João
Carlos Graça [*]
Comecemos
por registar que alguns dos traços das recentes eleições presidenciais
francesas não constituem, de facto, qualquer novidade. O sistema de eleições em
duas voltas consiste nisso mesmo: é suposto votar-se, no segundo turno, no 'mal
menor'; o que significa que, tradicionalmente, a direita política francesa usa
a primeira volta como um análogo das 'primárias' norte-americanas, os diversos
alinhamentos dos sistemas de patronagem e das clientelas determinando, em cada
caso concreto, quem sobrevive e quem fica pelo caminho. Por outro lado, mantém
habitualmente ao largo (e em respeito) a direita secessionista, ou de
inclinações secessionistas, a qual é deste modo forçada à vassalagem face ao
'centro-direita', originariamente gaullista. À esquerda, o sistema das duas
voltas é suposto dar (e realmente dá) jeito sobretudo ao 'centro-esquerda', ou
'esquerda moderada', isto é, inicialmente a SFIO, aliás o PS, castigando a
'esquerda radical', ou seja, o PCF.
A verdadeira especificidade francesa reside no facto de, com a V República, este método ter sido transplantado também para a eleição de deputados nas legislativas. Assim, se antes, com o sistema eleitoral proporcional, o PCF obtinha usualmente mais votos do que a SFIO, e por isso elegia também mais deputados, já com este outro sistema (maioritário em duas voltas) introduziu-se uma assimetria sistemática, que a prazo era suposto constituir (e realmente constituiu) um veneno letal para o PCF. Porquê? Porque, enquanto a eleição dum candidato 'moderado' à esquerda, na primeira volta, garantia quase sempre a vitória na segunda volta (cavalgando a proverbial fidelidade do eleitorado comunista, e na verdade abusando dela), já a eventualidade de ser o candidato do PC a passar ao segundo turno passou a prenunciar derrota quase certa da esquerda: por desinteresse duma parte do eleitorado PS, por cálculo cínico, por mero encolher de ombros ou qualquer outra razão.
A verdadeira especificidade francesa reside no facto de, com a V República, este método ter sido transplantado também para a eleição de deputados nas legislativas. Assim, se antes, com o sistema eleitoral proporcional, o PCF obtinha usualmente mais votos do que a SFIO, e por isso elegia também mais deputados, já com este outro sistema (maioritário em duas voltas) introduziu-se uma assimetria sistemática, que a prazo era suposto constituir (e realmente constituiu) um veneno letal para o PCF. Porquê? Porque, enquanto a eleição dum candidato 'moderado' à esquerda, na primeira volta, garantia quase sempre a vitória na segunda volta (cavalgando a proverbial fidelidade do eleitorado comunista, e na verdade abusando dela), já a eventualidade de ser o candidato do PC a passar ao segundo turno passou a prenunciar derrota quase certa da esquerda: por desinteresse duma parte do eleitorado PS, por cálculo cínico, por mero encolher de ombros ou qualquer outra razão.
Assim, a prazo este sistema significou: 'voto útil', à esquerda, é por
princípio voto no PS; voto no PC é, por contraste, tendencialmente um tiro no
próprio pé. Chama-se a isto 'efeito de Duverger', do nome do politólogo
(Maurice de nome próprio) que, aliás consciente e deliberadamente, desenhou o
método, com o intuito explícito de 'normalizar' em sentido estatístico a
distribuição dos votos na França: ao longo dum eixo de abcissas
esquerda-direita, os franceses revelavam uma tendência persistente e
consistente para uma distribuição 'bimodal', ou mesmo de 'normal invertida',
espalhando muitíssimos votos em partidos 'extremos', até certa altura sobretudo
os comunistas; e tratava-se de, por este modo, conseguir 'trazê-los à razão',
ficando a populaça da república devidamente formatada para aprender (através
dum judicioso caldear de 'cenouras' e 'cacetes') a comportar-se moderada e
urbanamente, a estrutura do voto devendo pois ser 'torcida' (ou 'endireitada',
tudo dependendo da perspetiva), fazendo-a aproximar-se duma distribuição
estatística 'normal' ou em 'curva de sino'.
