Entrevista
com Sedrick de Carvalho. Desde a Independência, proclamada 11 de Novembro de
1975, que o regime que lidera a República de Angola desde então usa o pretexto
de “tentativa de golpe de Estado” sempre que pretende livrar-se física ou
politicamente de um opositor, seja este do interior ou exterior ao partido
MPLA.
Foi
assim em 1977, na chamada “Purga de 27 de Maio”, e sequencialmente surgiram
outros casos, até chegarmos ao célebre processo do chefe do SIE, Fernando
Garcia Miala, que igualmente foi acusado de tentativa de assassinato do
Presidente da República, José Eduardo dos Santos.
Entretanto,
15 anos depois, o crime que habitualmente era colado aos “mais velhos”
calejados na vida política, conheceu 17 vítimas jovens, tendo o mais novo do
grupo “apenas” 19 anitos. De acordo as informações postas a circular, os jovens
foram diversas vezes torturados psicologicamente e muitos deles, sem o saber,
partilhavam o prato de comida com bichos, face à escuridão que dominava as
celas em que uns tinham sido colocados, muito antes de terem beneficiado da
prisão domiciliar.
No
entanto, para melhor esclarecer aos angolanos (por ser até um imperativo
constitucional, que sejam informados) sobre o quotidiano dos revús enquanto
estiveram presos e quais os seus objectivos para com Angola, o Folha 8
entrevistou o jornalista Sedrick de Carvalho, uma peça fundamental dos 17
activistas, à semelhança de Domingos da Cruz e Luaty Beirão, que, sem titubear,
deixou claro que pretendem unicamente “fazer cair o regime” do Presidente Dos
Santos e “aprofundar” a “democracia em Angola”.
Folha
8 – Após um ano longe de colegas, amigos e familiares, qual é agora a sensação?
Sedrick
de Carvalho – É de satisfação. Sinto-me melhor por estar junto da família.
Só o facto de não ter que dormir distante da família, sem saber como está,
ainda mais sem ter agentes prisionais a fecharem as portas, ou depender de dias
para ter contacto com a família, já é muito bom. Em termos físicos, inclusive
já começo a sentir melhorias. Quando saí estava mesmo bastante magro, se calhar
era consequência de alguma ansiedade, mas agora já me sinto melhor. Mas é bom
realçar que em termos de saúde não estou tão bem, estou a estabelecer contactos
para ver se faço algumas consultas, pois não me posso atirar às mãos de
qualquer médico, porque infelizmente não temos muitos médicos confiáveis, por
isso é preciso fazer alguns contactos para que se localize algum médico de
confiança que me faça exames para determinar o que efectivamente herdei das
cadeias em que passei.
F8
– Quais são as principais queixas, psicológicas ou físicas?
SC –
São ambas. Nem sequer posso fazer uma destrinça entre as duas, porque
permanentemente o trauma psicológico evidencia-se, mas também as outras queixas
são bastante graves, por exemplo a questão dos meus olhos que se agrava a cada
dia que passa. Estou neste momento a cumprir uma medicação que me foi
recomendada pelo doutor Moisés, um médico de confiança, pai de Nelson Dibango,
um dos companheiros de prisão, mas ainda assim, mesmo a cumprir a medicação,
continuo com muitas dores nos olhos. Para além desse dilema oftalmológico, há
outros problemas que nem sequer consigo explicar, se calhar só um médico pode
mesmo determinar, como algumas dores ao nível da região lombar, ao nível do
peito. Prontos… Há uma serie de problemas que não consigo determinar.
“Sofremos
permanentemente ameaças físicas e psicológicas. Chegamos a ter agentes armados
dentro da nossa cela”
F8
– Por vocês terem sido presos políticos, fala-se que foram brutalmente castigados
no interior da prisão. Como era o vosso dia-a-dia?
SC –
É muito complicado ter que descrever todas as peripécias pelo qual passamos
para o jornal, ainda mais por terem espaço limitado. Mas torturas psicológicas
e físicas sofremos em vários momentos, e é bom realçar que a tortura
psicológica foi permanente, até no dia em que saímos da prisão, ainda passamos
por estas situações. Certamente que o F8 acompanhou as poucas informações que
saíram de ameaça à nossa integridade mental, mas aquela pouca informação que
saiu e reportada por alguns órgãos de comunicação não reflecte tudo o que
aconteceu. Por exemplo, só para citar, o facto de que, às 22 quase 23 horas,
sermos ameaçados por um contingente de agentes fortemente armados, cerca de 30
agentes, empunhando armas automáticas e granadas, com o pretexto de que iam
revistar a cela. Na cela em que só estava eu e mais dois companheiros presos,
Domingos da Cruz e Osvaldo Caholo, porquê 30 agentes armados para três pessoas?
