Onde
se fala da vinda do pensador Michael Löwy a Lisboa e se conta a
história de António Tereso, um homem que aceitou as piores humilhações
para salvar os seus.
Rui
Ramos de Almeida – jornal i, opinião
Conheci-o
a servir, modesto e com um sorriso na boca, refeições na cantina da António
Serpa, a primeira sede do PCP depois do 25 de Abril. Ia lá depois da escola,
enquanto esperava que a minha mãe acabasse mais uma reunião. Chateava as
pessoas que podia nas horas intermináveis que lá passava. A revolução
sucedia--se nas ruas ao ritmo inebriante das paixões, mas parece que o seu
custo era pago em reuniões permanentes. Anos mais tarde, já militante,
lembro-me de cair literalmente na mesa batendo com a cabeça no tampo, numa
reunião que já passava das quatro da manhã. Muitos anos mais tarde, li uma
passagem do “Assassinato do Comité Central” de Manuel Vázquez Montalbán, em que
o detetive Pepe Carvalho explicava que, “antigamente, os comunistas tinham
nomes heroicos como homem de ferro ou outros, agora só precisavam de um cu de
ferro para aturar tantas reuniões”. A passagem fazia--me rir e sublinhava a
ideia de que havia muito coisa chata e inútil e que as coisas custavam
demasiadas horas. Quando desse pensamento derivava para a necessidade de
sublinhar um princípio do prazer no que se fazia, dada a brevidade das nossas
vidas, muitas vezes regressava àquele homem que, para além do seu trabalho,
fazia e servia refeições aos seus camaradas. José Magro, a quem eu chateava
várias horas quando era criança, tinha estado preso com ele e contou-me a sua
história. Aquele homem tinha-se feito passar por “rachado” [alguém que trai os
seus para colaborar com a PIDE e os guardas prisionais], passou a ser
desprezado e a receber o ódio dos próximos, para ganhar a confiança da PIDE e
ajudar a preparar a fuga dos seus camaradas. Durante meses, apenas José Magro
sabia da missão de António Tereso. Sim, é o nome da pessoa que morreu há pouco
tempo sem pompa e circunstância, como morrem os homens e as mulheres. Anos mais
tarde, o dirigente do PCP Domingos Abrantes confirmou-me a história. Tereso
fora convencido a “rachar” para descobrir os pontos fracos da cadeia. “Quando o
Zé Magro foi colocado numa outra sala, teve uma ideia genial: convencer o
Tereso a ‘rachar’. O Tereso nem queria acreditar. Um rachado era um tipo
desprezível, que colaborava com os carcereiros. Ninguém falava ao tipo, nem à
própria família. Mas o Zé Magro convenceu-o da justeza da tarefa, uma tarefa
terrível, porque se aquilo desse para o torto e acontecesse alguma coisa ao
Magro, ninguém saberia que ele estava combinado com o partido. Arranjou um
conflito interno, bateu com a porta: ‘Estou farto destes gajos, comunismo já
basta’. Depois de desconfiarem, lá o aceitaram, e o Tereso passou para os
rachados”, contou-me Abrantes. Ganhou a confiança da direção da prisão de
Caxias e, como era bom mecânico, puseram-no a arranjar o carro blindado de
Salazar, que estava a reparar na prisão. A 4 de dezembro de 1961, oito militantes
comunistas fugiram no carro blindado de Salazar. Ao volante estava António
Tereso. Na maior parte das vezes, a fidelidade à ideia não tem um final feliz.
Mas sem essa capacidade de ser fiel e constante não é possível acontecer nada.
Os nossos atos podem, em determinadas circunstâncias, rasgar algo que parecia
uma opressão imutável, mas quem o faz paga um preço sem saber do resultado.
Apenas tem essa capacidade de não aceitar o intolerável, custe o que custar.
Foi assim que Rosa Parks, que comemoraria o seu aniversário esta semana, fez.
Parecia um dia como outro qualquer, 1 de dezembro de 1955. Uma costureira de 42
anos sentou-se no autocarro nos lugares disponíveis para “gente de cor”. Na
cidade de Montgomery, no estado do Alabama, a lei dizia explicitamente que
quando os brancos não tivessem lugares sentados podiam obrigar os negros a
levantar-se, e se o veículo estivesse muito cheio, os negros podiam ser
despejados para a rua. Nesse dia, vários brancos entraram no autocarro e muitos
negros levantaram-se dos seus lugares. Mas não todos. Rosa Parks recusou
fazê-lo. “Estou cansada de ser tratada como uma pessoa de segunda classe”,
disse ao condutor. E a história rompeu naquele ponto. Alguém que era objeto de
opressão tornou-se sujeito de transformação.
Esta semana vem a Lisboa o pensador Michael Löwy. Autor de uma importante e original obra, Löwy tem a característica admirável de conseguir escrever claro coisas complicadas, fazendo parecer cristalino aquilo que nos parece enevoado. Essa clareza tem dois aspetos que penso serem intrinsecamente políticos: a ideia de que é preciso criar sentido num mundo difícil e a determinação de escrever para que as pessoas o entendam, não cultivando um discurso de casta que impeça todas e todos de participarem no processo do conhecimento. O seu trabalho sobre o romantismo revolucionário como revolta e a necessidade de reencantarmos o mundo, e nos reencantarmos, para o conseguir transformar é especialmente brilhante. Como dizia o surrealista André Breton, citado por Michael Löwy no seu “A Estrela da Manhã, Surrealismo e Marxismo”: “É a revolta, e somente a revolta, que é criadora de luz. E esta luz não pode ser conhecida senão por três vias: a poesia, a liberdade e o amor.”
As paixões, como as revoluções, são tentativas de rompermos as leis que nos condenam à mediocridade e à servidão. No fim estaremos todos mortos, o que conta é termos sido capazes de um gesto livre.
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