Os sistemas eleitorais são, reconheçamos pois desde já, importantes modos de obter a chamada 'endogeneização da procura política'; noutros termos, de fabricação, através duma lenta (mas tremendamente constritora) 'engenharia das almas', dos tipos humanos compatíveis com a obtenção dum nível razoável de contentamento através da variedade de 'oferta política' que o sistema permite. Os dispositivos de 'racionalização' psicológica destas realidades, ou de 'transformação da necessidade em virtude' (como por vezes se diz, de forma acertada) são inúmeros; e, não se reduzindo decerto à questão do 'efeito de Duverger', têm neste uma expressão importante e um momento decisivo. A tendência dos franceses (e de outros povos inclinados a imitá-los) para a assunção da dimensão 'esquerda-direita' como aspeto de certo modo 'axial' da vida política é, ela própria, já bem uma expressão desta pulsão racionalizadora. Aquilo que se supunha com a adoção do sistema maioritário em duas voltas era pois, em essência, que o pluripartidarismo se manteria formalmente; mas evoluiria no sentido da constituição de duas grandes 'famílias', uma de esquerda outra de direita, adentro de cada uma dela os 'radicais' sendo sistematicamente lesados em proveito dos 'moderados'. Neste sentido, evoluir-se-ia para uma situação com dois 'superpartidos', à maneira anglo-americana, a primeira volta operando pois de maneira análoga às 'primárias' dos EUA.
As pulsões no sentido do 'centramento' induzido das opções políticas são obviamente multímodas, não se reduzindo ao mencionado 'efeito de Duverger'. Ao que ficou escrito deve acrescentar-se, pelo menos, a enorme pressão exercida também pelos 'media', com a sua doutrinação omnipresente e a correspondente formatação das mentes, o mais dos casos exercendo-se de forma insidiosa e em profundidade, mas não raro chegando à pura e simples prática do 'jornalismo jagunço', como também estamos mais que fartos de saber. Um elemento interessante da vida política é, porém, a imprevisibilidade radical (e por isso também o caráter 'aberto' e intrinsecamente indeterminado) da ação humana. E assim, em situação de descontentamento profundo com o funcionamento dos sistemas políticos, estava por saber se ocorreriam manifestações secessionistas (ou 'populistas', como por vezes se diz) sobretudo 'à esquerda' ou 'à direita' no espectro político: quer na França, quer alhures na Europa. Isto, como está outrossim bom de ver, para além dum aumento imparável dos níveis de abstenção: o qual, pelo seu lado, é não raramente teorizado/justificado apresentando-o como expressão 'paradoxal' de indiferença devida a contentamento generalizado dos eleitores, inclinações individualistas ou 'pós-materialistas' destes, 'desideologização' massiva, etc.
Muito disto, repete-se, é válido quer para a França quer para diversos outros países. Mas é específico da França um certo número de traços adicionais, que convém apontar. Um deles é a inegável hubris induzida na 'família socialista' pelo declínio e a extinção daquele que fora em tempos o portentoso 'partido dos 75 mil fuzilados'. O apodrecimento, a morte (e também a sobrevida post mortem, à la Nosferatu) do PCF são obviamente assunto sério, que só por si daria para vários outros artigos. O que interessa aqui sublinhar é a nonchalance e na verdade a incontinência que este facto, o desaparecimento do rival/sombra que sempre mantivera sobre o PS um iniludível ascendente moral (e que, bem no fundo, o PS sabia ter conseguido eliminar apenas ajudado por terceiros e com recurso à sarrafada), induziu nas hostes 'socialistas', sendo importantes manifestações públicas de tal malaise: desde logo, a completa descaracterização doutrinária dos grupos hegemónicos desta área política, com o emergir explícito de fenómenos do tipo 'New Labour' ou da chamada 'Clintonite' (abertamente 'centrista' e neoliberal); por outro lado, o proliferar correlativo de várias tendências 'alternativas', em graus diversos procurando manter-se fiéis ao legado histórico da esquerda francesa, e em boa medida também tentando enquadrar e manter adentro do curral partidário as inclinações para o descontentamento e o protesto. Enfim, tudo isto desembocou no emergir de várias (e entre si muito diferentes) candidaturas presidenciais provenientes da área 'socialista'.
