Vai terminando a primeira
grande onda de governos populares. Retrocessos começaram, mas haverá
resistência. Que aprender com os erros? Como preparar uma retomada?
Raúl
Zibechi – Outras Palavras - Tradução: Gabriel Filippo Simões
O
fim do ciclo progressista implica na dissolução de hegemonias e no início de um
período de dominação, de maior repressão aos setores populares organizados. Até
agora, temos comentado as causas do fim desse ciclo; agora é preciso
começar a compreender as consequências – tremendas, pouco atraentes,
demolidoras em muitos casos.
A
recente eleição de Mauricio Macri na Argentina é uma guinada à direita que
reacende a chama do conflito social. A resposta dos editores do conservador
jornal La Nación, na forma de um editorial que defende abertamente o
terrorismo de Estado é uma amostra do que está por vir, mas também das
resistências que o projeto da direita tradicional terá de enfrentar.
Não
estamos diante de um retorno aos anos 1990, marcados pelo neoliberalismo e
privatizações, pois os de baixo estão numa situação diferente: mais
organizados, com maior autoestima e mais entendimento do modelo que os oprime. Acima
de tudo, com maior capacidade de confrontar os poderosos. Experiências
coletivas não acontecem em vão – deixam marcas profundas, sabedoria e modos de
fazer que neste novo estágio irão desempenhar um papel decisivo, na necessária
resistência às novas direitas.
O
período que se inicia em toda a América do Sul, quando o presidente Rafael
Correa já anunciou que não pretende se reeleger [presidente do Equador],
será de forte instabilidade econômica, social e política; de crescente
interferência militar do Pentágono; de novas dificuldades para aintegração
regional, que já passa por sérios problemas; de deterioração nas
condições de vida dos setores populares, cujos rendimentos começaram a se
corroer nos últimos dois anos.
Nesta
nova conjuntura, penso que algumas questões são centrais:
A
primeira é que não haverá forças políticas capazes de gerar um mínimo de
consenso em torno dos governos, tal como os governos progressistas conseguiram
obter em sua primeira fase. Não haverá consenso em governos como o de
Macri; mas convém lembrar que a hegemonia de Lula foi quebrada durante o
segundo mandato de Dilma Rousseff. O mesmo ocorreu nos governos de
Tabaré Vázquez, Rafael Correa e NicolasMaduro, embora com causas
diferentes.
Quando
a hegemonia se esvai, a lógica de dominação se impõe, o que nos leva
diretamente à exacerbação dos conflitos de classe, gênero, geração e
étnico-raciais. A tríade dominação-conflitos-repressão vai afetar (já está
afetando) as mulheres e os jovens dos setores populares, as principais vítimas
da guinada sistêmica à direita.
A
segunda questão a ser considerada é que o modelo político-econômico é mais
importante e decisivo do que as pessoas que o conduzem e administram. Nas
esquerdas, ainda temos uma cultura política muito centrada nos caudilhos e
líderes – que sem dúvida são importantes, mas que não são capazes de
ir além dos limites estruturais que o modelo impõe sobre eles. O extrativismo é
o grande responsável pela crise que assola a região, pelo desgaste que os
governos sofrem e, grosso modo, é o fator principal que explica a guinada à
direita das sociedades.
Ao
contrário do modelo industrial de substituição de importações, que gerou
inclusão e promoveu o desenvolvimento social, o atual modelo extrativista gera
polarização social e econômica e conflitos nas comunidades, além de destruir o
meio ambiente. Portanto, é um modelo que produz violência,
criminalização da pobreza e militarização das sociedades e dos territórios de
resistência.
A
incapacidade dos governos progressistas de abandonar o modelo extrativista e a
vontade expressa das neodireitas de aprofundá-lo anuncia tempos dolorosos para
os povos. A recente tragédia em Mariana (Minas Gerais) causada pela ruptura de
duas barragens da mineradora Vale, provocando um gigantesco tsunami de
lama que cobriu campos cultivados e vilarejos inteiros, é uma pequena amostra
do que nos espera caso um limite não seja colocado ao modelo
mineração-soja-especulação.
Em
terceiro lugar, o fim do ciclo progressista supõe o retorno de movimentos
antissistêmicos ao centro do cenário político, do qual eles haviam sido
deslocados pela centralidade da disputa entre governos e oposição conservadora.
Mas os movimentos que estão sendo ativados não são os mesmos, nem possuem os
mesmos modos de organização e prática,dos que encabeçaram as disputas dos
anos 1990.
Na
Argentina, o movimento dos piqueteros não existe mais, embora
tenha deixado profundos vestígios e lições, além de um setor organizado que
trabalha nas villas das grandes cidades, com novos tipos de
iniciativas tais como as casas populares de mulheres e secundaristas. Os
movimentos camponeses, como o dos Sem Terra, transformaram-se devido à
expansão geométrica da soja. Mas novos atores, mais complexos e diversos,
emergem; deles participam, entre outros, os afetados pela mineração
ou agrotóxicos, bem como ampla gama de profissionais de saúde, educação e
mídia.
A
impressão é de que estamos assistindo a novas articulações, acima de tudo nas
grandes cidades, onde os protestos contra a desigualdade e por mais
democracia extravasam as trincheiras de partidos e sindicatos e
também dos movimentos da década neoliberal das privatizações.
Por
fim, o ciclo progressista deve se fechar com uma análise clara dos erros
cometidos pelos movimentos. Seria desmoralizante para os mesmos que no próximo
ciclo de lutas se repetissem os mesmos erros que afetaram sua autonomia nos
últimos anos. É provável que a maior dificuldade para o enfrentamento consista
em saber como acomodar a dupla atividade dos movimentos: as lutas contra o
modelo (a defesa de espaços próprios, mobilização e formação) e a criação do
novo em cada espaço e tema possível (saúde, produção, habitação, terra e
educação).
Enquanto
ações nas ruas nos permitem impedir ataques vindos de cima, a criação do novo é
caminhar na direção da autonomia. Estas são maneiras que aprendemos de
continuar navegando em meio às tempestades.
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