quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A INDISCUTÍVEL DITADURA DOS BANQUEIROS



João Carlos Lopes Pereira [*]

Diz-se que o direito de propriedade é o direito real que dá a uma pessoa ou entidade (dito «proprietário») a posse de uma coisa, em todas as suas relações e consequências. É, por isso, o direito, ou a faculdade de usar, gozar e dispor dessa coisa, além do direito de reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha. É um direito absoluto, perpétuo e exclusivo.

Por outro lado, segundo a filosofia política e económica, as regras, as disposições e as directivas da União Europeia, que são do mais neoliberal que podia haver, o Estado deve ser a entidade que menos património pode ter. Aliás, nenhum património na posse do Estado seria, para ela, UE, o ideal. Pelo contrário, os privados – pessoas e entidades – podem possuir tudo aquilo a que conseguirem deitar a mão, não havendo outro limite para a possessão a não ser o céu. Tudo deve ser privado, a começar na banca e a terminar no ar (logo que haja tecnologia que torne o desiderato possível), passando pela água.

Mas serão as coisas exactamente assim? Será assim que elas se passam, na prática, para todos nós e para toda a propriedade? Logo veremos que não.

Comecemos pelo caso de um banco e de uma companhia aérea. Nacionalizar um banco que esteja de boa saúde não é possível. Diz a UE que é roubar o banqueiro. Mas nacionalizar um banco falido é coisa perfeitamente aceitável. Os lucros para os banqueiros; os prejuízos para os contribuintes do costume. Porém, assim que nós, os contribuintes, resgatarmos o banco, nele investindo milhares de milhões de euros, ele deverá ser entregue, a qualquer preço, a um novo banqueiro. Aqui, os proprietários de facto – os tributados que salvaram o banco com o dinheiro dos seus impostos – não têm o direito de ser os seus legítimos donos, pois esse direito é consignado a um outro banqueiro privado, ainda que não tenha coberto, sequer, o valor que os contribuintes pagaram (vide BPN, por exemplo). Significa que todos os cidadãos foram obrigados a oferecer a outra pessoa o banco que compraram. A isto chama-se um acto de pura espoliação, e por isso, totalmente desconforme com as mais elementares bases e pressupostos não só do direito, mas de um regime democrático. É saque desenfreado. Puro e duro.

É inquestionável, deste modo, que a noção de propriedade, posse, utilização, gozo e tudo aquilo que resulta da aquisição de um bem, varia de acordo com o proprietário, podendo valer tudo, ou podendo nada valer. Foi o caso do Banif, como foi o caso do BPN.

Ora, o Estado pôde investir o dinheiro dos contribuintes para salvar bancos privados – os tais BPN e Banif, por exemplo – mas já não pôde investir o dinheiro dos contribuintes para salvar uma companhia aérea que era do Estado – neste caso, a TAP. Ou seja: que era dos contribuintes.

Chega-se à conclusão que o direito comunitário não é assim tão direito quanto isso. Parece mais um direito feito – ou encomendado – por banqueiros/Investidores, do que um direito feito a pensar na vida, na saúde e na felicidade de milhões de seres humanos.

Mas generalizemos ainda mais esta filosofia comunitária no que respeita à consagração da dominação de tudo pelo privado, para podermos ver até que ponto ela é – ou não é – uma coisa séria e plena de regras equitativas – ou sérias, imparciais – e, principalmente, democráticas.

Vejo que os fundadores da União Europeia, Maurice Schumann (francês [nascido em Luxemburgo]), Konrad Adenauer  (alemão) e Alcide de Gasperi (italiano), todos liberais convictos, eram todos eles, também, democratas-cristãos. A sua visão do liberalismo considera a liberdade individual (não de todos, como estamos a ver – e melhor veremos mais à frente) como sendo o mais importante valor cultural dos europeus e do cristianismo. De acordo com essa visão – segundo os fundadores da UE – a função dos estados soberanos europeus é proteger os direitos de propriedade e a economia de livre mercado numa Europa de fronteiras abertas, permitindo desta forma o livre comércio de bens, serviços e ideias.

Tudo muito bonito, a principiar por isto: "A função dos estados soberanos europeus é proteger os direitos de propriedade".

Mas face ao que disse atrás, quando se fala nos direitos de propriedade, o que apetece logo questionar é: mas direitos de propriedade, de quem?

E a razão da pergunta é muito simples. É que sendo todos nós proprietários de alguma coisa – uns, de muitas; outros, de poucas, podendo ser, neste caso, uma pequena reforma, ou as poupanças de uma vida – parece-me que o princípio de protecção dos direitos de propriedade só se aplica a quem for, realmente, um proprietário gigantesco. Daqueles que dominam os próprios estados.

Será, por exemplo, que eu – como qualquer um de nós – sou proprietário absoluto do meu dinheiro, legalmente adquirido, seja o meu salário, seja a minha reforma, sejam as minhas poupanças? Será que Estado protege o meu direito de proprietário desses bens? Mas será mesmo?

Então, porque será que um banqueiro pode ser dono de um banco que eu comprei, porque o paguei em sociedade com todos os outros cidadãos contribuintes do meu país, mas que, feitas as contas, não posso, sequer, tomar posse dele, ainda que, face à lei que defende o direito à propriedade, ele deveria ser incontestavelmente meu? E o meu salário, e a minha reforma, e as minhas poupanças serão coisas minhas, privadas, sagradas, intocáveis? Mas serão mesmo?

Para se compreender o nexo de todas estas questões, enunciarei algumas perguntas que me parecem legítimas dos pontos de vista social e político, como legítimas e adequadas me parecem as respostas que lhes dou. Assim:

Queremos acabar com as crises financeiras?

Queremos acabar com as "bolhas" disto, daquilo e daqueloutro?

Queremos acabar com a falta de investimento?

Queremos acabar com o défice e com a dívida pública?

Queremos acabar com o desemprego?

Queremos uma economia saudável?

Queremos?

Então, acabemos com a banca privada. Nacionalizemos a banca. [NR]

Ponhamos a economia ao serviço do país e das pessoas, em vez de pormos as pessoas e o país ao serviço da economia de mercado – dos mercados, querem eles dizer – que é o outro nome do Capital Financeiro  (que não é o Sistema Financeiro) ou dos Investidores.

Porquê?

Porque acabaremos, assim, com os mecanismos que permitem a transferência da riqueza produzida no(s) país(es) para os bolsos dos chamados Investidores, o que depaupera as finanças nacionais e obriga o(s) país(es) a endividar(em)-se e a pagar(em) juros que o(s) subjugará(ão) ad eternum per secula seculorum.

Por outro lado, se a banca for estatal, o dinheiro não desaparece em offshores, nem em rioforte nenhum, nem em créditos para os amigos (que não é para pagar), nem em quadros Miró.

Acabem, em suma, com a ideia falaciosa, sofística, que os banqueiros e o Sistema Financeiro são a mesma coisa. Um banco faz parte do Sistema Financeiro, mas não passa disso. Um banqueiro não é dono de outra coisa que não seja o seu capital. O Capital Financeiro. Os banqueiros não podem, portanto, ser os donos do nosso dinheiro – o que lhes demos a guardar e o que a UE exige agora que lhes demos, transferindo para nós as responsabilidades e os custos de crimes que não cometemos.

De facto, desde o dia 1 de Janeiro de 2016, a mesma União Europeia que defende que – e cito outra vez: " É função dos estados soberanos europeus proteger os direitos de propriedade ", determina que as minhas poupanças (que são propriedade minha), possam ser utilizadas para salvar o negócio privado de um banqueiro. Isto é: para salvar um banco privado, deixo de ter direito absoluto, perpétuo e exclusivo sobre a minha propriedade. Sobre o meu património. Para isso, já o direito de propriedade deixa de ser um direito real que dá a uma pessoa a posse de uma coisa, em todas as suas relações e consequências. Deixa de ser um direito absoluto, perpétuo e exclusivo.

