João
Dias – Jornal de Angola
Os
acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961 e do “Processo dos 50” estão
ligados entre si. O ataque de 1961 em Luanda teve por objectivo libertar os
presos do “Processo dos 50”, grupo de nacionalistas, espalhados por Angola, que
se notabilizou na mobilização dos angolanos para a resposta à feroz repressão
colonial.
A
ligação do 4 de Fevereiro de 1961 ao “Processo dos 50”, de 1959, é um facto. Os
heróis do 4 de Fevereiro ergueram-se para libertar os nacionalistas angolanos
do “Processo dos 50” detidos nas cadeias coloniais.
Beto Van-Dúnem, deputado da Assembleia Nacional, faz uma incursão na recente
História do país e fala ao Jornal de Angola da longa e complexa luta
que os angolanos empreenderam para que a luta de libertação nacional
desembocasse na conquista da Independência e fosse possível. Ele que foi
um dos integrantes do “Processo dos 50”, fala do papel central que teve na
impressão e distribuição de panfletos em pleno Bairro Operário, uma estratégia
de propaganda que se espalhou pelo país inteiro e pôs o Portugal de
Salazar a tremer.
Do “Processo dos 50” só seis nacionalistas estão vivos: além de Beto Van-Dúnem,
estão Armando Ferreira, Amadeu Amorim, José Lisboa, Luís Rafael e Manuel
Santos, este último a residir em Portugal.
Jornal de Angola – Nasceu em 1935. Por si passaram inúmeros eventos
históricos, politícos e sociais dignos de registo. Que memórias guarda dos
tempos em que começou o seu activismo pela causa nacional?
Beto Van-Dúnem – Guardo memórias dos tempos em que começavámos a notar as
grandes injustiças que o colono infligia à nossa gente. Tinha 17
anos quando a mim e aos outros foi proposto o aliciamento de jovens para
a nossa luta. A minha inquietação sobre as acções dos colonialistas, com a sua
polícia de repressão, a PIDE, começou quando o irmão do Cardeal Dom Alexendre
do Nascimento nos falava que era necessário que despertássemos para a conquista
da Independência. Toda a doutrina nos era dada bem perto do chafariz do Bairro
Operário, com todos os riscos de sermos apanhados de surpresa pela PIDE.
Quando miúdos, ele incutia-nos as primeiras noções de Liberdade e
Independência, e dizia sempre a uma data de jovens que tinham de lutar pela
Independência. Essa ideia, de que tinhamos de lutar, fez com que eu e o Amadeu
Amorin nos lançássemos, para a mobilizaçao de outros jovens da nossa idade na
altura.
Jornal de Angola – O seu grande protagonismo começou com o envolvimento directo
na produção de panfletos que apelavam para a urgente necessidade de conquista
da Independência. Conta-nos a história?
Beto Van-Dúnem – Tudo começa no dealbar do ano 1955. Já tinha 20 anos. As
pessoas com quem lidávamos eram o “Liceu” Vieira Dias e o Higino Aires,
sobrinho de Ilídio Machado. Foram eles que nos começaram a fazer ver o que ia
ser a realidade e o futuro livres do jugo colonial. Na altura, já se via a
propaganda como factor fundamental para a disseminação dos ideais dos angolanos.
Mário de Andrade e Lúcio Lara estavam fora e Ilídio Machado, que estava no
país, tomou as providências no que tocava à distribuição de panfletos. Foi
adquirida uma máquina para fazer panfletos. Lúcio Lara comprou a máquina no
exterior, que chegou às mãos de Zito Van-Dúnem, na altura tripulante de um
navio.
Jornal de Angola – A estratégia de distribuição clandestina de panfletos
foi fundamental para a tomada de consciência dos angolanos?
Beto Van-Dúnem – Sim, foi, e de que maneira. Despertou muitos angolanos
para a realidade da época e conduziu à tomada de consciência. Mas, deixe-me
contar-lhe: a máquina, enviada a partir de Paris, começou a produzir panfletos
em pleno Bairro Operário. O centro das operações e de produção era o meu
quarto, onde a máquina foi instalada. Ninguém sabia da existência dela. Nem os
meus pais e tios podiam saber. Os panfletos eram escritos por Ilídio Machado e
exigiam a Independência de Angola. Os panfletos eram feitos de madrugada.
Inicialmente, eram colocados por debaixo das portas das casas dos moradores do
Bairro Operário. O impacto dessa estratégia era notado logo pela manhã, quando
as conversas de esquina, de botequim e das famílias giravam em torno da
Independência e da Liberdade. Falavam à vontade. Próximo ou não do colono, a
conversa era sobre a Independência, falada em quimbundo. Estava-se em finais de
1957, e a notícia espalhou-se, dado que Luanda já estava cheia de panfletos.