Há quinze anos, em 2002, este fenómeno induziu já a profunda anomalia, ou o importante 'efeito perverso de Duverger' (chamemos-lhe assim) que foi a eliminação de todos os candidatos de esquerda na primeira volta, com a correspondente chegada da Frente Nacional à segunda volta das presidenciais: disputadas entre o boss do 'centro-direita', Jacques Chirac, ao qual toda a esquerda rendeu depois explícito preito de vassalagem e que veio a ganhar com enorme facilidade, e o líder da FN, Jean Marie Le Pen (resultado final: 82,2 contra 17,8; esmagador). Em todo o caso, uma verdadeira façanha em si mesmo, este facto significou a passagem direta à 'primeira liga' da política francesa duma força que, embora correspondendo já então a cerca de 15 por cento dos votos nas legislativas, fora todavia mantida quase desprovida de grupo parlamentar, dado o 'cordão sanitário' que a direita respectueuseacordara, adentro das suas várias fações (e em sintonia também com a esquerda oficial), manter relativamente a ela: não havia quaisquer acordos de desistências recíprocas envolvendo a Frente Nacional, pelo que esta formação sempre teve de eleger diretamente deputados à primeira volta, logo com mais de 50 por cento dos votos, ou então defrontar uma coligação de 'todos contra ela' à segunda rodada, obviamente significando isso em princípio a sua derrota.
Este traço permite assinalar uma idiossincrasia que podemos usar para distinguir analiticamente a trajetória da FN daquilo que ocorreu com o PCF, destacando a notória viabilidade evolutiva da primeira e a inviabilidade a prazo da segunda. Para se aguentar completamente apartada do jogo das desistências reciprocas, sublinhemo-lo desde já, a FN tem de possuir uma estrutura moral e cultural extremamente coriácea, imunizando-a relativamente aos anticorpos que contra si o 'sistema' permanentemente segrega. Mas esta imunidade estudada, para não se transformar em vórtice de completa 'auto-guetização', deve ser compensada por uma liderança política hábil, capaz de permanentemente interpelar, com argumentos considerados válidos pela maioria da população, as elites políticas de serviço. Mais ainda: ela deve permanentemente 'farejar' o descontentamento com o funcionamento global do sistema, atraindo-o a si e canalizando-o para as suas causas. Deve também ser caracterizada por uma sintonia muito próxima com o corpo social 'profundo', por debaixo do sistema político no seu conjunto: isto é, a própria nação, o povo francês.
'A nação', notemo-lo agora, foi ela própria primeiro uma ideia eminentemente republicana e até mesmo tendencialmente 'de esquerda'; pelo menos aquando da primeira, da grande revolução francesa. Ao longo do seculo XIX, porém, e mais ainda durante o século XX, esta ideia deslizou paulatinamente da identidade rigorosa com 'o povo', a massa dos cidadãos (impondo portanto o sufrágio universal e propiciando tendências democratizadoras e 'niveladoras'), orientando-se para o culto da suposta 'tradição profunda', de 'a terra e os mortos', da 'alma nacional', do 'inconsciente coletivo', etc., numa linha tipicamente produtora de abundantes mitos comunitaristas que a fez inclinar para a perceção de si própria enquanto atitude política alegada e formalmente 'nem de esquerda nem de direita'. Este facto, a apresentação de si própria a que a FN usualmente procede enquanto formação política 'nem de esquerda nem de direita', adquiriu também muita importância dado que, se por um lado impede a FN de receber benefícios eleitorais 'por herança', adentro de cada família e na passagem da primeira volta para a segunda, por outro lado deixa-a de mãos completamente livres para quaisquer negociações: sempre estritamente pontuais, mas potencialmente com quaisquer dos outros intervenientes, de forma indiferenciada.