Dizendo de outra maneira: eu não sou dono do meu dinheiro. Eu não tenho protegido o direito de considerar meu – e, portanto, intocável – aquilo de que sou proprietário (as minhas poupanças, neste caso), já que a UE considera que esse património está à mercê do banqueiro a quem as confiei, seja para lhes dar descaminho (como deram nos BPN, no BPP, nos BES e no Banif), seja, depois, para lhe salvar o negócio.

Não há prova mais clara, nem mais elucidativa, nem mais – acrescente-se – descarada de como esta Europa não é uma Europa dos cidadãos, nem uma Europa democrática. É uma Europa do Capital Financeiro, o qual tem rédea solta para dominar o Sistema Financeiro e – o que é pior – para ter nas mãos o próprio Poder Político e, através dele, os povos e os países.

Isto é: um banqueiro pode fazer desaparecer o dinheiro que lhe confiei; um banqueiro pode ficar com um banco que eu salvei com os meus impostos; e um banqueiro ainda pode, para além disso, ficar com os nossos depósitos, acima de determinado valor, para resgatar o banco que ele afundou.

Resumindo: um cidadão trabalhador não tem direito a ser proprietário nem do fruto do seu trabalho; mas um banqueiro tem direito a deitar mão ao meu património para seu proveito próprio. Chamem a esta Europa o que quiserem. Mas, por favor, não lhe chamem – nem a brincar – democrática.

A solução? Repito: retiremos ao Capital Financeiro o poder de usar em seu proveito o Sistema Financeiro. Para os mais indecisos, peço-lhes que pensam no que nos aconteceu nos últimos anos e que me respondam:

- A Economia – Portugal, os portugueses – pode estar nas mãos de gangsters engravatados e de colarinho branco?

- Portugal e os portugueses podem estar nas mãos de gente como Oliveira e Costa, Dias Loureiro, João Granadeiro, Ricardo Salgado e de bandos nebulosos como os que dominaram o Banif?

- O CAPITAL FINANCEIRO – a banca privada e os investidores – podem, por isso, ter o SISTEMA FINANCEIROnas mãos?

- Os políticos podem ser tão desonestos e mentirosos ao ponto de fazer-nos acreditar que salvar um banco é salvar o Sistema Financeiro, em vez ser, apenas, salvar o Capital Financeiro?

Só pode haver, creio eu, uma resposta honesta para isto: NÃO! NÃO PODEM!

E, finalmente, se o meu dinheiro, apesar de meu – de ser minha propriedade – me pode ser retirado para salvar a propriedade de um banqueiro, será que a sociedade em que vivo é uma democracia? Ou não será, se quisermos chamar às coisas os nomes que se lhes adequam, que vivo em ditadura?

- A ditadura? Mas ditadura de quem? – Perguntará alguém muito ingénuo, ou muito distraído.

Francamente! A ditadura de quem?! A Ditadura dos Banqueiros, ora de quem haveria de ser? 

[NR] A nacionalização da banca é condição necessária mas não suficiente. Será preciso também retirar à banca o poder que ela tem actualmente de emissão monetária (através da concessão de crédito a partir do nada) – o qual terá de ser devolvido ao Estado. Além disso será indispensável o controle dos fluxos transfronteiriços de capital, bem como muitas outras medidas.

Ver também: 
  EU Bank Recovery and Resolution Directive (BRRD)

[*] Ex bancário e autarca , autor de "A mosca na vidraça" e outras obras.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

Angola. SAMAKUVA DEFENDE ESTÍMULO À DIVERSIFICAÇÃO DA ECONOMIA - entrevista



João Dias – Jornal de Angola

Isaías Samakuva, líder da UNITA, maior partido da oposição, aspira ao poder para efectivar o seu projecto de sociedade. Em entrevista ao Jornal de Angola, fala do que pensa sobre a realidade socio-política e económica do país e responde às críticas que lhe são feitas.

Samakuva acredita no processo de diversificação económica e concorda com o apelo lançado pelo Presidente da República na mensagem do final de ano, mas propõe uma nova abordagem e uma metodologia para que os resultados sejam atingidos. 

Samakuva reafirma uma convicção na força transformadora da paz e no valor do diálogo, propondo-o como fórmula para os jovens que reclamam direitos, que devem continuar a ser ouvidos para se compreender a essência das suas inquietações.

 Jornal de Angola – A paz é uma das grandes divisas conseguidas pelo povo angolano há 13 anos. O que representa para si este inestimável bem?

Isaías Samakuva – A paz é um elemento fundamental para a realização daquilo que pode ser útil para o cidadão. Há necessidade de promover a conservação da paz e esta é uma questão que tem de ser sempre tida em atenção. Mas é fundamental considerar que a paz não é apenas a ausência da guerra. A paz é o emprego mas é também a capacidade que a pessoa tem de resolver os seus problemas mínimos. Caso contrário, vive permanentemente preocupada e na aflição. Nestas circunstâncias, devo dizer, não há paz. A paz deve se traduzir na capacidade de se materializar as aspirações básicas do dia-a-dia.

Jornal de Angola – Acusam-no de uma clara e insofismável falta de sentido de Estado, pois tende a levar assuntos do país para o exterior. Como tem encarado isso?

Isaías Samakuva – Tenho lido e ouvido acusações do género e muitas vezes acho-as interessantes. Porém, chego à conclusão que essas acusações só podem vir de pessoas que ou são à partida meus detractores ou ignoram o facto de Angola ser hoje parte do concerto das nações. É ingenuidade pensar que o que fazemos aqui não é conhecido no mundo. Temos aqui embaixadas e muita gente que se movimenta, escreve e tira imagens que leva para fora. É quase “tapar o sol com a peneira” calarmo-nos quando as situações que reportamos realmente existem. O que dizemos aqui dentro chega lá fora e o que dizemos lá fora chega cá dentro. Por isso, considero essas acusações fortuitas, porque elas não têm nada de especial. O nosso discurso é o mesmo aqui e lá fora. Não creio que estejamos a lavar roupa suja lá fora. Se alguém sabe que o que estamos a fazer é sujo, o melhor é não fazer, pois uma vez feito, passa a ser conhecido lá fora. Estou confortável em relação a este aspecto. Os próprios governantes tratam de questões do país lá fora, igualmente. Onde está a diferença?

Jornal de Angola – A diferença está provavelmente no facto de o senhor levar para fora apenas as coisas negativas e dificilmente mencionar as realizações positivas que ocorrem no país?

Isaías Samakuva –  Não há nada que eu tenha levado para fora que nunca tenha sido dito aqui no país. A única questão é que aquilo que digo aqui dentro é de alguma forma abafado. Levantamos situações negativas e de uma forma geral levantamo-las para chamar a  atenção, como críticas positivas, a ver se conseguimos parar com estas situações, mas ninguém as menciona. Elas são levadas ao conhecimento mas morrem ali. É, como se costuma dizer, “morrem no deserto”. O problema é que de uma forma geral, as pessoas gostariam de não ouvir aquilo que fazem de negativo. Isto é o que incomoda.

Jornal de Angola – Está agora no quarto mandato como líder do seu partido. Está confortável com esta caminhada política e o que representam para si os valores da democracia e as maiorias absolutas?

Isaías Samakuva – Sinto-me confortável estando no quarto mandato na direcção do meu partido, porque não violei nem normas partidárias nem normas nacionais ou internacionais. Agradeço-lhe por ter levantado esta questão porque na verdade sinto que há uma deturpação de conceitos e muita gente agarrou-se a estes conceitos e confunde as coisas, quando na realidade a democracia é acima de tudo, tal como a própria palavra significa, o poder do povo para o povo e tem características que constituem o seu significado. A democracia traduz o cumprimento de normas, reflecte o Estado de Direito, envolve a participação dos cidadãos, o respeito pelos direitos humanos e obriga-se à separação de poderes. Nos partidos políticos, ao contrário do que acontece no Governo, não há limitação de mandatos. Se for a fazer a sua pesquisa vai encontrar que todos os estatutos dos partidos estão sem quaisquer cláusulas de limitações de poderes. 

Jornal de Angola – É reconfortante haver exemplos desse género pelo mundo fora fundamentalmente para justificar uma posição muito criticada?

