A
crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo / e o novo não pode nascer; neste interregno, / uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem - Antonio Gramsci
Três
ciclos históricos esgotam-se ao mesmo tempo. O vazio produz, além do golpe,
retrocesso e intolerância. Mas é em meio a ele que poderá surgir outra política
Célio
Turino* - Outras Palavras - Imagem: Os Gêmeos
Acabou,
mas ainda não sabemos; acabou, mas ainda não terminamos. Esta é a realidade do
Brasil atual. Aqui não me refiro ao governo golpista nem ao que foi deposto,
muito menos aos personagens de ordinário perfil. Refiro-me ao nosso tempo, à
nossa gente, à encruzilhada em que nos metemos.
Brasil,
tão desigual e cada vez mais vulgar. A política, que deveria apresentar um
caminho, um rumo na organização do Estado e mediação da Sociedade, colocada em
mãos tão mesquinhas, agrava ainda mais o quadro de descaminhos, com a economia
se afundando no atoleiro da financeirização, do rentismo e da ganância. E a
sociedade se perde, na falta de horizontes, nos ódios e no despreparo. E da
Cultura simplesmente se esquece, se despreza.
Há
dúvidas de que vivemos um fim de ciclos? Ciclo longo, Ciclo médio e Ciclo
curto, todos nos estertores. E como reflexo e vetor deste fim de Ciclos, a
crise de desgoverno, quando a votação da autorização para abertura de processo
de impeachment contra a presidente Dilma revela um espetáculo grotesco de
incultura, retrocessos e vulgaridades. É neste momento que se abre um vácuo de
poder, na forma de Interregno Político, em que o atual governo golpista não
consegue se consolidar, nem o anterior se reestabelecer. Nas características do
presente Interregno brasileiro ainda há disputa entre Poderes da República, a
crise no Congresso, o desfazimento dos Partidos outrora hegemônicos, a crise
econômica e a ausência de alternativas mais claras.
O
Ciclo Longo, que vem desde as Capitanias Hereditárias, resultou e foi resultado
de um pais absolutamente predador e desigual, forjado a ferro e fogo, na
destruição das matas, tangendo gente, explorando, explorando, extraindo,
sugando até não mais ter o que sugar. Tudo pelo imediato, pelo aqui e agora, e
olhando sempre para fora, da colônia para a metrópole, esteja em Lisboa ou
Miami, sempre uma submetrópole a se mirar.
O
Ciclo médio buscou diminuir estas distorções, desde a chamada revolução de
Trinta, com o governo Vargas. Houve a busca da industrialização, a consolidação
dos direitos do trabalho, a educação pública, a saúde pública e demais serviços
públicos (mais serviços que direitos). Mais recentemente, com o fim da Ditadura
Militar, em 1985, a busca pela incorporação de mais direitos sociais (Sistema
único de Saúde – SUS -, voto aos analfabetos, piso de um salário mínimo para a
aposentadoria), a Constituição Cidadã, a busca pela estabilidade da moeda e, a
partir do governo Lula, a busca da redução das desigualdades, instalando a
“Década Inclusiva” (aumento real do Salário Mínimo e Bolsa Família). Este foi o
Ciclo Curto, que ora se interrompe.
Ciclo
Longo, Médio e Curto se combinam e se enfrentam. De tal modo que a história do
século XX, e das duas primeiras décadas do XXI, revela uma tensão permanente,
com avanços e recuos. E com muita intolerância, violência e democracia de baixa
intensidade, distorcida sobremaneira pelo poder econômico, político e midiático
das classes dominantes. A intolerância, a falta de democracia real e a
violência não se revelam apenas no palco da “política”, mas nas relações
cotidianas, nas periferias esquecidas, nas aldeias remotas, nos campos sem fim.
Basta lembrar que, ao ano, 60 mil brasileiros são assassinados, além da violência
no campo, massacre de indígenas e genocídio de jovens pobres nas periferias das
grandes cidades, principalmente negros e pardos. Tudo contra gente e contra
nossa casa comum. Tudo e todos explorados cada vez mais, até o limite do
esgotamento, como se fez em Mariana, matando gente e o rio Doce.
Não
há como pensar uma saída para a atual crise política, econômica, social,
cultural e ética por que vive o Brasil sem levar em conta esta combinação e
enfrentamento de ciclos históricos. De um lado, posturas e imposturas
arraigadas; de outro, tentativas de superação, que a cada tentativa são
engolidas, cooptadas, ou destruídas, a depender da correlação de forças. No
meio disto, o novo que vai brotando por baixo das aparências.
No
momento atual ocorre a tentativa de destruição, moral, política e física, se
for necessário, do campo que buscava (com erros e acertos) diminuir as
distorções geradas pelo Ciclo Longo. De certa forma é a repetição reativa de
outros momentos já registrados no Ciclo Médio, iniciado em 1930 (1954, 1964 e
1994, desta vez combinando aparente democracia com avanço neoliberal). A
diferença de agora é que o Brasil é mais complexo.
