Tudo
que nós um dia deveríamos temer sobre o socialismo — desde repressão estatal e
vigilância em massa até padrões de vida em queda — aconteceu diante de nossos
olhos
Jerome
Roos, Roarmag - Tradução Gabriel Simões - Ilustração
de Mirko Rastić
Nós
vivemos em um mundo de ponta-cabeça. Como recentemente colocou um meme
amplamente compartilhado, “tudo que nós temíamos acerca do comunismo — que
perderíamos nossas casas e economias e seríamos forçados a trabalhar
eternamente por salários miseráveis, sem ter voz no sistema — aconteceu sob o
capitalismo.” Longe de levar a uma maior liberdade política e econômica, como
seus acólitos e a intelligentsia sempre alegaram que seria, o triunfo
definitivo do projeto neoliberal se deu de mãos dadas com uma expansão dramática
da vigilância e controle estatal. Há mais pessoas no sistema penitenciário dos
Estados Unidos do que havia nos Gulags, no auge do terror stalinista. Os
servidores da NSA agora podem capturar 1 bilhão de vezes mais dados do que o
Stasi jamais pôde. Quando o muro de Berlim veio abaixo em 1989, havia 15 muros
dividindo fronteiras ao redor do mundo. Hoje são 70. Em muitos aspectos, o
futuro distópico dos romances e do cinema já acontece.
Em
sua aposta faustiana de reestruturar sociedades inteiras, alinhada às
prerrogativas do lucro privado e crescimento econômico infinito, o
neoliberalismo sempre colocou a a mão de ferro do estado firmemente ao lado da
mão invisível do mercado. No despertar da crise financeira global, contudo,
este conluio entre os interesses privados e o poder público se radicalizou.
Giorgio Agamben escreve que estamos testemunhando “a paradoxal
convergência, hoje, entre um paradigma absolutamente liberal na economia e um
controle estatal e policial sem precedentes, igualmente absoluto.” Ao traçar as
origens deste paradigma no surgimento da polícia e a obsessão burguesa em
relação à segurança na Paris pré-revolucionária, Agamben observa que “o passo
radical foi dado apenas nos nossos dias e ainda está em processo de realização
plena.”
Os
ataques terroristas de 11/9 e as consequências da Grande Recessão desempenharam
um papel importante na catalisação desses desdobramentos, acelerando a
“desdemocratização” do Estado em curso e forjando a natureza fundamentalmente
coerciva do neoliberalismo em crescente alívio. O resultado, para Agamben, foi
o surgimento de uma nova formação política que opera de acordo com sua própria
lógica:
O
Estado sob o qual vivemos hoje não é mais um Estado disciplinar. Gilles Deleuze
propôs chamá-lo de “État de contrôle”, ou Estado de controle, porque o que o
Estado deseja não é ordenar e impor disciplina mas sim gerenciar e controlar. A
definição de Deleuze está correta, pois gerenciamento e controle não
necessariamente coincidem com ordem e disciplina. Ninguém deixou isso tão claro
quanto o policial italiano que, após as revoltas de Gênova, em julho de 2001,
declarou que o governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas que
gerenciasse a desordem.
O
gerenciamento da desordem — este se torna o principal paradigma do governo sob
o neoliberalismo. Em vez de confrontar diretamente as causas subjacentes à
instabilidade política, à catástrofe ecológica e aos problemas sociais
endêmicos, o Estado de controle considera “mais seguro e útil tentar
administrar seus efeitos.” Assim, em vez de combater as obscenas desigualdades
de riqueza e poder no coração do capitalismo financeiro, o Estado de controle
cada vez mais recorre à polícia contra o precariado. Em vez de reverter a
exclusão social e a marginalização econômica de minorias historicamente
oprimidas, o Estado de controle há muito resolveu hostilizar, assassinar e
encarcerar essas pessoas. Em vez de acabar com a pobreza e a guerra, o Estado
de controle agora promete agora construir novos muros e cercas para manter
afastados os os indesejados migrantes e refugiados. Resumindo, em vez de tentar
enfrentar os conflitos e crises multifacetados que a humanidade enfrenta pelas
suas causas mais profundas, o Estado de controle se contenta em apenas
gerenciá-los.