Isaías Samakuva – Não vejo por que razão para um europeu tal não representa problema algum e os problemas surgem quando tal acontece com um africano. Se o partido tivesse uma cláusula que limitasse o mandato, naturalmente essa cláusula seria cumprida. Mas deixe-me que, para este contexto, mencione alguns exemplos. A chanceler alemã Angela Merkel está no seu 15.º ano como presidente do Partido Democrata Cristão Alemão (CDU) e no terceiro mandato como chanceler. Outro exemplo é do presidente Lula que esteve quatro mandatos à frente do seu partido até vencer as eleições. A Alemanha tem outro caso, que é o de Helmut Kohl, que esteve à frente do seu partido durante 16 anos e na Inglaterra o caso de Margareth Tatcher que esteve três mandatos na direcção do seu partido.

Jornal de Angola – A componente ética não é aqui chamada?

Isaías Samakuva  –  Pergunto-me porquê apelar à questão ético-moral? Eu não me impus. Curiosamente, desde o primeiro mandato, tenho passado pelas eleições com uma maioria significativa.  Outros há que dizem: “perdeu as eleições gerais e agora devia deixar a cadeira”. Quando perdi as eleições em 2008, apresentei a minha demissão numa reunião do comité permanente. Mas ao invés de aceitarem a minha demissão, sai dessa reunião com grande apoio. Estou completamente à vontade. Porém, temos limites fisiológicos e acho que aqueles que pensam que Samakuva quer estar à frente da UNITA até morrer enganam-se. Só se morrer agora. Mas se Deus me der mais uns dez anos, neste período não estarei certamente à frente da UNITA.

Jornal de Angola – Esta é uma tentativa de enviar um sinal de que é um líder que segue à risca um dos princípios que pretende subordinar a política à ética?

Isaías Samakuva – Absolutamente. Mas como a ética coloca questões de violações do bem e do mal, deviam dizer-me onde é que violei a ética. Assim o debate seria outro.

Jornal de Angola – Que sinal a sua vitória no maior partido da oposição envia à juventude anggolana, que, quer queiramos quer não, passou a fazer alguma leitura dos tempos?

Isaías Samakuva – O que vejo é a juventude a aplaudir e a encorajar a minha vitória. Mas existirão aqueles que criticam a continuidade de Samakuva exactamente nos termos em que falamos aqui porque acham que estamos a violar normas democráticas. Mas digo: não ha violação de normas democráticas. A porção da juventude que me encorajou a continuar é significativa. Temos de saber que nunca encontraremos consensos na totalidade, mas vamos orientar-nos pela posição das maiorias. Tanto no partido como fora dele vejo isso.

Jornal de Angola – Uma das grandes matrizes do partido passa por caracterizar-se como um projecto de sociedade em si. Continua a reiterar isso e como pensa efectivá-lo, uma vez que este projecto já vai nos seus 50 anos?

Isaías Samakuva – A UNITA é um projecto de sociedade. Os princípios que enformam esse projecto são aqueles em que acreditamos e que fariam uma Angola diferente daquela em que estamos a viver. Dura quase 50 anos. Mas existem projectos que duraram muito mais tempo antes de poderem impor-se. A luta dos sul-africanos com o projecto de criarem uma África multirracial levou muito tempo. O facto deste projecto levar este tempo não significa que não seja válido. Hoje vemos que aqueles que rejeitavam a UNITA começam a abraçar os seus ideais porque acham que são os mais justos e os que mais se preocupam com a vida do cidadão. É uma questão de tempo.

Jornal de Angola – Enquanto líder do maior partido da oposição faz grande fé no processo de diversificação económica ou alinha pelo eixo dos cépticos?

Isaías Samakuva – Acredito nesse processo. Penso que a economia deve ser diversificada, mas já devia ter sido feito. Só não acredito que ela venha a acontecer da forma como está a ser teorizada presentemente. Fiquei, de certa forma, satisfeito ao saber que o senhor Presidente da República chegou também a esta conclusão. Estamos a falar da diversificação, mas ela não está acontecer. Ela nunca há-de acontecer só pelo facto de criarmos mais uns projectos agrícolas.
Não chega. Tanto mais que estes projectos estão a ser criados numa lógica de latifúndio, que mais uma vez pertencem a uma certa elite, que por sinal nem o faz com vista à diversificação económica mas visando os seus lucros. Pensamos que a diversificação deve ser feita. No sector minério, não podemos olhar apenas para o diamante ou para o petróleo, temos de olhar para o ouro, o fosfato, o cobre, o urânio, entre outros.

 Jornal de Angola – O que propõe em concreto?

Isaías Samakuva – Proponho que as inteligências ou as mais-valias que temos no país sejam de facto utilizadas. Angola tem recursos humanos que poderiam ajudar significativamente o processo de diversificação económica, mas encontram vários obstáculos. É ainda difícil criar uma empresa dadas as dificuldades impostas pela burocracia e acesso ao crédito. Temos um banco de desenvolvimento que, penso, devia fazer mais. A burocracia deve diminuir. Esta é uma área que tem sido melhorada, mas que ainda não chega. Conheço países onde podem ser criadas empresas em uma ou duas horas. Além do que já mencionei, existem algumas questões políticas que também impedem que os angolanos possam participar com  o seu saber e as suas energias na economia e na diversificação.

Jornal de Angola – Questões políticas, o que quer dizer exactamente?

Isaías Samakuva – Falo de questões políticas que acabam por ser mecanismos discriminatórios que impedem pessoas que não sejam do partido que sustenta o poder de desenvolver os seus projectos, não conseguindo também o apoio de bancos. Todo este conjunto de situações precisa de ser melhorado ou alterado. Sempre pensei que com a conquista da Independência fosse reduzir-se ao mínimo possível o sofrimento do povo, mas constato que na realidade depois da Independência esse sofrimento não só se mantém como se avoluma.

Jornal de Angola – Como avalia o contexto socio-político e económico que o país atravessa?

Isaías Samakuva – O actual contexto está difícil. Está difícil para aqueles que procuram envolver-se em projectos e que não conseguem e está também difícil para os que tinham projectos em marcha e que de um momento para outro se viram afectados pela chamada crise. Penso que é uma situação que ainda vai continuar por algum tempo. Mas acredito na capacidade realizadora dos angolanos e creio que é uma fase que vai passar. Há quem diga que talvez tenha sido melhor o emergir desta fase, pois parece que também está a ser uma escola. Oxalá tiremos sérias lições para evitar que situações do género venham a repetir-se no futuro.

Jornal de Angola – Sente que a forma como se posiciona na política distancia-se muito pouco da que foi a filosofia de Jonas Savimbi ou tem uma abordagem muito mais original e própria?

Isaías Samakuva – Não sei se é verdade dizer que me distancio muito pouco da filosofia do Dr. Jonas Savimbi. O que sei é que a linha política que a UNITA segue é aquela que foi traçada desde os primórdios da sua fundação, assente nos princípios do que chamamos Projecto de Muangai, que continua válido até hoje. É importante considerar que as épocas são completamente diferentes. O Dr. Savimbi dirigiu o partido num período de conflito armado. Nessa situação havia necessidade de se aplicar um determinado número de normas com algum rigor e força. Isto não pode ser feito agora numa fase de paz e em que buscamos a reconciliação e procuramos o diálogo com todas as franjas da sociedade. Não faz sentido aplicarmos a metodologia daquela época quando buscamos a harmonia e uma convivência pacífica. Aqui o discurso tem de ser diferente daquele que se utilizava na época passada. Temos de ter em consideração a época que vivemos, os objectivos que pretendemos atingir.

Jornal de Angola – Se a UNITA fosse convidada a formar uma frente única para o pleito de 2017 estaria receptiva e favorável ao “ecumenismo político”?

Isaías Samakuva – Não vamos esperar que sejamos convidados. Nós é que estamos a trabalhar no sentido de convidar os outros no futuro e vamos continuar. A UNITA tem convidado os outros partidos a ensaiar os primeiros passos para uma frente comum. Demos estes passos em 2004 quando tentámos criar uma plataforma, que, devo dizer, não foi bem sucedida. Em 2008, após as primeiras eleições em tempo de paz, voltámos a convidar os partidos com vista a atingir objectivos concretos, como foi no caso da elaboração da Constituição de 2010 e também da nova Lei Eleitoral. Porém, mesmo ali onde os objectivos eram claros, em determinada altura vimos que não foi alcançado como desejávamos. Continuamos com a cooperação com outros partidos com ou sem assento na Assembleia Nacional. Na política é a necessidade do momento que determina a acção.