A explicação é uma e simples: tortura psicológica e que podia resultar numa
tortura física caso reagíssemos, porque eles não iriam hesitar em torturar-nos,
quem sabe até matar, porque estavam fortemente armados, e as armas não estavam
aí só para enfeitar, embora fizesse parte da tortura psicológica, mas
provavelmente seriam usadas caso um de nós reagisse.
F8
– Todo este imbróglio teve início na livraria Kiazele. O que estavam lá a fazer
de concreto?
SC –
O que fazíamos na Livraria onde fomos presos é exactamente o que demonstramos
ao longo do processo. Estávamos com livros – e nem se pode dissociar a prisão
dos livros – e debatíamos em torno dos livros, um da autoria de Gene Sharp e
outro da autoria de Domingos da Cruz, que nem sequer chegou a ser publicado.
Estes livros trazem à luz como se pode enfrentar regimes ditatoriais, como o
nosso, mas de forma exclusivamente pacífica. Por exemplo, o livro diz que ao
invés dos cidadãos pegarem em armas, melhor é recusarem colaborar com as
instituições corruptas como as nossas. E as formas de não cooperar são muitas,
por exemplo: porquê tenho de prestar depoimento nos tribunais quando sei que
estes tribunais são manipulados, são instrumentalizados pelo Presidente da
República? Como é que vou mostrar que estou descontente com este sistema
judicial, como é que vou demonstrar que este sistema judicial não vale coisa
alguma, como ficou provado ao longo do nosso processo? Podemos e conseguimos
mostrar isto de forma muito simples, indo descalço naquele tribunal porque
afinal não vale nada.
“O
Tribunal aqui só serve para humilhar os pobres. Por isso é que nunca são
levados às barras dos tribunais os que efectivamente devem ser julgados, como é
o caso da própria família presidencial e todo seu staff.”
F8
– Não é uma visão muito pessimista da Justiça?
SC –
Não. O Tribunal aqui só serve para humilhar os pobres. Por isso é que nunca são
levados às barras dos tribunais os que efectivamente devem ser julgados, como é
o caso da própria família presidencial e todo seu staff. Então prontos… fomos
descalços para reduzir aquele tribunal, e quando lá estivemos, não falamos. E
estas coisas estão lá nos livros, não foram totalmente inventadas por nós,
claro que algumas coisas fomos inventando ao longo do processo, mas são coisas
que o livro traz, não são as que tentaram colar no principio, “golpe de Estado,
pegar em armas, financiamentos de não sei de onde”, todo este dinheiro e armas
que não apareceram em tribunal. O livro fala de lutas pacíficas para o derrube
da Ditadura, já que Angola é uma Ditadura, então só estávamos a ler os livros
para sabermos como enfrentar essa Ditadura de forma realística, mas também
pacificamente.
F8
– Está a dizer que era um acto meramente académico?
SC –
Não é tanto académico, mas há aí a vertente académica por estarmos a estudar um
livro, provado cientificamente que os seus métodos funcionam, mas foi acima de
tudo um exercício cívico. E o que prova ter sido um exercício cívico foi a
nossa conduta ao longo de um ano de cadeia.
F8
– Mas em termos concretos, vocês estavam a estudar o livro de Gene Sharp e de
Domingos da Cruz, que contêm métodos peculiares de como derrubar um Ditador,
com objectivo de fazer cair o regime do Presidente dos Santos?
SC –
Claro! Isso não é nenhuma utopia. Eu não quero continuar com este regime, não
quero. A sociedade, ainda que manipulada e humilhada permanentemente, também
quer mudança de regime, os partidos da Oposição também querem mudança de
regime. Então, se eu não quero este regime, tenho de ver como mudar este
regime. Mesmo a nível da imprensa, principalmente o Folha 8 que faz um
jornalismo de causas, também não quer este regime, por isso é que volta e meia
estampa em sua capa que este regime já não vale porque já deu tudo o que tinha
para dar.