Se
há uma imagem que veio definir este paradigma incipiente de controle, é a
falange da polícia de repressão a manifestações — armada com fuzis e apoiada
por veículos blindados — preparando-se para o confronto com populações locais
quase sempre desarmadas em locais como Rio de Janeiro, Diyarbakir e Standing
Rock. Desde a aparência dos policiais até as armas e as táticas empregadas em
solo, essas imagens mostram claramente como os espaços internos de segregação
do mundo começaram a se assemelhar cada vez mais com uma zona de guerra
ocupada. É claro que a semelhança não é mera coincidência: a ação policial não
apenas recebe material excedente do complexo militar-industrial, incluindo
armas e veículos que teriam sido empregados em verdadeiras zonas de guerra,
como também começou a aplicar métodos militares de contra-insurgência no
policiamento de protestos e do espaço urbano, de maneira geral. Na verdade,
dois dos quatro esquadrões empregados em Ferguson, em 2014, receberam o seu
treinamento em controle de multidões da polícia israelense, a qual aprimorou
suas habilidades nos territórios ocupados da Palestina. Sob o neoliberalismo,
em resumo, os métodos de ocupações militares no exterior e de uso doméstico
pelas polícias locais estão cada vez mais misturados.
O
mesmo tipo de fusão ocorre no limiar entre os interesses privados e o poder
público, ou entre corporações e o poder estatal. Assim como as exigências de
Wall Street se condensam nas prioridades políticas do Fed e do Tesouro
Americano, e assim como os interesses dos fabricantes de armas continuam a
alimentar as decisões políticas tomadas dentro da Casa Branca e do Pentágono, a
capacidade de coleta de dados e controle algorítmico do Vale do Silício
rapidamente se integra ao aparato de inteligência e segurança dos EUA. Enquanto
isso, os exércitos ocidentais cada vez mais se apoiam em serviços militares
privados para prestar apoio e até mesmo exercer funções ativas em combate, como
as equipes de segurança privada estão assumindo o papel da polícia, com os
primeiros agora superando os últimos numa proporção de 2 para 1 em escala
global. Em outras palavras, como o Estado neoliberal expande dramaticamente o
seu controle sobre populações cada vez mais rebeldes, dentro e fora de seu
país, empresas bem relacionadas estão se inserindo com sucesso na atividade de
“gerenciar a desordem” em troca de lucro privado.
Tudo
isso culminou no desenvolvimento de novas tecnologias poderosas — desde os
smartphones em nossos bolsos até os drones pairando sobre nós — que
possibilitam uma intrusão sem precedentes da lógica de poder público-privado em
todos os cantos do mundo e em todos os aspectos de nossas vidas. Nunca antes
uma miríade de empresas privadas e agências estatais tinha tido tal acesso tão
amplo às comunicações e ao paradeiro de tantos cidadãos insuspeitos. E nunca
antes um presidente dos EUA teve tanto controle sobre uma máquina de matar tão
sofisticada e versátil para as suas ações de assassinatos extrajudiciais.
Agora, com uma oligarquia autoritária e racista na Casa Branca, além de
demagogos de direita igualmente perigosos aguardando a sua chance na Europa e
boa parte do resto do mundo, a questão que inevitavelmente surge é como iremos
nos defender deste Estado de controle que tudo vê e devora, com o seu ímpeto
intrínseco de contínua autoexpansão e seu completo desprezo pelos direitos
humanos mais básicos e pelas liberdades políticas.
A quarta
edição da ROAR Magazine considera esta questão à luz dos
desdobramentos profundamente problemáticos dos últimos anos. Ela examina as
várias novas tecnologias de controle estatal e as formas inovadores de
resistência que surgem contra elas. Traçar os contornos do neoliberalismo
autoritário conforme ele mostra a sua cara feia ao redor do mundo oferece tanto
uma avaliação distópica de nosso atual momento político quanto uma visão
radical para libertação coletiva e transformação social para além do Estado de
controle. Se tudo o que nós um dia tememos sobre o comunismo aconteceu sob o
capitalismo, talvez seja o momento certo de começarmos a pensar em alternativas
democráticas anticapitalistas.
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