E
se o divórcio entre Democracia e Revolução estiver na origem dos tempos
sombrios que vivemos? E se Democracia e Revolução puderem se amigar de novo?
Boaventura
de Sousa Santos | Outras Palavras | Imagem: Robert Doisneau
Quando
olhamos para o passado com os olhos do presente, deparamo-nos com cemitérios
imensos de futuros abandonados, lutas que abriram novas possibilidades mas
foram neutralizadas, silenciadas ou desvirtuadas, futuros assassinados ao
nascer ou mesmo antes, contingências que decidiram a opção vencedora depois
atribuída ao sentido da história. Nesses cemitérios, os futuros abandonados são
também corpos sepultados, muitas vezes corpos que apostaram em futuros errados
ou inúteis. Veneramo-los ou execramo-los consoante o futuro que eles e elas
quiseram coincide ou não com o que queremos para nós. Por isso choramos os
mortos, mas nunca os mesmos mortos. Para que não se pense que os exemplos
recentes se reduzem aos homens-bombas – mártires para uns, terroristas para
outros – em 2014 houve duas celebrações do assassinato do Arquiduque de
Francisco Fernando e sua esposa em Sarajevo, e que conduziu à I Guerra Mundial.
Num bairro da cidade, bósnios croatas e muçulmanos celebraram o monarca e sua
esposa, enquanto noutro bairro, bósnios sérvios celebraram Gravilo Princip que
os assassinou, e até lhe fizeram uma estátua.
No
início do século XXI, a ideia de futuros abandonados parece obsoleta, aliás
tanto quanto a própria ideia de futuro. O futuro parece ter estacionado no
presente e estar disposto a ficar aqui por tempo indeterminado. A novidade, a
surpresa, a indeterminação sucedem-se tão banalmente que tudo o que de bom como
de mau estava eventualmente reservado para o futuro está a ocorrer hoje. O
futuro antecipou-se a si próprio e caiu no presente. A vertigem do tempo que
passa é igual à vertigem do tempo que pára. A banalização da inovação vai de
par com a banalização da glória e do horror. Muitas pessoas vivem isto com
indiferença. Há muito desistiram de fazer acontecer o mundo e por isso estão
resignados a que o mundo lhes aconteça. São os cínicos, profissionais do
ceticismo. Há, porém, dois grupos muito diferentes em tamanho e sorte para quem
esta desistência não é opção.
O
primeiro grupo é constituído pela esmagadora maioria da população mundial.
Exponencial desigualdade social, proliferação de fascismos sociais, fome,
precariedade, desertificação, expulsão de terras ancestrais cobiçadas por
empresas multinacionais, guerras irregulares especializadas em matar populações
civis inocentes – tudo isto faz com que uma parte cada vez maior da população
do mundo tenha deixado de pensar no futuro para se concentrar em amanhã. Estão
vivos hoje, mas não sabem se estarão vivos amanhã; têm comida para dar aos
filhos hoje, mas não sabem se têm amanhã; estão empregados hoje, mas não sabem
se estarão amanhã. O amanhã imediato é o espelho do futuro em que o futuro não
se gosta de ver, pois reflete um futuro medíocre, rasteiro, comezinho. Estas
imensas populações pedem tão pouco ao futuro que não estão à altura dele.
O
segundo grupo é tão minoritário quanto poderoso. Imagina-se a fazer acontecer o
mundo, a definir e controlar o futuro por tempo indeterminado e de maneira
exclusiva para que não haja qualquer futuro alternativo. Esse grupo é
constituído por dois fundamentalismos. São fundamentalistas porque assentam em
verdades absolutas, não admitem dissidência e acreditam que os fins justificam
os meios. Os dois fundamentalismos são o neoliberalismo, controlado pelos
mercados financeiros, e o Daesh, os jhiadistas radicais que se dizem islâmicos.
Sendo muito diferentes e até antagónôcos, partilham importantes
características. Assentam ambos em verdades absolutas que não toleram a
dissidência política – num caso, a fé científica na prioridade dos interesses
dos investidores e na legitimidade da acumulação infinita de riqueza que ela
permite; no outro, a fé religiosa na doutrina do califa que promete a
libertação da dominação e humilhação ocidentais. Ambos visam garantir o
controle do acesso aos recursos naturais mais valorizados. Ambos causam imenso
sofrimento injusto com a justificação de que os fins legitimam os meios. Ambos
recorrem com parificável sofisticação às novas tecnologias digitais de
informação e comunicação para difundir o seu proselitismo. O radicalismo de
ambos é do mesmo quilate e o futuro que proclamam é igualmente distópico – um
futuro indigno da humanidade.