“Quando
a própria Constituição prevê o direito à manifestação está exactamente a dizer
que tens o direito de exigir a mudança de regime, mas de forma pacífica, nos
marcos da Constituição”
F8
– Acha que é um sentimento alargado?
SC –
É com certeza. Seja como for, tudo isso deixa claro que todos nós queremos a
mudança de regime, e como eu e muitos outros temos de ser consequentes.
Estávamos a ver como sermos mais activos neste processo de mudança de regime
pela via pacífica. É sempre bom realçar que é pela via pacífica, porque é um
mecanismo próprio que a própria Constituição inclusive prevê. Quando a própria
Constituição prevê o direito à manifestação está exactamente a dizer que tens o
direito de exigir a mudança de regime, mas de forma pacífica, nos marcos da
Constituição.
F8
– Falemos da nomeação de Isabel dos Santos para Presidente do Conselho de
Administração da Sonangol. Nepotismo? Decisão legal e acertada? Qual é a sua
opinião?
SC –
Foi claramente um acto de nepotismo, nepotismo já exacerbado. O Presidente José
Eduardo dos Santos já não quer esconder nada. Mas é curioso que li um artigo
num dos jornais domésticos que dizia que a nomeação de Isabel foi o cúmulo do
nepotismo e que José Eduardo atingiu tudo que era possível. Não, José Eduardo
dos Santos ainda não atingiu o pico. O cúmulo do nepotismo será mesmo meter um
dos filhos – agora parece mais provável que seja a Isabel, antes era o Zenú –
como Presidente ou vice-presidente do país, isso será o pico. Mas isso é
possível, estou só a realçar que ao colocar a Isabel como PCA da Sonangol ainda
não é o máximo do que ele pode fazer, ele pode colocar um dos filhos como
Presidente do país. Indo para a nomeação em si: o Rui Verde publicou um texto
no site Maka Angola e que o Folha 8 também divulgou, onde deixa bem claro que
estamos diante duma inconstitucionalidade e uma ilegalidade, friso uma
inconstitucionalidade por violar a Constituição e uma ilegalidade por violar a
Lei da Probidade.
F8
– A Constituição…
SC –
A Constituição, estou aqui a citar o Rui Verde porque não estou com paciência
para pegar nela, deixa claro que a competência de nomeação do PCA da Sonangol,
embora não esteja nestes termos, é da competência relativa da Assembleia Nacional.
O Presidente pode ter competência de fazer mudanças na Sonangol, mas em
questões de base, e estas alterações que o Presidente da República pode fazer
na Sonangol derivam de uma prévia autorização da Assembleia Nacional, o que não
aconteceu, mas também não era possível acontecer porque não se trata de uma
alteração de base, trata-se de uma alteração do topo, e por isso não pode ser
realizada pelo Presidente.
“De
acordo com a Lei de Probidade, o Presidente não pode nomear pessoas que na qual
tenha interesses, e Isabel dos Santos é uma dessas pessoas”
F8
– Ou seja?
SC –
O Presidente dos Santos não devia nomear a Isabel dos Santos por ser sua filha.
Pois, de acordo com a Lei de Probidade, o Presidente não pode nomear pessoas
que na qual tenha interesses, e Isabel dos Santos é uma dessas pessoas. O
Presidente da República sabe disso, mas está consciente de que este povo não
reagirá. Aos que reagem, José Eduardo tem feito questão de os prender e até
matar, daí que temos hoje um número já bastante alto de descontentes e
consequentes que foram mortos e tantos outros que foram presos ou estão presos.
F8
– Mas o povo não reage, ou não pode reagir?
SC –
Por exemplo, saí agora da cadeia e estou a ver que a nomeação da Isabel para
PCA da Sonangol não alterou em nada o espírito da sociedade, a sociedade não se
tornou mais activa, não foi para as ruas e os partidos da oposição também não
fizeram nada que seja notável a olho nu, talvez o tenham feito nos bastidores.
Mas é necessário que se façam coisas para a sociedade ver e para a sociedade se
sentir confiante de que quando acontecem coisas do género, tem de reagir e
obter resultados, o que não está a acontecer, mas que ainda vai a tempo de
acontecer. É possível, sim, exigir a saída da Isabel dos Santos Um exemplo simples,
ainda no quadro do que a oposição deveria ter feito, porque é que os partidos
da oposição, desde o primeiro dia que ouviram sobre a nomeação de Isabel dos
Santos, não se negaram em regressar à Assembleia Nacional, visto que a
competência para nomeação de PCA da Sonangol é reservada da Assembleia
Nacional, nos termos do artigo 165º? Os deputados não deveriam lá regressar,
porque, claramente, não estão a fazer nada.