Benguela e Malanje queriam fazer o mesmo. Na altura, o irmão do Cardeal
Dom Alexandre do Nascimento, em Malanje, viu nos panfletos uma grande
oportunidade de mobilização para a luta pela liberdade dos angolanos.
Jornal de Angola – O que aconteceu em seguida?
Beto Van-Dúnem – Depois, aconteceu que, por via da clandestinidade, as
outras cidades adoptaram também essa estratégia. Não demorou muito e Angola
estava cheia de panfletos. Esta situação fez estremecer Portugal, que mandou
reforçar as medidas de policiamento e a ronda a metro nos musseques. Portugal
exigiu a detenção dos autores. É assim que, em 1959, fomos descobertos e somos
todos presos. A situação levou à intervenção de países socialistas e de outras
organizações mundiais. Nós estávamos presos quando se deu o 4 de
Fevereiro de 1961.
Jornal de Angola – Parte considerável dos presos políticos naquela época eram
jovens com 15, 17 anos e, não raro, com 13 e 14 anos. Esta era uma situação que
deixava de rastos os familiares e amigos na altura?
Beto Van-Dúnem – Com certeza. Estivemos presos na PIDE em Luanda durante
três anos, e só depois é que fomos mandados para o Tarrafal, onde permanecemos
12 anos. Os nossos familiares ficaram extremamente preocupados, porque corria o
boato de que tinham sido presos jovens angolanos que de seguida iriam ser
postos a bordo de um avião que tinha como objectivo lançá-los ao mar. O receio
dos nossos familiares cresceu ainda mais quando os responsaveis da PIDE
exigiram que os familiares enviassem roupa para os seus filhos presos. Naquele
dia, preparámo-nos e meteram-nos num avião sem sabermos para onde estávamos a
ser levados. Alguns polícias estavam a bordo e nem nos podíamos mexer.
Jornal de Angola – O que veio depois da vossa prisão e qual foi o
papel de Ilídio Machado?
Beto Van-Dúnem – O que aconteceu é que todo aquele alvoroço, alimentado
por boatos, terá motivado em 1961, e em grande medida, os homens que estavam
empenhados na luta de libertação, e que lançaram o assalto no dia 4 de
Fevereiro de 1961. Tudo isso motivou, ainda mais, que fossem à Casa da Reclusão
para nos libertarem. A necessidade de libertar os compatriotas foi o mote,
mas foi, em grande medida, motivada pelos boatos que corriam de que íamos
ser deitados ao mar. Tanto Paiva Domingos da Silva como os outros que chefiaram
o processo da luta de libertação de 4 de Fevereiro recebiam também instruções
de Ilídio Machado. Mas nós não sabíamos. Por isso, julgo que ele, Ilídio
Machado, teve um papel fundamental neste processo de consciencialização e
mobilização dos angolanos.
Jornal de Angola – Existem algumas dúvidas quanto ao facto de se saber quem
foram realmente os primeiro presos políticos. Foram os homens que hoje
constituem o “Processo dos 50” os primeiros presos politicos?
Beto Van-Dúnem – Os primeiros presos políticos fomos nós, eu e os do meu
grupo. Depois de nós, outros camaradas que estavam em Luanda e no Lobito, que
na altura estabeleciam contacto com o exterior, também foram presos. Nós somos
os primeiros presos políticos. Naquela altura, foram presas 52 pessoas. Por
isso é que passou a chamar-se “Processo dos 50”. Só os que desenvolveram
actividade no Congo ficaram livres das prisões da PIDE. Os camaradas no Congo
recebiam as informações e disseminavam essas informações no exterior. Depois de
termos sido presos, activou-se aqui a grande luta e muitos indivíduos foram
mobilizados e começaram a lutar. Mas foi no exterior que a mobilização teve um
grande efeito. O falecido Mendes de Carvalho e eu fazíamos os contactos com o
pessoal no exterior e foi por isso que, durante muito tempo, os companheiros lá
fora não nos conheciam pelos traços fisicos. Era apenas pelo nome,
principalmente a mim, Mendes de Carvalho, Higino Aires e Amadeu Amorim.
Jornal de Angola – O que mais o marcou durante os anos de luta pela Liberdade e
Independência?
Beto Van-Dúnem – Quando o Presidente Neto chegou a Luanda, depois do 25 de
Abril em Portugal, o camarada Lúcio Lara avisou-me para que fôssemos recebê-lo.