O
fato é que ambas as forças em conflito não revelam capacidade de superação do
atual quadro e não conseguem estabilizar uma hegemonia política, econômica,
social e cultural. Esta incapacidade é resultado tanto da apodrecimento das
forças da reação, formados no longo Ciclo de quinhentos anos de iniquidade,
como da desmoralização das forças reformistas que foram emergindo a partir da
“Revolução de Trinta” e que ganharam força moral no processo de
redemocratização, mas que, igualmente, se perderam na incapacidade em superar
este padrão histórico. Para sair deste quadro há que romper com os três Ciclos
Históricos, instaurando um novo processo de longa duração que, para além de um
projeto de poder partidário tem que ser um projeto de país, de povo, de
humanidade.
O
longo ciclo de desigualdade e exploração, instalado há 500 anos, nada tem a
oferecer além de decadência e esgotamento social e das forças produtivas, sejam
de ordem física, humana ou natural, agravando a decadência ética e moral que
vai tomando conta da sociedade. As forças até recentemente hegemônicas, que,
por diferentes meios, buscavam a redução das desigualdades e a retomada de um
processo de crescimento, igualmente se revelam exauridas, até porque seu modelo
de redução de desigualdade não rompia (nem pretendia romper) com os perversos
processos de concentração. Se, em momentos de respiro na acumulação do Capital,
com o aumento de preços em commodities e produtos para exportação, foi possível
estabelecer alguma fórmula do “ganha-ganha”, em momentos de retração, como a
partir da crise internacional de 2008, até mesmo os poucos avanços alcançados
foram colocados em retração. Houve também o equívoco na visão de
desenvolvimento, que apenas repetiu o modelo predatório, concentrador e
dependente de modelos desenvolvimentistas do passado. Bem como a confusão
teórica ao compreender o processo de inclusão social como um simples acesso aos
bens de consumo individuais, sem o correspondente acesso aos bens coletivos
(saneamento básico, educação e saúde públicas de qualidade, desprezo por uma
política cultural de caráter emancipador, entre outros).
Quando
o país se depara com a atual miséria política, em realidade está se deparando
com a própria putrefação de ciclos históricos já esgotados. Há que abrir outro
caminho.
Este
caminho já existe, apenas não é suficientemente enxergado. O Brasil da
desigualdade, da exploração e violência também é o Brasil do Motirô, os
Mutirões dos povos indígenas, exercitando trabalho colaborativo e distribuição
comum do esforço coletivo. A Cultura do Mutirão também é praticada nas
comunidades rurais, nas periferias das grandes cidades, e é igualmente entrelaçada
com festa e alegria, seja nas festas de São João ou regadas a samba, churrasco
e cerveja ao fim de mutirões para construção de casas populares. Igualmente se
replica nas novas formas de trabalho compartilhado e invenções da juventude
urbana.
Se,
de um lado há egoísmo e individualismos exacerbados, de outro, o círculo, as
brincadeiras de roda, a ciranda, as rodas de samba, o jongo e a capoeira brotam
em nossa alma brasileira. A origem está na milenar ética africana do Ubuntu, o
“eu sou porque nós somos” e “nós somos porque você é”, menos “eu” e mais “nós”.
O novo ciclo histórico emergirá com o ecossocialismo do encontro entre ecologia
e ideias generosas da igualdade, justiça e fraternidade, realizadas com
liberdade, em que a emancipação humana é o fim. Emancipação essa que só será
possível, inclusive, quando rompermos com a própria noção de antropocentrismo,
conforme nossos irmãos guarani nos ensinam com o Teko Porã, o Bem Viver, em que estar no
planeta, convivendo harmonicamente com os demais seres, é muito mais importante
que ter.
Unindo
tradição com invenção, os brasileiros conseguirão superar os ciclos de sua
longa história de iniquidades e injustiças; do contrário, seguiremos nos
atolando em um pântano, ou nos perdendo em um labirinto sem fim. Em meio a toda
esta crise de desesperança também nos deparamos com a projeção de nossa imagem,
em um espelho distorcido pela ganância e a ignorância — é fato. Mas ainda
assim, um espelho da sociedade brasileira e todas suas contradições. Mas também
brilham imagens de esperança.