Será
possível um futuro digno entre os dois futuros indignos que acabei de referir:
o minimalismo do amanhã e o maximalismo do fundamentalismo? Penso que sim, mas
a história dos últimos cem anos obriga-nos a múltiplas cautelas. A situação de
que partimos não é brilhante. Começámos o século XX com dois grandes modelos de
transformação progressista da sociedade, a revolução e o reformismo, e
começamos o século XXI sem nenhum deles. Cabe aqui recordar, de novo, a
Revolução Russa, já que foi ela que radicalizou a opção entre os dois modelos e
lhe deu consistência política prática. Com a Revolução de Outubro, tornou-se
claro para os trabalhadores e camponeses (diríamos hoje, classes populares) que
havia duas vias para alcançar um futuro melhor, que se antevia como
pós-capitalista, socialista. Ou a revolução, que implicava ruptura
institucional (não necessariamente violenta) com os mecanismos da democracia
representativa, quebra de procedimentos legais e constitucionais, mudanças
bruscas no regime de propriedade e no controle da terra; ou o reformismo, que
implicava o respeito pelas instituições democráticas e o avanço gradual nas
reivindicações dos trabalhadores à medida que os processos eleitorais lhes
fossem sendo mais favoráveis. O objetivo era o mesmo – o socialismo.
Não
vou hoje tratar das vicissitudes por que esta opção passou ao longo dos últimos
cem anos. Apenas mencionar que depois do fracasso da revolução alemã
(1918-1921) foi-se construindo a ideia de que na Europa e nos EUA (o primeiro mundo)
o reformismo seria a via preferida, enquanto o terceiro mundo (o mundo
socialista soviético foi-se constituindo com o segundo mundo) iria seguir a via
revolucionária, como aconteceu na China em 1949, ou alguma combinação entre as
duas vias. Entretanto, com a subida de Stalin ao poder, a Revolução Russa
transformou-se numa ditadura sanguinária que sacrificou os seus melhores filhos
em nome de uma verdade absoluta que se impunha com a máxima violência. Ou seja,
a opção revolucionária transformou-se num fundamentalismo radical que precedeu
os que mencionei acima. Por sua vez, o terceiro mundo, à medida que se ia
libertando do colonialismo, começava a verificar que o reformismo nunca
conduziria ao socialismo, mas antes, quando muito, a um capitalismo de rosto
humano, como aquele que ia emergindo na Europa depois da II Guerra Mundial. O
movimento dos Não-Alinhados (1955-1961) proclamava a sua intenção de recusar
tanto o socialismo soviético como o capitalismo ocidental.
Por
razões que analisei na minha última coluna, com a queda do muro de Berlim os dois
modelos de transformação social ruíram. A revolução transformou-se num
fundamentalismo desacreditado e caduco que ruiu sobre os seus próprios
fundamentos. Por sua vez, o reformismo democrático foi perdendo o impulso reformista
e, com isso, a densidade democrática. O reformismo passou a significar a luta
desesperada para não perder os direitos das classes populares (educação e saúde
públicas, segurança social, infraestruturas e bens públicos, como a água)
conquistados no período anterior. O reformismo foi assim definhando até se
transformar num ente esquálido e desfigurado que o fundamentalismo neoliberal
reconfigurou por via de um facelift, convertendo-o no único modelo de
democracia de exportação, a democracia liberal transformada num instrumento do
imperialismo, com direito a intervir em países “inimigos” ou “incivilizados” e
a destruí-los em nome de tão cobiçado troféu. Um troféu que, quando entregue,
revela a sua verdadeira identidade: uma ruína iluminada a néon, levada na carga
dos bombardeiros militares e financeiros (“ajustes estruturais”), estes últimos
conduzidos pelos CEOs do Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional.
No estado atual desta jornada, a revolução
converteu-se num fundamentalismo semelhante ao maximalismo dos fundamentalismos
acuais, enquanto o reformismo se degradou até ser o minimalismo da forma de
governo cuja precariedade não lhe permite ver o futuro para além do imediato
amanhã. Terão estes dois fracassos históricos causado direta ou indiretamente a
opção prisional em que vivemos, entre fundamentalismos distópicos e amanhãs sem
depois de amanhã? Mais importante que responder a esta questão, é crucial
sabermos como sair daqui, a condição para que o futuro seja outra vez possível.
Avanço uma hipótese: se historicamente a revolução e a democracia se opuseram e
ambas colapsaram, talvez a solução resida em reinventá-las de modo a que
convivam articuladamente. Por outras palavras, democratizar a revolução e
revolucionar a democracia. Será o tema de próxima coluna.
*Boaventura
de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale,
professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril,
e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa -
todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela
proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social
Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa
denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.
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