O referido traço assinala uma diferença importante relativamente ao modelo, estrategicamente (e voluntariamente) automutilado em matéria de alianças potenciais, que é bem representado pela tradição do PCF: desistir sempre a favor do PS contra o centro-direita, em nome da postulada/desejada 'unidade da esquerda'; desistir mesmo, se necessário, a favor do centro-direita contra a FN, em nome da 'causa antifascista', da 'defesa da república', etc. E neste ponto, precisamente, um certo número de aspetos adicionais merece destaque nesta última eleição.
Em primeiro lugar, o 'espaço do PS' continua simultaneamente em hubris e pulverizado, produzindo este partido, em boa verdade, quer o representante oficial (ou 'homem do aparelho') do PS, Benoît Hamon, que obteve uns meros 6,4 por cento, quer Emmanuel Macron, que recolheu 24 por cento e passou à segunda volta, quer enfim Jean-Luc Mélenchon, que obteve 19,6 por cento. A 'área socialista' beneficia, assim, aparentemente duma grande vantagem em relação ao centro-direita, o representante oficial da qual, François Fillon, colheu 20 por cento dos votos. A candidata da FN, Marine Le Pen, obteve 23,1 por cento e passou também à segunda volta. Nesta última, Macron venceu agora Marine Le Pen por uns 66,1 contra 33,9 que continuam obviamente confortáveis, apesar de muito longe dos 82,2-17,8 de in illo tempore , assim ficando assinalada uma consolidação, afigurando-se imparável, da FN.
Apesar das cogitações de Paul C. Roberts acerca da putativa vitória de Mélenchon numa hipotética segunda volta ( aqui ), a verdade é que a pulverização da 'área socialista' traduz uma completa incompatibilidade de programas. Mélenchon rompeu oficialmente com ela já há alguns anos, tendo esta figura do 'Parti de Gauche' acabado por recolher quase todos os órfãos e semi-órfãos daquilo que outrora foi terreno do PCF e da 'extrema-esquerda'. Embora não muito coerentemente, Mélenchon admite roturas com o Euro, com a UE e mesmo com a NATO; mas é muito evasivo e frouxo no tratamento destes temas, sendo claro apenas no sentido de ser 'anti-austeridade' e 'pró-estado social'. Hamon, o escolhido pelas estruturas do PS, mostra bem o quanto o aparelho partidário vale hoje em dia pouco por aquelas bandas, pelo menos face àquilo (Macron) que em cada momento seja o derni cri do aparelho publicitário-mediático (imaginemos, entre nós, um Rui Tavares ou um Daniel Oliveira a passarem facilmente a perna, em popularidade e telegenia, ao pessoal oficial do Bloco…), reforçado ainda pela bênção do presidente de saída, François Hollande, e tendo por detrás de si, de forma aliás descarada, o apoio de Bruxelas e da haute financeinternacional. Hamon lê da cartilha europeísta, mas sobrepõe-lhe oficialmente uma exegese 'de esquerda': coisa, como está bom de ver, só mesmo de teólogos… Já Macron, o boy da alta finança e de Bruxelas, não tem meias medidas: é por 'mais Europa' e, portanto, menos estado social e mais austeridade; é também 'pró-EUA', 'pró-Israel' e por 'mais NATO'; e portanto bombardeemos os sírios, boicotemos os russos, integremos a Ucrânia no 'Ocidente', etc. E assim, a 'área PS' aparece: muito pulverizada, mas fundamentalmente produzindo, como output terminal, essa 'coisa' indizível saída do marketing político que é o candidato-presidente-ungido-antes-mesmo-de-o-ser, de seu nome Emmanuel Macron.