Jornal de Angola – A Assembleia Nacional, à semelhança de outras instituições, representa o pilar da democracia. Sente que o papel para o qual foi criado ou existe está a ser bem cumprido?

Isaías Samakuva – Já manifestei a minha posição sobre o desempenho da Assembleia Nacional e devo dizer que não tem cumprido o seu verdadeiro papel. Acho que tem estado, de certo modo, a seguir a marcha do Executivo e não se tem projectado como um contra-poder. Por isso tenho estado a dizer que não existe ainda separação de poderes no país. Quero acreditar que à medida que o tempo passa os deputados assumam essa responsabilidade e revejam a maneira como funcionam. O Executivo terá sempre a tentação de rebocar a Assembleia Nacional. Dependerá dela própria manter a sua autonomia e saber que tem de haver uma interdependência . A Assembleia Nacional tem de saber que é um outro poder e que deve exercer esse poder como tal. Na minha opinião, isso não tem acontecido. A Assembleia Nacional devia manter a sua autoridade, enquanto um poder diferente do Poder  Executivo.

Jornal de Angola – Com toda a franqueza, como vê o desempenho do Executivo?

Isaías Samakuva – Penso que o desempenho do Executivo explica a situação que vivemos. Se estiver satisfeito com a situação que estamos a viver poderá dizer que o desempenho do Executivo é bom, mas se o desempenho traduz aquilo que vemos na prática, aí já é outra questão. Estive a ver uma peça de televisão que retratava a degradação da estrada entre o Nzeto e o Soyo, uma situação vivida todos os dias há dez anos. Sempre que chove aquela estrada está assim, e trata-se do Soyo, que produz petróleo. O que diremos do desempenho do Executivo? Onde está? Existe? Já não falo do desempenho. Eu pergunto se existe? Vejamos o que se passa com o lixo e com a questão da água. Tenho denúncias de pessoal médico do Hospital Maria Pia que me dizem que a unidade de saúde não tem Raio X porque está avariado. A ser verdade, pergunto: o que falta, vontade política ou não existem condições de trabalho? O que falta aos meus compatriotas, muitos deles meus conhecidos e até com quem tenho boas relações. Como é que permitem situações dessa natureza?

Jornal de Angola – Tem apregoado o diálogo. O que diria para os jovens que tendem a usar fórmulas de protestos pouco ortodoxas ou mesmo até subversivas para se fazerem ouvir sempre que sentem os seus direitos ameaçados?

Isaías Samakuva – Acho que os homens deviam desenvolver cada vez mais capacidades para o diálogo. O diálogo deixa as pessoas conversarem, conhecerem-se e entenderem-se. Mesmo no dia-a-dia, quando temos apetência para o diálogo, empenhamo-nos para ouvir o outro. Ganhamos sempre alguma coisa e corrigimos mal entendidos. Os jovens não são maus. Só precisam de ser entendidos para que depois passem a entender os outros. Não existe outra fórmula senão o diálogo. Se por um lado este diálogo é abrangente a todas as faixas etárias e sectores da sociedade, por outro lado sinto que as gerações mais adultas precisam de entender os fenómenos da actualidade, o comportamento e as atitudes dos jovens. É preciso estreitar a distância que nos separa dos jovens. Eles são sempre irrequietos, radicais e procuram fórmulas mais rápidas para os seus objectivos. Por isso, precisamos antes de mais de entender esta maneira comportamental dos jovens para compreendermos o que fazem e a partir daí ouvi-los. Isto deve acontecer nas famílias, na comunidade e entre governantes e governados. Creio que se isso acontecer, evitaremos muitos problemas.

Jornal de Angola – Este novo ano traz um legado de dificuldades de 2015, mas é apesar de tudo um ano de pré-campanha. Que desafios espera enfrentar?

Isaías Samakuva – É um ano de pré-campanha com certeza e a UNITA precisa de mobilizar os angolanos para que acreditem no seu projecto. Ela precisa de dizer aos angolanos que percam o medo. Se tiverem medo o país não vai avançar para a mudança.

Jornal de Angola – É de facto o que quer dizer? Acha que estamos, nós os jovens angolanos, impregnados de medo?

Isaías Samakuva – Não todos, existem alguns que não seguem por este caminho. Mas a maioria está impregnada de medo, medo de dizer as verdades e até de escutá-las. É preciso alguma coragem na ordem e no sistema democrático estabelecido, o grande problema é que muitas vezes o sistema está estabelecido mas não se faz cumprir. É preciso que trabalhemos para que a juventude deixe de ter medo e para que o cidadão acredite que existem histórias contadas no passado quenão são verdadeiras. É preciso escutar mas também é preciso dialogar.

Jornal de Angola – Economia, emprego, classe média e ambiente. O que representam para si estas palavras para o contexto em que o nosso país se encontra?

Isaías Samakuva – Falar de economia é falar de desenvolvimento, tranquilidade, ambiente e falar também de política, mas é fundamental que nos sintamos estáveis, e quando digo estáveis falo numa banca que funcione de facto e onde não exista falta de “sistema”. Estabilidade é também saber que quando alguém acaba os estudos pode trabalhar e pode ter uma casa confortável para o seu nível. Para o nosso contexto, tudo isso precisa de ser reavaliado e reajustado para que nos sintamos num país verdadeiramente em paz e estável. Caso contrário, as palavras estarão despojadas do seu sentido real.

Jornal de Angola – A UNITA é o único partido da oposição que integra a Internacional Democrática do Centro. Que vantagens busca o seu partido ao filiar-se nesta organização?

Isaías Samakuva – Depois da guerra procurámos aliar-nos a outros partidos. Olhando para a nossa linha ideológica, achámos que estávamos com credenciais para estar na Internacional Democrática do Centro e na Internacional Socialista, mas nesta última já estava o MPLA com uma candidatura. A nossa ideia de pertencer a essa família política não teve sucesso. Aproximámo-nos da Internacional Democrática do Centro e fomos admitidos há 13 anos e conseguimos conquistar uma das vice-presidências da organização. No seio da organização damos a conhecer aos partidos de 92 países que pertencem a esta família política o que a UNITA faz para a promoção de valores e de princípios universalmente consagrados. Na última reunião, do México, falámos sobre a proliferação do terrorismo, do fundamentalismo e de questões climáticas. Devo dizer que a nossa presença tem sido positiva nessas reuniões e estamos certos que, embora se diga o contrário, procuramos elevar o nome do nosso país.

Foto: Santos Pedro

Angola. ONU EXIGE LIBERTAÇÃO IMEDIATA DE JOSÉ MARCOS MAVUNGO



O Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenções Arbitrárias (UNWGAD) exige a “libertação imediata” do activista dos Direitos Humanos angolano José Marcos Mavungo, considerando “arbitrária” e “violadora” da lei internacional a detenção e condenação.

Num comunicado, a instituição da ONU, além de exigir a libertação, pede ao Governo de Luanda que pague uma indemnização a Marcos Mavungo, detido em Março de 2015 sob a acusação de “rebelião” por ter organizado uma manifestação para protestar pacificamente contra as violações aos Direitos Humanos e a “má governação” em Cabinda.

“A liberdade de expressão e a realização de manifestações pacíficas são fundamentais para a democracia e ninguém deverá ser detido por exercer legitimamente esses direitos”, disse Paulette Brown, presidente da American Bar Association (ABA), que integra o Grupo de Trabalho da ONU.

Recorde-se que o tribunal de Cabinda julgou José Marcos Mavungo acusando-o da prática de um crime de rebelião contra o Estado. Provas? Nem vê-las. Mas para o regime não são precisas. Basta o regime dizer.

Marcos Mavungo foi acusado pelo Ministério Público do regime angolano da prática de um crime de rebelião contra o Estado e também de incitar à violência e do uso de material explosivo, que a polícia, alegadamente, recuperou na véspera de uma manifestação agendada para 14 de Março de 2015, em Cabinda.