E foi ali que o conheci, foi ali, no Aeroporto de Luanda, onde foi marcada a
primeira reunião com os homens que estavam envolvidos no “Processo dos 50”. A reunião
aconteceu atrás do Jumbo, onde havia uma casa grande que tinha sido preparada
para reuniões de grande envergadura. Lembro-me de que, quando o camarada Neto
entrou, nós estávamos todos em pé. Ele pediu-nos que nos sentássemos. Quando
nos sentámos, disse: “Vocês foram os homens que agarraram o touro pelos cornos
e nós, lá fora, limitámo-nos a puxá-lo pelo rabo”. Aquela expressão representou
um grande incentivo.
Jornal de Angola – Foi director do Departamento de Organização de Massas (DOM)
do MPLA e ministro do Comércio.
Beto Van-Dúnem – Depois do primeiro contacto com o Presidente Neto,
passado algum tempo, quando formou o Governo, o Presidente Neto chamou o Mendes
de Carvalho e a mim para dirigirmos o Departamento Regional de Organização de
Massas ou DOM Regional. O objectivo era mobilizar e espalhar a doutrina do
MPLA. Daí em diante, reunimo-nos todas as semanas com o Presidente Neto, a quem
dávamos o ponto de situação sobre a mobilização popular.
Jornal de Angola – O DOM Regional cumpriu o seu papel?
Beto Van-Duném – Num belo dia, o Presidente Agostinho Neto chamou-nos.
Quando chegámos lá, disse-nos que passávamos a ir à pesca com ele todos os
sábados. Iam embaixadores de alguns países amigos e outras entidades. Naquele
dia, depois da pesca, quisemos despedir-nos e agradecer ao Presidente pelo
gesto, mas ele pediu-nos que ficássemos e fôssemos com ele. E assim, todos os
sábados, quando íamos à pesca, regressávamos com ele à sua casa e recebia-nos
na sua sala, onde nos contava tudo o que se passava lá fora, aqui dentro e nas
matas. Falava-nos de muitas coisas e de muitos indivíduos. O André Mendes de
Carvalho e eu ficámos a saber de muita coisa, das quais prefiro não abrir a
boca. O que nos contou Neto muito pouca gente sabe.
Jornal de Angola – Não era bom revelar o que sabe e assim contribuir para a
construção de um legado histórico rico para os angolanos?
Beto Van-Dúnem – Lembro-me de ter-nos dito que saía da cidade e visitava
os bairros de Brazzaville para ver os camaradas que estavam a lutar pelo país e
notou um grande descontentamento, pois diziam: ‘Nós é que estamos a lutar e nós
é que estamos a morrer. Os outros todos estão lá na cidade. Comem e bebem, mas
nós é que vamos morrer nas batalhas. Quando a Independência chegar, eles é que
vão gozar os seus beneficios’. Ele contou-nos que depois de ter ouvido isso,
voltou a Brazzaville, onde estavam, nomeadamente, Pepetela, Ndunduma, Petroff e
o ex-ministro da Defesa Pedalé e pediu-lhes que se preparassem para a luta. Foi
quando todos se prepararam e com as suas armas foram para as matas juntar-se
aos demais e lutar pela pátria mãe. Mas mesmo assim, houve indivíduos que,
diante do pedido de Neto, recusaram-se e demarcaram-se.
Jornal de Angola – O que aconteceu ao grupo de pessoas que se demarcou da luta
pela conquista da Independência, quando todos eram poucos para a causa da
Pátria?
Beto Van-Dúnem - Conquistada a Independência, muitos dos que se tinham
demarcado queriam regressar. Todavia, muitos dos que se tinham sacrificado para
a luta opuseram-se. O médico Eduardo dos Santos e outros camaradas opuseram-se
veementemente a que todos aqueles que se tinham demarcado da luta para a
conquista da Independência gozassem dos seus beneficios. A isso, Neto
recomendou serenidade e disse que era necessário que depois de se conseguir
alcançar a Independência todos trabalhassem por Angola. Neto entendia que era
fundamental fazê-los ver que a atitude que tinham abraçado era incorrecta. ‘Nós
não queremos indivíduos que estão connosco e ao mesmo tempo contra nós’, disse
na altura. ‘Vamos harmonizar tudo e todos para fazer um país bom’, referiu.
Jornal de Angola – O que lhe diz a frase: “O MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA”?
Beto Van-Dúnem – Esta frase é lapidar, para aquilo que é a matriz do nosso
partido e dos seus ideais. Esta é uma expressão que diz tudo, aliás, todas as
expressões de Neto são positivas. O Presidente Neto foi um grande Presidente
deste país, teve o apoio de todos os países africanos que tinham conseguido, na
altura, a sua Independência. Quando ele morreu, todos os Presidentes africanos
estiveram no seu funeral e hoje é dele que ainda se fala. Neto tinha preparação
e era um político a sério. Não é em vão que os americanos, ingleses, franceses
têm um grande respeito pelo Presidente Agostinho Neto.