A atitude genericamente pró-UE e pró-NATO é subscrita também por François Fillon, mas aqui com alguma nuance,procurando mitigar a russofobia dominante, na tradição aliás daquilo que, durante muitas décadas, foi o habitual alinhamento geostratégico da França. Muito mais atrevida em matéria de russofilia (abertamente contrária às sanções, por exemplo) foi entretanto a candidatura de Marine Le Pen; e o mesmo é válido no respeitante a atitudes face ao Euro e à UE, quanto ao que Marine é oficialmente de pendor 'soberanista'. Há, é claro, muito quem fale do financiamento da sua candidatura por Vlad 'o Terrível' Putin; mas há também quem, como François Asselineau (em nono lugar no ranking das votações, com 0,9 por cento), garanta que foi pelo contrário a elite profunda do sistema francês (François Mitterand incluído) a promover a FN, e a continuar a fazê-lo até aos nossos dias, sobretudo como forma de criar uma 'diversão' e aviltar causas em si mesmo meritórias, tais como as da saída da França: da NATO, do Euro e da UE.
Deixemos agora essas teorias 'conspirativas', embora a segunda variedade me pareça, devo dizê-lo, francamente plausível. A 'conspiração' faz aliás parte integrante da definição mesmo da política, mas obviamente não chega como explicação sociológica dum sucesso destas dimensões. E o sucesso de Marine mede-se não apenas pelo crescimento da FN, embora esse também seja decerto importante. Mede-se sim, penso, acima de tudo pela façanha de ter conseguido fazer explodir a possibilidade dum mapeamento político das candidaturas que se apoie nas noções de esquerda e direita, pelo menos a 'esquerda' e a 'direita' oficiais. Na verdade, sob quaisquer critérios suscetíveis de ser subscritos como estrutura organizativa destas noções, o candidato vencedor, Emmanuel Macron, está inegavelmente muitíssimo à direita de Marine Le Pen: isso é verdade quanto à liberalização, à desregulamentação, à austeridade e à demolição propugnada do estado social, matérias essas em que ele é invariavelmente um 'ultra'. Mas não é só 'ultra' de neoliberalismo na 'frente interna': é-o também quanto a política externa, sendo obsessivamente russófobo, ultra sabujo face aos EUA e a Israel, muito pró-NATO, muito anti-Assad e pela intervenção 'musculada' do Ocidente na Síria (à maneira do caso da Líbia); e, enfim, também muito pró-UE e pró-Euro. Sem quaisquer 'snifos' ou fuminhos auto-ilusionistas de 'outra Europa', à maneira de Hamon, notemo-lo. Neste caso é europeísmo consciente e, reconheçamo-lo, pelo menos consequente: europeísmo de direita, portanto.
O discurso dominante, registemo-lo igualmente, continua todavia a expressar o poder social difuso, exercido antes de mais através da capacidade para redefinir constantemente o significado das palavras; e assim Macron é, um pouco à la Lewis Carroll, ou à la George Orwell, permanentemente apresentado em público como de 'centro-esquerda', enquanto Marine Le Pen representaria a 'extrema-direita'. (Ver quanto a isto, e para pôr os pontos nos ii, o excelente artigo de Aidan O'Brien ).