Em declarações à DW África em Cabinda, Francisco Luemba – um dos advogados do acusado – disse que o Ministério Público não apresentou nenhuma prova concreta contra o seu cliente. Ou seja, o Ministério Público (do regime) continua igual a si próprio, pondo em prática a lei de que todos são culpados… até prova em contrário.

“Pelas declarações do capitão que realizou a operação, eles não encontraram qualquer elemento que permitisse imputar esse material (explosivos e panfletos) a Marcos Mavungo ou aos organizadores da marcha, ou ainda aos ex-responsáveis da ONG Mpalabanda,” garante Francisco Luemba.

Francisco Luemba afirma ainda que a outra parte dos panfletos que “dizem terem sido distribuídos em algumas artérias da cidade, só foram encontrados por dois ou três agentes da polícia nacional”. E o advogado considera estranho que os panfletos distribuídos “fossem visíveis só por esses dois ou três elementos da polícia”.

O advogado de Marcos Mavungo sublinha por outro lado, que até agora não foi estabelecida nenhuma relação entre esses panfletos e Marcos Mavungo.

A defesa constata ainda que das acusações do Ministério Público ficou provado que o oficial militar que assina o relatório não foi quem produziu o mesmo documento.

“Ele não conhece mais do que a parte, digamos operativa, o que foi encontrado que é da sua responsabilidade. Mas dali às decisões que são tomadas e que tem de ser feita uma participação contra os organizadores da marcha e os antigos membros da Mpalabanda, isso já é uma decisão da hierarquia, embora não exista nenhum elemento objectivo que permita fazer esse juízo”, destaca o advogado Francisco Luemba, para em seguida acrescentar que o material não foi submetido a qualquer exame, não houve qualquer diligência destinada a provar a origem do mesmo, quem o tinha na posse, para quem se destinava e o que é que essas pessoas deveriam fazer com esse mesmo material.

“Tudo isso não foi apurado e decidiram apenas que teria que ser imputado por um lado, aos organizadores da marcha e por outro, aos antigos membros da Mpalabanda”, sublinhou.

Um regime corrupto e incompetente

No dia 14 de Março de 2015 estava prevista, pelas 15 horas, a realização na cidade de Cabinda de uma manifestação para dar a conhecer a má governação e a violação dos direitos de cidadania naquela província.

Para o efeito, dando provas da sinceridade e da transparência dos seus desígnios, um grupo de activistas, liderado por José Marcos Mavungo, enviou uma missiva ao Governo Provincial de Cabinda, na qual anexaram o conteúdo de alguns dísticos que apresentariam no decorrer do evento, por exemplo: “Queremos a reabilitação da Mpalabanda – Acção Cívica de Cabinda, Cabinda é um povo com direito à liberdade e à dignidade”.

Erro dos activistas! Não levaram em conta que dar prova de sinceridade e transparência à espera de serem ouvidos e serem contemplados com uma resposta cordata é o mesmo que esperar o comboio num aeroporto.

No dia anterior à data da manifestação (13), aconteceu uma espécie de milagre inspirado naqueles que algumas seitas religiosas fabricam, foram apanhados em flagrante delito indivíduos que transportavam uma mochila com explosivos e panfletos arruaceiros. Os “terroristas” conseguiram – estrategicamente – fugir, mas ficou a mochila com a sua insignificância probatória.

Na noite desse mesmo dia, ó coincidência bendita!, insultuosos panfletos foram distribuídos pela cidade. Era demais, “Basta! Vamos prender esse Mavungo”. E prenderam-no no dia seguinte. À saída da missa. Não poderia haver melhor lugar.

O peso da acusação

1) A acusação que pesa sobre José Marcos Mavungo assenta sobre nada, a não ser a descoberta e apreensão dessa tal mochila contendo explosivos e panfletos que incitavam a violência.

Segundo o que consta nos autos deste processo, o resgate da referida mochila foi feito quando alguns indivíduos foram interpelados pelos Serviços de Inteligência (?) do Estado no dia 13 de Março do ano passado nas imediações do bairro 4 de Fevereiro da cidade de Cabinda, capital da província com o mesmo nome.

Aconteceu, porém, que a operação redundou num fracasso inexplicável, uma vez que só a mochila foi apreendida. Os indivíduos interpelados tiveram mais do que tempo de obedecer ao estabelecido e pôr-se em fuga e os policiais levaram a mochila sem terem a mais pequena ideia de onde ela vinha e de quem eram os seus transportadores.

Tal descuido, por parte de elementos que fazem parte de uma das instituições melhor treinadas de África, para não dizer do mundo, merece, pelo menos, alguns esclarecimentos sobre o modo como a “fuga” desses indivíduos aconteceu. Mas não vale a pena esperar que tal aconteça, fugiram e mais nada. Se é que tiveram necessidade de fugir. Coisas que acontecem a muita gente, mas praticamente nunca a quem tenha boné do MPLA.

2) Segundo o que o advogado de Mavungo declarou numa entrevista concedida à DW, “até agora os explosivos nunca foram vistos nem nunca foram mostrados, nem ao réu, nem à defesa, mas, de acordo com as informações que nós encontrámos no processo, são blocos de TNT de 200 e 400 gramas, alguns metros de mecha lenta e de cordão detonante e cápsulas detonantes. Há também material de propaganda, material subversivo, como eles dizem. Seriam dez ou 11 panfletos (nos autos constam nove panfletos). Mas, até agora, não há nenhum exame ou qualquer elemento objectivo que permita relacionar este material com Marcos Mavungo”.

É elementar, claro está! Deixaram fugir, no decorrer de uma situação de suposto flagrante delito, aqueles que poderiam dar informações sobre o nome dos eventuais mandantes ou proprietários e a proveniência da dita mochila, transformando esta última em vírus sem anfitrião, ou seja, uma prova de crime inerte, sem valor provatório. A não ser que os explosivos estejam autografados ou… falem. Nunca se sabe.

3) “Vamos arrancar à força estes valores, se necessário for, usando a violência como forma de conquistar. A polícia nada poderá fazer contra a nossa vontade. Caso nos impeçam recorram à força com paus, pedras e catanas”; “Devemos arrancar a força do governo e do MPLA, o que nos pertence e pacificamente não é possível. O recurso tem que ser a força e é este o momento”.

Este são dois exemplos de conteúdos lavrados nos alegados panfletos, cujo autor foi identificado como sendo Mavungo. Ninguém sabe como, mas foi! Estariam, presume-se, assinados, tinham impressões digitais ou vestígios de ADN de Marcos Mavungo.

4) Nos autos consta também: ”O réu, dada rejeição do evento, em gesto de ameaça e afronta, proferiu as afirmações segundo as quais, “A manifestação teria lugar, nem que fosse por força da ponta dos bayonetes”.

Falsidades da mais baixa estirpe

Esta afirmação apontada a Marcos Mavungo, saiu da boca – embora possa ter origem em qualquer outra parte do corpo – da governadora de Cabinda. Foi ela quem pronunciou essas palavras. Não se pode admitir que o juiz tome por palavra de Evangelho as declarações duma personalidade política demente e que usa artifícios torcidos a preceito para redourar os seus brasões ferrugentos junto do Executivo.

Em função de toda esta construção jurídica, feita sem contraditório, assente em presunções e agravada por intromissão de grosseiras mentiras no conteúdo da sua argumentação, o juiz concluiu que a manifestação teria de ser interdita por haver prováveis confrontos com possibilidade e probabilidade consideráveis de risco de poder haver perda de vidas humanas, ao mesmo tempo que, dada a sua postura, agressiva, Marcos Mavungo deveria permanecer encarcerado por uma questão de prudência. Em Angola, a justiça é isto!

As aventuras de um juiz na ilegalidade

Que a Justiça em Angola vai mal é por demais conhecido, mas que fosse tanto assim é que não. O Conselho Superior da Magistratura judicial e o Presidente do Tribunal Supremo, se quiserem – e puderem – ser honestos, em relação à doutrina do Direito teriam de tomar uma atitude de nobreza.