Jornal de Angola – Sente que, actualmente, essa frase encontra terreno fértil
para traduzir aquilo que é de facto a sua matriz inclusiva?
Beto Van-Dúnem – Pode não encontrar as condições que podiam estar a ter.
Esta frase tem de estar fixada na nossa cabeça, para continuarmos a fazer
coisas em benefício deste país e do povo que ainda sofre.
Jornal de Angola - Tem uma veia poética de alguma forma vincada e inquieta,
porém, um pouco desconhecida. No poema “Não” está expressa uma visão em que
esse “não” se converteria em “Sim”. É o que sente e vê hoje?
Beto Van-Dúnem – Tenho pena de que não estejam a ser publicados no Jornal
de Angola. Tenho vários poemas. Mas não vou pôr os meus poemas em qualquer
outro jornal. Falando do poema intitulado “Não”, penso que se converteu hoje
num “Sim”, pois a partir do momento em que o MPLA entrou, estou a ver uma
política diferente. Hoje as condições mudaram.
Jornal de Angola – Volvidos estes anos, que receios é que mais o preocupam?
Beto Van-Dúnem – Acho que está tudo bem. Volvido esse tempo, não receio
nada. Penso que está tudo bem. O que vejo é que existem determinadas coisas que
o Presidente Neto queria que não se está a fazer conforme a doutrina e isso
transforma-nos um bocado, em função do que se perspectivava em beneficio do
nosso país. Penso que está tudo bem, mas os precursores da luta de libertação e
conquista da Independência não têm o prestígio que mereciam. Só para falar
destes, o Amadeu Amorim vive no Bairro Operário com dificuldades, o Luís Rafael
está a trabalhar, mas tem um salário pequeno.
Jornal de Angola – Sente que a história que envolveu a luta de libertação e o
“Processo dos 50” está a ser escrita e veiculada?
Beto Van-Dúnem – Nós, do “Processo dos 50”, só devíamos ter mais apoio.
Perfil
Nasceu em Luanda a 28 de Julho de 1935.
Casado com Maria Natércia Santos, com quem tem quatro filhos, Carlos Alberto
Pereira dos Santos Van-Dúnem foi ministro do Comércio, tendo sido convidado
pelo primeiro Presidente de Angola, António Agostinho Neto, quando formou
Governo.
Antes de assumir o cargo de ministro do Comércio, Beto Van-Dúnem foi director
do Departamento de Organização de Massas (DOM), um organismo que visou lançar
as bases da doutrina e dos ideais do MPLA e espalhá-los na altura. Porém, mais
do que isso, visava mobilizar mais e mais cidadãos para o Movimento.
Mais recentemente, Beto Van-Dúnem, exerceu a função de Director da ABAMAT, uma
empresa do Ministério dos Transportes que passou a responder pelo abastecimento
de material técnico automóvel.
Hoje é deputado da Assembleia Nacional, pela bancada do MPLA. Apesar do pouco
tempo que lhe sobra da actividade parlamentar, continua a ler bastante e a
escrever poemas. A música faz parte do seu selecto grupo lúdico. Guarda dezenas
de discos em vinil dos tempos da música de intervenção, além dos discos de bons
artistas da actualidade. O “rei” da música angolana, Elias dyá Kimuezo, pelo
teor das suas composições e melodias que resistem ao tempo, continua a ter a
preferência de Beto Van-Dúnem, que diz ser demasiadamente selectivo na escolha
de música para ouvir.
Na literatura, diz ler bastante os livros de Pepetela. Guarda muito boa
literatura, tanto de escritores angolanos como de estrangeiros. Nos dias da
reclusão, em 1963, no Tarrafal, Beto Van-Dúnem escreveu o poema “Súplica”, a
que se seguiram “Lamentação”, “Esperança”, “Aquela Negra”, “Cantiga de Mulata”,
Tristeza”. Mais para cá, escreveu “Um poema à mãe angolana”, homenagem às mães
que, apesar de todas as vicissitudes e dificuldades da vida, nunca denegam o
seu amor pelos filhos.
No conjunto dos 22 poemas dedicados à data de 29 de Março, dia em que foi
preso, ele e os seus companheiros, por denúncia de um indivíduo infiltrado no
grupo de actividade clandestina, consta o poema “Despertar”, uma espécie de
apelo à resistência e à persistência obstinada na conquista da Independência,
em que diz:
“Não digas nada, Mesmo que eu pergunte quem és! Não digas nada...mesmo que os
trovões rebentem sobre a nossa cabeça, protestando contra o vazio. Fecha os
olhos e sorri, quando os clarões rasgarem os céus para iluminarem o romper d'aurora”.