F8
– É uma oposição demasiado passiva?
SC –
Esta oposição já deu mostras de que não vai por aí, não aceita ficar fora da
Assembleia. É como a questão das eleições, reclama fraude, mas toma posse. Ora,
isso não faz sentido nenhum. O apelo aos partidos da oposição e à sociedade é
que ainda vamos a tempo de fazermos alguma coisa neste quesito da nomeação da
Isabel dos Santos.
F8
– Em relação às represálias a quem for consequente, não se pode esquecer que
foi com o regime de Dos Santos que o país anulou a pena de morte e agora
anuncia-se uma amnistia para os presos condenados a uma pena não superior aos
12 anos?
SC –
Começo pela pena de morte. Dos Santos anulou a pena de morte mas eu defendo que
ele não respeita a vida, claro, parece contraditório, mas não é! José Eduardo
dos Santos anulou a pena de morte não por uma questão humanitária, não. Ele anulou
a pena de morte no país, visto ter acontecido na sua infinita governação, por
uma questão de imperativo civilizacional e inclusive como resultado de uma
pressão que as potências mundiais, com maior incidência para os Estados Unidos
da América, que assim exigia, e o Presidente dos Santos, como muitos autores o
rotulam de não ser uma pessoa bem definida, anulou a pena de morte. Mas é bom
realçar que o facto de anular a pena de morte não pressupõe dizer que anulou as
sentenças de mortes no país, são coisas completamente diferentes. No ponto de
vista legal, não temos penas de morte, mas de ponto de vista prático, ainda
temos as penas de morte. Temos aquilo que chamamos de pena de morte
extra-judicial, onde o individuo é morto por defender uma ideia, sentenciado à
partir do Palácio ou por um ministro qualquer.
F8
– Então há mortes e… mortes?
SC -
Após anularem as penas de morte as pessoas continuaram a ser executadas. Só
neste período de que temos memória, ao nível da liberdade de imprensa e de
expressão, temos vários exemplos, como o Ricardo de Melo, o Chakussanga, o
director do F8 que permanentemente é perseguido, aliás, o jornal está reduzido
a A4 fruto destas perseguições, e se não está morto ainda, se calhar, é porque
tem tido algumas precauções, embora este regime quando decidir matá-lo vai
mesmo matá-lo. Então, vê-se logo que ainda temos a pena de morte a vigorar no
país, pese embora não juridicamente, mas politicamente.
“A
amnistia chega num momento em que as cadeias estão sem alimentos, e sei bem
disso porque saí agora das cadeias e percebo que esta amnistia não é por
valores nobres, de que o homem deve ser respeitado e que é necessário que nos
perdoemos, que coabitemos e que demos algum voto de confiança aos indivíduos
que a dado momento erraram, não!”
F8
– Voltemos à amnistia…
SC –
Quanto à amnistia recentemente anunciada, vamos esbarrar novamente no espectro
político. A amnistia chega num momento em que as cadeias estão sem alimentos, e
sei bem disso porque saí agora das cadeias e percebo que esta amnistia não é
por valores nobres, de que o homem deve ser respeitado e que é necessário que
nos perdoemos, que coabitemos e que demos algum voto de confiança aos
indivíduos que a dado momento erraram, não! Esta amnistia está a servir para
exactamente fazer campanha política e acima de tudo atenuar o que está para
acontecer nas cadeias. É que as cadeias estão sem comida, nestes
estabelecimentos há poucos agentes prisionais, porque primeiro é que os
salários são tão baixos, e o pior, é que já não há comida para toda comunidade
prisional, desde os reclusos aos agentes prisionais. No entanto, antevendo uma
possível calamidade a acontecer nas cadeias, e como sabem que actualmente a
comunidade internacional está de olhos postos em Angola, e para evitar que se
registem mortes por fome como em anos anteriores, então decidiram tirar algumas
pessoas das cadeias.
F8
– A questão da alimentação nas cadeias é dramática?