São
iniciativas novas na política da vida, a biopolítica, com experimentações
coletivas, das ocupações de escolas públicas por secundaristas às hortas
urbanas, as ocupações artísticas de espaços comuns, o cicloativismo e a defesa
de parques e praças, configurando novas atitudes urbanas. E novas formas de
trabalho com a economia solidária, a agroecologia, as ocupações de fábrica, os
Bancos do Povo e suas moedas e Empresas Sociais. O protagonismo indígena,
quilombola, os jovens de periferia com seus saraus de poesia, o hip hop, os
assentamentos da reforma agrária. Os movimentos sociais que se reinventam e se
descolam do governismo (seja ele qual for). O feminismo, o ambientalismo e o
municipalismo. As Assembleias Populares e os Círculos de Colaboração. Essas
novas formas de agir político podem resultar em novas formas de participação
social, controle do Estado e Juntas de Bom Governo.
Tudo
isso se expressa em uma nova forma de política: o Cidadanismo. E deve ser
organizada em novas formas-partido, conceituadas como Partidos-Movimento, ou
Partidos-Fluxo, com formas mais flexíveis de organização e deliberação,
rompendo com estruturas hierárquicas e verticais. Além de sustentarem a
necessidade de novas formas de política, ests Partidos-Movimentos precisam
compreender a necessidade de confluências que deem conta da unidade na
diversidade — sobretudo em um país com as características do Brasil.
Compreender a necessidade de confluências implica em profundas mudanças de
atitude no fazer político:
I
– se assumir como Partido de Retaguarda e não de Vanguarda; retaguarda no
sentido de dar suporte e apoio aos movimentos deste novo tempo histórico, sem
que isso signifique qualquer tentativa de cooptação ou controle sobre os
movimentos.
II
– disposição para conter e estar contido em processos mais amplos de
transformação social; o que implica na construção simultânea de personalidade
política própria, como Partido-Movimento, com funcionamento institucional ou
não, e de uma Frente de caráter permanente e programático, que deve prever em
sua gênese o transbordamento dos próprios partidos que a integram, incorporando
afetos e potências das forças vivas da sociedade.
III
– ter coragem para perder o controle; só quando Partidos (ou Partido-Movimento)
perderem o controle da Política é que haverá, de fato, um efetivo empoderamento
social, com o fortalecimento de processos de autonomia e protagonismo popular e
quando isto ocorrer, o próprio papel dos novos Partidos será muito mais de
análise, reflexão, inspiração e instigação que propriamente de execução e
controle dos aparatos de Poder.
O
resultado destas mudanças profundas deve ser o fortalecimento de zonas
autônomas, campos de ação política permeados pelo empoderamento e o
protagonismo popular. Essas zonas autônomas de ação política devem ocorrer no
campo de movimentos, temáticas e, principalmente, na ocupação de território. Há
que tomar consciência, escolher um novo caminho e trilhá-lo com coragem e
esperança, independente dos poderes constituídos, para além, até mesmo, dos
conceitos e formas que até pouco tempo pareciam as únicas alternativas
possíveis. Um exemplo são as ocupações das escolas públicas por estudantes
secundaristas e as ocupações do Ministério da Cultura, por artistas e ativistas
sociais. Esta escolha ganha ainda mais força quando o poder constituído é
ilegítimo, usurpado, de modo que a revolta e a recusa passam a ser reconhecidas
como legítimas. Portanto, ocupai. Ocupai as fábricas, as terras, as escolas, as
artes. Ocupai o Poder. Mas um poder que emane da potência e das relações de
afeto entre as pessoas comuns. Um poder que emane de baixo para cima, de dentro
para fora e que pode se realizar em uma nova cultura política, a começar pelos
municípios, em políticas locais, radicalizando a democracia e, sobretudo,
colocando o Sistema à serviço das pessoas, mais que das pessoas, à serviço da
vida, até que não mais a vida seja colocada à serviço do Sistema.
A
principal característica dos tempos de Interregno é a ausência de estabilidade
e falta de clareza sobre o que está por vir. Também é neste período que se
acentua o sentimento de que “os de cima” já não conseguem governar com antes e
os “de baixo” já não querem seguir sendo governados como dantes. Em uma
situação como esta, abrem-se novos caminhos, mas que não necessariamente levam
ao rompimento com os Ciclos anteriores, podendo até reforçarem a permanência do
Ciclo longo, com sentido altamente regressivo e repressivo. Mas há também a
possibilidade de que, a partir de fendas e fissuras no Sistema, sejam encontradas
(e alargadas) frestas que permitam uma ruptura mais efetiva com os ciclos
anteriores. É neste momento que se encontra o Interregno brasileiro e o que
está por vir só depende de nós. Que o Interregno brasileiro faça germinar um
novo Brasil, que vai brotar como nunca se viu!
* Célio
Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Foi idealizador
e gestor do programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura, tendo exercido
diversas funções públicas, entre elas: Secretário de Cultura e Turismo em
Campinas/SP (1990/92), Diretor de Esporte e Lazer em São Paulo/SP (2001/2004) e
Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/2010). Autor
dos livros: Na Trilha de Macunaíma – ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC,
2005) e Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi,
2009), entre outros.
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