O juiz, quando coloca na pronúncia que o arguido decidiu realizar a manifestação quando esta não foi autorizada, demonstra não ter competência para o exercício do cargo, uma vez o art.º 47.º ser claro:

1) “É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei.

2) As reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente, nos termos e para os efeitos estabelecidos por lei.“

Ora, onde é que este (suposto) juiz tirou a necessidade de autorização, logo só isso em qualquer país do mundo, incluindo o Estado Islâmico, este juiz seria imediatamente demitido por ofender a justiça e demonstrar analfabetismo jurídico, merecedor de um repouso compulsivo.

Não podem ficar indiferentes, como se nada estivesse a passar num reino cada vez mais putrefacto, como é o da justiça, aplicada de acordo com as conveniências políticas e/ou com o engajamento dos juízes e procuradores pertencentes ao comité de especialidade dos juízes e procuradores do MPLA.

Quem lê a pronúncia do juiz Jeremias Sofera, não pode deixar de apanhar um enjoo e nojo ante total desconhecimento sobre a Constituição e a Lei. Isto, é claro, partindo do princípio de que um juiz deve conhecer a Constituição e a Lei.

Todos podemos ser desconhecedores de alguns meandros do direito, mas não se admite analfabetismo jurídico de quem foi um dia investido na pele de juiz, para aplicar justiça, interpretando fielmente a doutrina e as leis.

Ora não é o caso do juiz provincial de Cabinda, por sinal, quadro castrense, pois antes esteve ligado à justiça militar e por altura da extinção da Mpalabanda, quando os juízes proeminentes de Cabinda foram transferidos “compulsivamente”, por alegadas ordens dos generais Manuel Hélder Vieira Dias Kopelipa e José Maria, para Luanda, colocando no seu lugar juízes dóceis, não importa se competentes, pois para julgar Cabindas ou a FLEC, qualquer servo serve para o caso.

Como é que alguém pode pronunciar-se às cegas partindo de presunções?

Um juiz, mesmo com o primeiro ano, mandaria o processo regressar para melhor instrução ou mesmo poderia não se pronunciar, por falta de clareza, ausência de flagrante delito e factos esponjosos, que não blindam a acusação e agora a pronúncia.

Quando um juiz diz que Marcos Mavungo disse que a manifestação sairia a bem ou a mal e outras invencionices, estas foram declarações da governadora e aqui não houve contraditório, para se apurar em que altura Mavungo disse aquilo. Mais uma vez a palavra de um elemento do MPLA, mesmo sendo mentira e uma sacanagem, tem força de lei.

Enfim, a derradeira pérola (The last, but not the least) é a de terem uns tipos sido avistados por diligentes agentes secretos, carregando sacos com TNT e não terem sido agarrados mas o produto que só a polícia viu e diz que os homens eram de Mavungo, mas sendo Cabinda uma cidade pequena como é que não conseguiram os homens aparecer à luz duma simples investigação?

Com juízes deste quilate, os amantes das liberdades e democracia nunca serão cidadãos iguais aos do MPLA e Angola vai continuar a ter uma casta isenta dos direitos mais elementares, ainda que constitucionalmente consagrados.

Folha 8

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AS TEMPESTADES QUE RONDAM A AMÉRICA LATINA



Vai terminando a primeira grande onda de governos populares. Retrocessos começaram, mas haverá resistência. Que aprender com os erros? Como preparar uma retomada?

Raúl Zibechi – Outras Palavras - Tradução: Gabriel Filippo Simões

O fim do ciclo progressista implica na dissolução de hegemonias e no início de um período de dominação, de maior repressão aos setores populares organizados. Até agora, temos comentado as causas do fim desse ciclo; agora é preciso começar a compreender as consequências – tremendas, pouco atraentes, demolidoras em muitos casos.

A recente eleição de Mauricio Macri na Argentina é uma guinada à direita que reacende a chama do conflito social. A resposta dos editores do conservador jornal La Nación, na forma de um editorial que defende abertamente o terrorismo de Estado é uma amostra do que está por vir, mas também das resistências que o projeto da direita tradicional terá de enfrentar.

Não estamos diante de um retorno aos anos 1990, marcados pelo neoliberalismo e privatizações, pois os de baixo estão numa situação diferente: mais organizados, com maior autoestima e mais entendimento do modelo que os oprime. Acima de tudo, com maior capacidade de confrontar os poderosos. Experiências coletivas não acontecem em vão – deixam marcas profundas, sabedoria e modos de fazer que neste novo estágio irão desempenhar um papel decisivo, na necessária resistência às novas direitas.

O período que se inicia em toda a América do Sul, quando o presidente Rafael Correa já anunciou que não pretende se reeleger [presidente do Equador], será de forte instabilidade econômica, social e política; de crescente interferência militar do Pentágono; de novas dificuldades para aintegração regional, que já passa por sérios problemas; de deterioração nas condições de vida dos setores populares, cujos rendimentos começaram a se corroer nos últimos dois anos.

Nesta nova conjuntura, penso que algumas questões são centrais:

A primeira é que não haverá forças políticas capazes de gerar um mínimo de consenso em torno dos governos, tal como os governos progressistas conseguiram obter em sua primeira fase. Não haverá consenso em governos como o de Macri; mas convém lembrar que a hegemonia de Lula foi quebrada durante o segundo mandato de Dilma Rousseff. O mesmo ocorreu nos governos de Tabaré Vázquez, Rafael Correa e NicolasMaduro, embora com causas diferentes.

Quando a hegemonia se esvai, a lógica de dominação se impõe, o que nos leva diretamente à exacerbação dos conflitos de classe, gênero, geração e étnico-raciais. A tríade dominação-conflitos-repressão vai afetar (já está afetando) as mulheres e os jovens dos setores populares, as principais vítimas da guinada sistêmica à direita.

A segunda questão a ser considerada é que o modelo político-econômico é mais importante e decisivo do que as pessoas que o conduzem e administram. Nas esquerdas, ainda temos uma cultura política muito centrada nos caudilhos e líderes – que sem dúvida são importantes, mas que não são capazes de ir além dos limites estruturais que o modelo impõe sobre eles. O extrativismo é o grande responsável pela crise que assola a região, pelo desgaste que os governos sofrem e, grosso modo, é o fator principal que explica a guinada à direita das sociedades.

Ao contrário do modelo industrial de substituição de importações, que gerou inclusão e promoveu o desenvolvimento social, o atual modelo extrativista gera polarização social e econômica e conflitos nas comunidades, além de destruir o meio ambiente. Portanto, é um modelo que produz violência, criminalização da pobreza e militarização das sociedades e dos territórios de resistência.

A incapacidade dos governos progressistas de abandonar o modelo extrativista e a vontade expressa das neodireitas de aprofundá-lo anuncia tempos dolorosos para os povos. A recente tragédia em Mariana (Minas Gerais) causada pela ruptura de duas barragens da mineradora Vale, provocando um gigantesco tsunami de lama que cobriu campos cultivados e vilarejos inteiros, é uma pequena amostra do que nos espera caso um limite não seja colocado ao modelo mineração-soja-especulação.

Em terceiro lugar, o fim do ciclo progressista supõe o retorno de movimentos antissistêmicos ao centro do cenário político, do qual eles haviam sido deslocados pela centralidade da disputa entre governos e oposição conservadora. Mas os movimentos que estão sendo ativados não são os mesmos, nem possuem os mesmos modos de organização e prática,dos que encabeçaram as disputas dos anos 1990.

Na Argentina, o movimento dos piqueteros não existe mais, embora tenha deixado profundos vestígios e lições, além de um setor organizado que trabalha nas villas das grandes cidades, com novos tipos de iniciativas tais como as casas populares de mulheres e secundaristas. Os movimentos camponeses, como o dos Sem Terra, transformaram-se devido à expansão geométrica da soja. Mas novos atores, mais complexos e diversos, emergem; deles participam, entre outros, os afetados pela mineração ou agrotóxicos, bem como ampla gama de profissionais de saúde, educação e mídia.

A impressão é de que estamos assistindo a novas articulações, acima de tudo nas grandes cidades, onde os protestos contra a desigualdade e por mais democracia extravasam as trincheiras de partidos e sindicatos e também dos movimentos da década neoliberal das privatizações.