SC –
É. Enquanto estivemos nas cadeias estabelecemos relações com alguns agentes dos
serviços prisionais que nos informaram que os Serviços Prisionais,
declaradamente, só têm comida para mais dois meses e como não se tem um
horizonte temporal para aquisição de mais alimentos, então a alternativa é
esta, porque se tirar pelo menos um quarto ou um terço dos reclusos já
conseguirão desenrascar-se, se calhar até mais uns quatro meses.
F8
– Mas haverá outras razões para a amnistia, ou não?
SC –
Sim, há outros cenários mais profundos no quadro político. É que com este
projecto se pretende amnistiar criminosos que estão dentro do próprio regime, e
até é curioso que este projecto parece querer amnistiar também indivíduos cujos
processos ainda tramitam na Procuradoria-Geral da República- Quer dizer, o
processo ainda não está no tribunal, mas já prevê amnistiar essas pessoas, e
aqui por arrasto vão pessoas como Sindika Ndokolo, Eusébio de Brito e muitos
outros, processos abertos por Rafael Marques, processos movidos pela Associação
Mãos Livres, inclusive processos também contra o Presidente da República.
Portanto, essa amnistia é somente mais uma cartada do Presidente José Eduardo
dos Santos para limpar a sua imagem e do seu séquito.
F8
– No contexto das mudanças que se pretende para o país, será ingenuidade dar um
voto de confiança ao Presidente da República para que ele mesmo protagonize as
reformas políticas, económicas e sociais necessárias para Angola?
SC –
Para mim o Presidente Dos Santos já não faz nada de positivo para Angola. Não
acredito que seja possível que alguém com 37 anos de governação, que não
conseguiu alcançar um estado de bem-estar social, não conseguiu estabelecer uma
economia salutar para a sociedade, e, inclusive, não conseguiu criar um
ambiente saudável no campo político, não acredito ser ele capaz de fazer mais,
em pouco tempo. Mesmo que lhe dêem mais 37 anos, já não é possível fazer
mudanças. Agora, há um aspecto positivo que surge em função dele mesmo, que é a
saída dele do poder. Aí sim, a saída dele do poder é positiva e representa a
abertura do país para as mudanças necessárias, mas é sempre bom realçar que a
saída do Presidente da República tem de acontecer por forma a representar
realmente uma rotura no espectro político do país, rotura no sentido de que
depois da saída dele é necessário que o país se abra para as eleições
democráticas e que se faça uma reforma ao nível das instituições.
“Se
a saída de Eduardo dos Santos for pela via que ele está a pretender fazer, que
é colocar um dos filhos ou um dos seus sequazes, aí será a continuidade do que
ele fez, e poderá ainda ser pior”
F8
– E basta sair?
SC –
Não. Se a saída dele for pela via que ele está a pretender fazer, que é colocar
um dos filhos ou um dos seus sequazes, aí será a continuidade do que ele fez, e
poderá ainda ser pior, porque, se tivermos uma sucessão pela via consanguínea,
em que ele coloca um dos filhos ou um dos seus sequazes, acredito que este novo
Presidente da República saído desta via, primeiro procurará impor-se e para se
impor poderá fazer recurso ao que Achile Mbembé chama de necropolitik – a
necro-política é a governação por meio da morte. O que vai acontecer é termos
um Presidente que saído da via consanguínea terá de necessariamente matar para
impor a sua vontade e, aí, estou a ver o pior a acontecer no país, em relação
ao que o actual Presidente já fez e está a fazer.
F8
– E o que pode ser feito para se evitar estes cenários?
SC –
O que tem de acontecer é inevitavelmente uma rotura no país. Rotura em sentido
de quê? Quando este senhor sair tem de se implementar realmente a democracia
que deve primeiramente consubstanciar-se em Eleições justas e transparentes, de
seguida realizarmos uma reforma exaustiva das instituições, porque as nossas
instituições estão completamente manietadas. Mesmo que tenhamos eleições
livres, justas em que um candidato chega à Presidência por vontade popular, se
não houver reforma nas instituições, essas mesmas instituições vão continuar a
perigar a vida dos cidadãos, e tudo vai parecer que o Presidente da República
não mudou, porque dará a impressão que tudo continua sob o poder do Presidente
da República. Por isso é importante que haja Eleições transparentes, mas depois
é necessário que as instituições sejam reformadas para que o Presidente saído
do sufrágio democrático encontre instituições que suportem a sua governação em
prol dos cidadãos.
