Nuno Ramos de Almeida*
– jornal i, opinião
Estamos
numa encruzilhada. O Brexit pode significar o regresso à soberania democrática
de uma pessoa, um voto, ou a criação de Estados racistas
Duas
histórias retiradas de uma mesma realidade complexa: num comboio no Reino
Unido, uma mulher vestida com nicabe, um véu que cobre o rosto e apenas revela
os olhos, canta uma canção de embalar para a sua criança numa língua
aparentemente estranha. Um homem irrita-se e diz-lhe: “Você está no Reino
Unido, devia ser obrigada a falar inglês.” Uma senhora de idade reage de
pronto: “Estamos no País de Gales e ela está a cantar em galês.” No dia em que
foi anunciado o Brexit, Bruxelas e Berlim comunicaram que ia haver uma reunião
para a União Europeia meditar sobre o sucedido e convocaram todos os 27 países,
deixando de fora o Reino Unido? Nada disso, marcaram uma reunião dos seis
“fundadores”. Foi apenas por vergonha que foram buscar os fundadores da CEE
quando, no fundo, achavam que isso se fazia somente com Berlim.
O
racismo e a falta de democracia na União Europeia são duas faces da mesma moeda
e alimentam-se mutuamente. Há muito que a União Europeia é profundamente
racista em relação aos imigrantes e refugiados, como provam os acordos feitos
com a Turquia e as combinações que fizeram com o governo de Cameron antes do
referendo, para limitarem os direitos sociais do emigrantes no Reino Unido. Os
governos da Europa legitimaram com a sua ação os argumentos racistas que
pretendem ligar a crise à imigração e aos trabalhadores do Terceiro Mundo.
Quando, no fundo, o que se verifica é que o processo de globalização económica
que a UE persegue contribui em muito para a destruição progressiva do Estado
social europeu e o esvaziamento total da democracia. A democracia que os
governantes de Berlim e Bruxelas querem é um regime em que todos possamos
falar, mas estejamos impedidos de decidir caminhos alternativos àquele que foi
contratualizado com as grandes empresas.
Depois
do processo de liberalização neoliberal iniciado nos anos 80 criou-se uma
situação de agravamento exponencial das desigualdades económicas e de poder. A
destruição do Estado social e a privatização galopante das suas funções, para
entregar maiores fatias de rendimento a grandes grupos económicos e
financeiros, criaram uma situação de precarização generalizada de camadas cada
vez maiores das populações; a crise económica e financeira de 2008 apenas veio
radicalizar ainda mais esse processo, obrigando os contribuintes a pagarem os
custos da economia de casino. Temos uma espécie de socialismo para banqueiros:
quando há lucros, os senhores recebem sozinhos os dividendos; quando há
prejuízos, pagamos nós.
Apesar
das repetições das crises, do agravamento dos problemas sociais, há um discurso
dominante que nos garante que não há alternativa a esta realidade, como se essa
realidade fosse uma espécie de real inultrapassável. Numa conhecida passagem,
citada por Zizek, de Fredric Jameson afirma-se: “Ninguém mais considera
seriamente as possíveis alternativas ao capitalismo enquanto a imaginação
popular é assombrada pelas visões do futuro ‘colapso da natureza’, da
eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o ‘fim do
mundo’ que uma mudança muito mais modesta no modo de produção, como se o
capitalismo liberal fosse o ‘real’ que de algum modo sobreviverá, mesmo na
eventualidade de uma catástrofe ecológica global... Assim, pode afirmar-se
categoricamente a existência da ideologia qual matriz geradora que regula a
relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como
as mudanças nessa relação.”
O
que veio provar o Brexit é que esse discurso de um real eterno e
inultrapassável está a rebentar. O cenário está a desfazer--se. Mas tal como no
passado, isso não garante que surjam alternativas melhores; elas têm de ser produzidas
e estão muito longe de o ser. Nos anos 30, o rescaldo da i Guerra Mundial e a
grande crise de 1929 levaram ao crescimento de uma extrema--direita racista que
dava voz a camadas da burguesia empobrecida que estavam atemorizadas pela crise
e pelo crescimento do movimento operário e dos comunistas. A crise dos anos 30
e a falta de capacidade de gerar alternativas populares com capacidade de se
oporem ao ascenso do fascismo levaram-nos diretamente à guerra e ao Holocausto.
Por
todo o lado, a crise na Europa está a fazer subir partidos xenófobos. E eles
têm de ser combatidos. Agora, qualquer combate não pode ser feito pela
manutenção do estado atual, nem pela afirmação das políticas e instituições que
nos trouxeram até aqui. A União Europeia tornou-se o espaço da imposição do
neoliberalismo e do esvaziamento da democracia. Pregar a sua manutenção
significa tentar tapar o sol com a peneira. Esta União Europeia não vai a
nenhum lado mas, infelizmente, o caminho que pode sair daqui pode ser ainda
pior se não for criada nenhuma alternativa verdadeiramente popular.
As
alternativas políticas não estão talhadas na pedra, têm de ser construídas
pelos homens e pelas mulheres. Uma mesma situação social pode ser parteira de
uma melhor sociedade ou de uma muito pior. Há uma luta para criar sentido
político de uma determinada situação. O maior erro da liderança de esquerda dos
trabalhistas, protagonizada por Corbyn, foi ter deixado o espaço do combate ao
neoliberalismo e da austeridade made in eixo de Berlim e Bruxelas aos racistas.
A política tem horror ao vazio e estes aproveitaram a situação.
Três
meses antes de ser eleito para a liderança dos trabalhistas, Jeremy Corbyn era
clarinho como água: “Uma Europa usurária que transforma as pequenas nações em
colónias escravizadas sob o fardo da dívida não tem nenhum futuro.” Esta
posição de Corbyn era absolutamente coerente com o seu percurso político; em
1975, ele tinha defendido a saída da então CEE; em 1993 rejeitou o tratado de
Maastricht, prevendo que a aprovação desse tratado e o rumo seguido pela
integração europeia iriam levar a que fosse retirada aos parlamentos nacionais
a capacidade de “definir as políticas económicas dos seus países em favor dos
interesses de uma série de banqueiros não eleitos”.
No
seu discurso de 14 de abril de 2016, Corbyn anuncia o seu apoio à permanência
do Reino Unido na UE, inserindo-o na estratégia da “construção do socialismo”.
Estranhamente, o mesmo voto é defendido por 80% dos membros das confederações
patronais e pelos bancos JP Morgan Chase, Goldman Sachs e HSBC, embora estes
afirmem que o voto no sim garante os interesses do grande capital financeiro.
Como observa Hannah Sell, do Partido Socialista britânico, “se Corbyn chegar ao
poder, o seu programa será ilegalizado por Bruxelas”. Preso por ter cão, preso
por não ter. A primeira possibilidade de mudança passa pelo fim das imposições
de Bruxelas, mas essa mudança só será progressista se houver alternativas deste
teor a disputar o sentido e as narrativas desta rutura.
*Jornalista
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