro, pela construção
naval, reduzida hoje a uma fração minúscula do que outrora foi). Durante longas
décadas a Escócia foi um bastião trabalhista, mas a subida ao poder de Tony
Blair (que veio substituir um líder escocês, John Smith, falecido
inesperadamente em maio de 1994) fez vacilar esse apoio. O eleitorado
trabalhista não se reviu no New Labour e na “Terceira Via” de Blair; queria
antes um partido que se batesse pelos seus valores, os seus empregos e o seu
modo de vida — mas Blair, à caça da classe média inglesa, virou-lhe as costas,
ao mesmo tempo que, num processo paralelo, devolvia poder político à Escócia,
dotada agora de Governo e Parlamento próprios. O resultado foi imediato: a
ascensão do Partido Nacionalista Escocês [SNP], que hoje domina por completo
essas instituições enquanto detém a quase totalidade dos deputados escoceses no
Parlamento britânico, em Westminster. Fracassou o SNP no seu intento de separar
a Escócia do resto do Reino Unido, por referendo, em setembro de 2014, mas durante
a campanha eleitoral afirmou alto e bom som, de forma a vincar as diferenças
entre a Escócia e a Inglaterra, o seu europeísmo. Na altura, ouviram-se muitas
vozes (incluindo a de Durão Barroso, enquanto presidente da Comissão Europeia)
afirmando ser difícil, se não mesmo impossível, a Escócia, uma vez
independente, aderir à União. Agora a situação é outra: o que acontecerá se o
eleitorado escocês votar a favor da permanência na União Europeia mas o Reino
Unido optar pelo ‘Brexit’? Podem os escoceses perder o direito à cidadania
europeia? Nicola Sturgeon, líder do SNP e do Executivo escocês, e tenaz e
inteligente defensora da permanência na União Europeia, já avisou: a defesa
desse direito é razão suficiente para repetir o referendo de 2014 sobre a independência.
Por outras palavras, desejando salvaguardar a independência do Reino Unido
através da saída da União Europeia (cujo fim esperam, muitos deles, provocar),
os proponentes do ‘Brexit’ estarão — talvez — a contribuir para a sua
desagregação.
Nota: Foi este artigo concluído a 13 de junho. As sondagens indicavam nesse dia que as intenções de voto estavam igualmente repartidas entre o ‘sair’ e o ‘ficar’, tendo o ‘Brexit’ recuperado muito terreno desde o início da campanha. Pensa-se que quanto maior for a participação eleitoral, melhor será a prestação dos partidários da União Europeia — mas ninguém tem a certeza, dadas as previsões erradas das várias agências de sondagens antes das eleições gerais de 2015. Porém, há um facto a reter. Segundo um estudo feito pela London School of Economics, um terço do eleitorado, consciente da importância deste ato eleitoral, só decidirá como votar no dia do referendo. Por outras palavras, nada está ainda decidido.
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publicado na edição do Expresso de 18 junho 2016
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