F8
– Estarão os partidos da Oposição atentos às questões aqui levantadas?
SC –
Os partidos da oposição deviam fazer realmente muito mais. Deixem-me referir o
combate político, conforme eles gostam muito de dizer, da tal luta não
violenta, que é o que temos estado a debater. Então a senhora Isabel foi
nomeada PCA da Sonangol e nada fazem? O que podem fazer? O exemplo de Mohamed
Mossadegh, do Irão. Porquê os Partidos da Oposição não fazem como Mossadegh fez
no Irão? Vão às ruas, não vão à Assembleia Nacional enquanto o Presidente da
República não retirar a Isabel daquele cargo. No Irão, por exemplo, o Xá
Mohamed Rezā Shāh Pahlavi – xá equivale a rei – havia colocado um
primeiro-ministro de forma ilegal, isto nos anos 50 do século passado. Ora, não
era de sua competência nomear primeiros-ministros, essa era da competência do
Parlamento, e o Xá tinha apenas a competência de promulgar. Mas Mohamed Rezā
Shāh Pahlavi violou a constituição do próprio país, e o que aconteceu foi que a
oposição liderada por Mossadegh decidiu realizar uma vigília no interior da
casa do Xá, e deixou claro que não sairia da residência enquanto o Xá não
retirasse do cargo o primeiro-ministro que nomeara, e o Xá que era claramente
um ditador não conseguiu matá-los, rendeu-se. Foi um exemplo.
“Então
porque é que a nossa oposição não se senta na porta da Assembleia e diz que não
sairá dali até que o Presidente recue desta decisão, visto que não é da
competência do Presidente da República, com a agravante de violar a lei que o
impede de nomear familiares directos?”
F8
– Então?
SC –
Então porque é que a nossa oposição não se senta na porta da Assembleia e diz
que não sairá dali até que o Presidente recue desta decisão, visto que não é da
competência do Presidente da República, com a agravante de violar a lei que o
impede de nomear familiares directos? Façam alguma coisa de forma mais
expressiva. Recordo que em 2012 a oposição fez um trabalho fixe, que era no
sentido de não «vamos às Eleições com a Suzana Inglês como Presidente da
Comissão Nacional Eleitoral», e a senhora foi retirada. Embora houvessem outras
nuances nessa questão, mas prontos… daquela vez a Suzana saiu fruto da pressão
da oposição, então, desta vez, algo muito mais grave está a acontecer no país,
porque esta empresa é responsável pela sustentação do país, infelizmente, ainda
somos extremamente dependentes do petróleo, e quem controla o petróleo do país
é a Sonangol, e até já lhe apelidaram de Ovos dourados, estão mesmo a deixar
que a senhora dos ovos dourados agora não fique só com a galinha, mas com o
aviário todo, e a oposição não está a fazer nada de forma visível para que se
tire esta senhora do aviário, não está!
F8
– É uma oposição que não faz oposição?
SC –
A oposição deve fazer mais, pode ficar nas ruas, pode em bloco exigir a demissão
do Presidente da República face às inconstitucionalidades de muitas de suas
acções, e isso dá à oposição ou à sociedade o direito de instaurar um
processo-crime contra o Presidente, embora saibamos que tudo que o cidadão
comum faz ou o que a Oposição faz aqui no espectro jurídico em nada resulta.
Mas é necessário que se abra processo-criminal contra o Presidente, abra-se uma
frente muito mais visível contra o acto de nomeação de Isabel dos Santos e
vejamos se alguma coisa aconteça.
F8
– Urge então transmitir fé e confiança ao Povo?
SC –
Sabemos também que quando José Eduardo quer uma coisa quase que é irredutível,
mas é sempre bom fazer coisas visíveis para que se transmita confiança ao povo.
O povo também necessita de confiança. Se o povo está a ver que nem os partidos
da oposição fazem uma vigília, será ele a fazer o quê? Nada! Mas o povo tem de
saber que tem mais poderes do que os partidos, pois a soberania pertence ao
povo e assim diz inclusive a Constituição, então é o povo que tem poder sobre os
partidos, mas é necessário que numa sociedade tenha líderes. Não é líder no
plano da chefia, é ter pessoas que sejam exemplos, pessoas como Rafael Marques,
William Tonet e tantos mais que, por si só, dão uma certa confiança ao povo.