Por fim, o ciclo progressista deve se fechar com uma análise clara dos erros cometidos pelos movimentos. Seria desmoralizante para os mesmos que no próximo ciclo de lutas se repetissem os mesmos erros que afetaram sua autonomia nos últimos anos. É provável que a maior dificuldade para o enfrentamento consista em saber como acomodar a dupla atividade dos movimentos: as lutas contra o modelo (a defesa de espaços próprios, mobilização e formação) e a criação do novo em cada espaço e tema possível (saúde, produção, habitação, terra e educação).

Enquanto ações nas ruas nos permitem impedir ataques vindos de cima, a criação do novo é caminhar na direção da autonomia. Estas são maneiras que aprendemos de continuar navegando em meio às tempestades.

Brasil. REFLEXÕES SOBRE A CONCENTRAÇÃO DO PODER FINANCEIRO E ECONÔMICO




As absurdas políticas adotadas no setor elétrico, desde o famigerado FHC e que prosseguiram sem muita alteração nos governos petistas, conduzindo o país a um desastre de múltiplas facetas, podem ser resumidas deste modo: energia precária e caríssima num país que tem tudo para produzi-la em abundância e em condições mais do que competitivas em matéria de preço.

Ficaram queixando-se do câmbio a propósito da desindustrialização do Brasil, mas essa decorre, em primeiro lugar, de as transnacionais dominarem os mercados no Brasil, devido à política do modelo dependente, implantada desde agosto de 1954, e, em segundo lugar, do tal custo Brasil, em que os custos da energia e dos transportes são fatores de grande peso.

Em relação a isso, não vejo outra explicação senão o fato de o Brasil não ter instituições políticas que lhe permitam ter autonomia e soberania e, assim, adotar políticas que tenham algo em comum com os interesses nacionais. De outro modo, seria estupidez demais para ser verdade.

Ou nos conscientizamos de não haver chance de modificar essa situação sob o atual sistema político, e partimos para uma união nacional consolidada por outro modelo político – sem isso, não adianta falar em mudar de modelo econômico, e o que temos decorre da absurda concentração do poder financeiro e econômico, nas mãos de poucos banqueiros (associados ao cartel financeiro da oligarquia anglo-americana) e de carteis de empresas transnacionais – ou prosseguiremos na vergonhosa desintegração em que se está afundando.

Ronaldo Barata tem razão ao apontar a privatização da Vale Rio Doce como o maior escândalo já perpetrado nesta República amarrada por instituições manietadas pelo império anglo-americano. Nela só funciona uma democracia formal, sem conteúdo democrático nem republicano nem nacional, na qual os resultados das urnas só são acatados pelo sistema real de poder (financeiro, mediático etc.), se servirem para aumentar a concentração econômica, a desindustrialização e a desnacionalização.

Mesmo com a manipulação enorme que o império faz não só através da mídia, mas também pela cooptação de diferentes tipos de associações, entidades, centros de estudo etc., que são formadores de opinião, o sistema de poder não conseguiu evitar que líderes nacionalistas tivessem maioria eleitoral, como foi o caso de Brizola, mais de uma vez.

Uma das ilustrações históricas mais nítidas da posição singular do líder gaúcho foi o conjunto de campanhas midiáticas, fraudes e pressões sobre eleitores etc., empregado pelo sistema de poder, a fim de evitar que Brizola passasse ao segundo turno das eleições presidenciais de 1989, o que teve duas consequências fatídicas, além de retirar Brizola do primeiro plano da política.

Então, em estados como Minas Gerais e Bahia, houve adulteração dos resultados na computação por parte dos tribunais eleitorais, além de golpes como a retirada dos transportes em zonas nas quais o eleitorado brizolista tinha grande maioria, impedindo-o de chegar aos locais de votação. Conheci militantes nesses estados que votaram em urnas nas quais apareceu o resultado zero para Brizola.

Resumindo, os adversários do Brasil, conscientes de que iludiriam os demais, conseguiram assegurar a eleição de Collor, que desencadeou o primeiro tsunami de medidas de destruição das instituições de Estado e de estatais fundamentais para o desenvolvimento nacional (o segundo tsunami, notório, foram os dois mandatos de FHC, conquistados ambos por fraude: um com a farsa do real; o outro ocultando o resultado desastroso dos quatro primeiros anos e comprando a emenda da reeleição); e firmar Lula como suposta alternativa da esquerda e de oposição aos notórios agentes dos interesses do império anglo-americano.

Notável como o resultado manipulado das eleições no primeiro turno da eleição de fins de 1989 foi decisivo para os acontecimentos destes 26 anos decorridos até o presente, e explica por que o sistema imperial jogou tudo para que Brizola caísse para o terceiro lugar e ficasse fora do segundo turno.

Claro que, se Brizola fosse eleito, provavelmente não conseguiria atingir plenamente seus objetivos, dada a oposição no Congresso e os boicotes por parte de todos os redutos em que o poder entreguista está infiltrado nas demais instituições públicas e privadas.

Mas talvez, não sendo um acomodado, diante disso Brizola talvez tivesse liderado alterações institucionais, como teria podido ter feito, em 1961, se João Goulart não tivesse aceitado acordo com as raposas ditas centristas, do tipo Tancredo Neves, Ulysses e outras. Era seguir de São Paulo, onde já havia chegado, rumo a Brasília e pôr ordem na casa.

Infelizmente, o próprio Vargas também perdeu oportunidades históricas, devido a seu espírito conciliador. O império usa seus agentes, para acordos, mas está sempre preparado para fazer trair esses acordos. Estude-se a história do império romano e de muitos outros depois dele, e verifique-se que isso nunca mudou.

*Adriano Benayon é doutor em economia e autor do livro Globalização versus Desenvolvimento.

Brasil. REVOLUÇÃO DE 1923 / 93 ANOS




“Nós queremos leis que governem os homens e não homens que governem as leis". Honório Lemes (1864-1930)

Há 93 anos, no mês de janeiro, eclodiu,  em nosso estado, a Revolução de 1923.  O poder constituído e oposição se digladiaram novamente no cenário político. O ódio e revanchismo, desde a Revolução Federalista (1893-1895), não haviam sido aplacados. 

Em 1923, o Rio Grande do Sul foi palco do confronto entre os assisistas e borgistas.  O primeiro grupo era formado pelos dissidentes do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), sob a liderança de Assis Brasil (1857- 1938) e o segundo grupo, composto por chimangos, era comandado por Borges de Medeiros (1863-1961) que governou o Estado por mais de 20 anos. 

As facções políticas

Chimango ou borgista (lenço branco) é uma alusão à ave de rapina dos pampas. Consagrou-se na obra “Antônio Chimango” (1915) de Ramiro Barcelos (1851-1916). Nesta, o autor usou a alcunha de Amaro Juvenal, criticando o presidente do estado Borges de Medeiros.   
   
Maragato (lenço vermelho) nos remete à Maragateria, na Espanha, cujos habitantes eram vistos como bandoleiros. Usado pela situação (PRR), o termo visava a depreciar os adversários exilados, no Uruguai, porém foi aceito com orgulho, pela oposição, desde a Revolução Federalista (1893-1895).
     
O historiador Helio M. Mariante (1915-2005) definiu o confronto como uma luta de guerrilhas entre facções políticas. Os chimangos ou borgistas eram superiores, belicamente, e tinham o apoio da Brigada Militar.  Durante o conflito, a oposição contou com os caudilhos Honório Lemes (1864-1930), “O Leão do Caverá”, Zeca Netto (1864 -1948), “O Condor dos Tapes”, e Leonel Rocha (1865-1947) que combateram, no interior do RS, as forças borgistas. O confronto durou 300 dias, totalizando 21 combates, nos quais se perderam mais de mil vidas. 

A fraude eleitoral

Nas eleições, de 25/11/1922, Borges de Medeiros foi vitorioso.  Embora a escandalosa fraude, o resultado foi ratificado pela Comissão de Poderes da Assembleia, em 16/01/1923, curiosamente composta, exclusivamente. por borgistas. Segundo o historiador Moacyr Flores, havia 267.690 eleitores nos 72 municípios do RS. Foram 106.360 votos a favor do chimango Borges de Medeiros, enquanto Assis Brasil teve 32.217.

No dia 25/01/1923, na posse do seu 5º mandato, a oposição deu início ao confronto, a partir de Passo Fundo e Palmeira das Missões. A crise na pecuária, após a I Guerra Mundial (1914-1918), aliada à reeleição fraudulenta, foi o estopim, para que iniciasse os combates. O presidente do estado Borges de Medeiros não atendia às reivindicações, principalmente, dos pecuaristas e tinha uma política de desenvolvimento global da economia voltada à modernização e aos transportes. Adepto da doutrina positivista, inspirada em Augusto Comte (1798- 1857), alegava que o Estado existia para todos e não para uma determinada classe, geralmente, abastada e que não desejava “abrir mão” de seus privilégios.

A imprensa Legalista

Durante o período no qual a Revolução de 1923 se desenrolou, a violência contra a imprensa de ambos os lados foi predominante. A oposição promoveu o empastelamento de diversos jornais governistas, ocorrendo, em alguns casos, o espancamento de seus redatores. Na cidade de Quaraí, a sede do jornal O Cidadão, Órgão do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) fundado em 1908, foi destruída, quando Honório Lemes, “O Leão do Caverá”, tomou a cidade. Este periódico, de acordo com o pesquisador João Batista Marçal, foi o de maior longevidade, em Quaraí, circulando em torno de 30 anos. O Diário Popular (1890) de Pelotas, quase sofreu o mesmo destino, tendo a intervenção de Zeca Neto (Condor dos Tapes) que impediu a sua destruição.  O Dever, fundado em Bagé, em 1901, circulou até meados da década de 30, sendo porta-voz do Partido Republicano Rio-Grandense.

A imprensa maragata

Em resposta aos maragatos, os borgistas procuraram silenciar os jornais da oposição, por meio das autoridades, proibindo a circulação de diversos periódicos, entre eles: O Correio do Sul (1914-2008) fundado, em Bagé, por Fanfas Ribas que sofreu represálias; O Maragato de Santana do Livramento, sob a direção de Rafael Cabeda e Rodolfo Costa, passou a ser editado, em Rivera, a partir de 17 de março de 1897, devido a questões políticas que geravam perseguições e oCorreio da Serra, de Santa Maria, fundado, em 1917, por Arnaldo Melo, que circulou até 1930, defendendo a bandeira maragata.
   
Os jornais na capital

Em Porto Alegre, segundo o jornalista e pesquisador Francisco Rüdiger, em seu livro Tendências do Jornalismo (2003),O Democrata foi a principal vítima da repressão. Fechado pela polícia, este periódico era contrário à ditadura de Borges de Medeiros e à presidência de Arthur Bernardes (1875-1955), trazendo em seu cabeçalho o curioso dístico: “Rezemos no altar da Pátria, o “De Profundis”, da ditadura rio-grandense”. Outro periódico de oposição ferrenha, surgido em Porto Alegre, foi a Última Hora que realizou intensa campanha contra a candidatura de Borges de Medeiros. Lançado em 1914, a Última Hora, foi o porta-voz da oposição, cobrindo em suas matérias a Revolução de 23. Este periódico deixou de circular em fevereiro de 1926.


Um dos expedientes utilizados, pela máquina borgista, era o controle policial que foi vivenciado pelo historiador Walter Spalding (1901-1976). Este e outros amigos que trabalhavam na redação do jornal Última Hora, ao saírem da redação, na Rua dos Andradas, percebiam a vigilância de policiais fardados ou disfarçados, especialmente, na hora da saída do jornal para serem vendidos. Esses policiais eram os primeiros a comprá-los, ainda dentro da redação, visando à análise das matérias e à tomada de providências, caso não aprovassem o conteúdo.  Na cidade de Pelotas, Frediano Trebbi, responsável pelo jornal O Rebate, foi surrado na rua e, posteriormente baleado pela Brigada Militar. Diante desse quadro de brigas e perseguições, muitos jornalistas se refugiaram no exterior, onde se publicou, entre outros jornais, ALiberdade, de André Carrazoni.

Segundo o jornalista Carlos Reverbel (1912-1997), os heróis mais pungentes, no confronto de 1923, foram Honório Lemes e Fanfa Ribas: o primeiro nas coxilhas e o segundo nas colunas do Correio do Sul.  

As arbitrariedades no jornalismo político-partidário rio-grandense, na época, eram marcantes devido ao monopólio do poder, exercido pelos chimangos, que limitava o espaço de atuação da oposição maragata, confundindo as funções do político com as do jornalista. 

A respeito da importância do papel da Imprensa, no processo histórico, o jornalista Juremir Machado da Silva registrou, em sua apresentação, no livro História Social da Imprensa (2003), de José Marques de Melo: “A imprensa é História e faz História. A modernidade certamente não existiria sem ela.”
      
Não podemos nos esquecer de jornais político-partidários cuja longevidade comprova sua força e poder doutrinário. Neste aspecto se destacam A Federação (1884-1937) que durou 53 anos; O Diário Popular de Pelotas (1890) terceiro mais antigo jornal, ainda em circulação, no RS e a Gazeta de Alegrete (1882) o jornal mais antigo do interior do estado ainda em circulação. Estes três periódicos foram fundados no século XIX.    

O mais longevo jornal Maragato
   
Representando à oposição maragata, após a proclamação da República (1889) destacou-se, em termos longevidade, oEcho do Sul. Este periódico foi publicado primeiro em Jaguarão em 1855 com o título de Jaguarense, passando a chamar-se Echo do Sul a partir de 1857, quando foi transferido para Rio Grande. Em sua fase inicial foi conservador, passando mais tarde a fazer oposição ao PRR. Encerrou suas atividades em 1937. O Echo do Sul circulou por 80 anos, tendo maior duração que o jornal A Reforma (1869- 1912), do líder maragato Gaspar Silveira Martins (1835-1901) representando o Partido Liberal, durante o Império e, depois, já no período republicano o Partido Federalista (PF).

Alguns títulos de jornais citados, neste texto, fazem parte da hemeroteca do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. Esta instituição, fundada, em 10 de setembro de 1974, pelo jornalista Sérgio Dillenburg, com o apoio da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), é responsável pela guarda, preservação e difusão da história dos meios de comunicação no Rio Grande do Sul.

A assinatura do Tratado de Paz ou Pacto de Pedras Altas, em 14/12/1923, resultou em alterações na Constituição estadual, de 1891, que previa reeleições sucessivas e o voto a descoberto (não secreto). O voto deixará de ser a descoberto, em 1932, com as mudanças no Código da Justiça Eleitoral. O fato de tornar público o voto, fazia parte do ideal positivista de transparência; porém, na prática, favorecia a corrupção eleitoral. 

Após 05 mandatos de Borges de Medeiros, encerrou-se o seu ciclo hegemônico com a posse de Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), em 25/01/1928, como Presidente do Estado.  Em seu governo, Getúlio Vargas conseguiu unir tradicionais adversários políticos na Frente Única Gaúcha (FUG).  Criada em 1928, a FUG uniu o Partido Republicano Riograndense (PRR), liderado por Borges de Medeiros (1863-1961)  e o Partido Libertador de Assis Brasil (1857- 1938) e Raul Pilla (1892-1973). Em  1929, integrou a campanha da Aliança Liberal à presidência da República, apoiando Getúlio Vargas.

No dia 03 de outubro de 1930, na capital gaúcha, eclodia a Revolução de 30, liderada pela Aliança Liberal (Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul), que levou Getúlio Vargas a ocupar a presidência do Brasil, após ter sido derrotado, em eleição fraudulenta, pelo paulista Júlio Prestes de Albuquerque (1882-1946). Era o fim da política do café com leite que dominava o cenário nacional desde a época do presidente paulista Campos Sales (1898-1902).  Iniciava assim a Era Vargas em nosso país ...

*Pesquisador e Coordenador do Setor de Imprensa do MUSECOM / Porto alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

Bibliografia
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