A análise sociológica do voto na segunda volta revela, de facto, coisas bem interessantes: os eleitores de Macron são gente melhor na vida; estão mais satisfeitos e mais felizes; são mais ricos; são mais instruídos e mais saudáveis e vivem mais tempo. Os eleitores de Le Pen são, pelo contrário, comparativamente insatisfeitos e infelizes, mais pobres, menos instruídos e menos saudáveis; e têm, enfim, uma esperança média de vida menor. (Ver aqui o estudo publicado pelo Financial Times ). 'Se a morte fosse interesseira, ai de nós o que seria, o rico comprava-a logo, ai, só o pobre é que morria…', cantavam o Vitorino Salomé e o Sérgio Godinho, lembram-se? Os 'malheureux', que segundo Saint-Just seriam 'la puissance de la Terre', hoje em dia, na França, votam sobretudo Le Pen… O guião interpretativo global deve, portanto ser reformulado: melhor seria dizer que em França os 'Elois' votam Macron, enquanto os 'Morlocks' votam Le Pen. Podemos assim dizer que se tornou verdadeira, embora de maneira apenas 'performativa', a ideia de que naquele país já 'não existe esquerda nem direita'; ou então, as posições estão mapeadas ao contrário, não sei bem…
Sublinhe-se que tradicionalmente, em Portugal, desde que há eleições em democracia, o eleitorado de esquerda (PCP e Bloco) é mais instruído do que o de direita, apesar de os jornais habitualmente ocultarem esse facto nas suas 'análises eleitorais'. Esse é, parece-me, um traço ao qual devemos estar muito atentos em qualquer análise sociológica. Há ainda uma esquerda política consistente, entre nós, porque um grupo social com uma certa orientação de voto, que pode genericamente corresponder aos menos abastados, é todavia também genericamente o grupo dos mais instruídos. Esta configuração social tende a produzir uma esquerda política robusta. Quando ela não ocorre, quando o sistema das dominações consolida culturalmente a sua 'hegemonia', permanecendo os pobres predominantemente pouco instruídos, o que acontece por hábito são guerras dos pobres contra os pobres… para proveito dos ricos. Existe xenofobia e aversão aos imigrantes, sim, é inegável. Existem 'gangues de Nova Iorque' e afins: há muito que se sabe, aliás, que é fundamentalmente por isso mesmo que 'não existe socialismo nos EUA'. Não existe nem existirá. Enquanto a 'esquerda' norte-americana for uma 'esquerda', preocupada sobretudo com a discriminação de que são reconhecidamente vítimas os homossexuais no uso dos sanitários públicos… descansem, que não haverá esquerda política de relevo naquele país. Haverá em contrapartida, isso sim, Donald Trump mais os os seus 'deplorables', como lhes chamou a Lady Killary.
E na França, o país de 1789, de 1848, 1871, de 1944, de 1968…? Bom, na França teremos, suspeito, um 'cenário' cada vez mais norte-americanizado de vida política, mas conseguindo (à maneira, aliás, do que frequentemente sucede com os neófitos) ter um desempenho ainda pior, ou mais 'ultra': no 'pilar Europeu' da NATO; finalmente, a linha 'Killary' triunfou. Tudo isto, diga-se, propicia excelentes comentários e soberbas análises, como as que são expostas, por exemplo, por Diana Johnstone, aqui e sobretudo aqui .
Do Portugal de finais de oitocentos escreveu já alguém que consistia fundamentalmente num rol interminável de misérias, que os Céus nos tinham caprichosamente imposto… e em compensação pelo qual nos tinham, entretanto, ofertado também a obra de Eça de Queirós. Talvez, atrevo-me agora a sugerir, alguém venha ainda a escrever algo de análogo em relação à França dos nossos dias e aos artigos de Aidan O'Brien, e sobretudo de Diana Johnstone. Ainda assim, relativamente a estes assuntos (seja a respeito da França ou de Portugal), vem-me à memória sobretudo a célebre tirada de Cássio: "The fault, dear Brutus, is not in our stars,/ But in ourselves, that we are underlings"…
Nota final: Quanto a esta eleição, é importante não esquecer que, por maior que seja a tendência para nela nos projetarmos e tomarmos partido, ela foi ainda assim (tal como a de Trump-Hillary, de resto) uma eleição num país estrangeiro. É melhor pensarmos em 'tratar de nós próprios', portanto. Registemos também a aparente inclinação para a rápida obsolescência biológica, digamos assim, dos dirigentes políticos na França em 2002, os candidatos Chirac e Le Pen pai faziam 70 e 74 anos respetivamente; na de agora, Macron e de Le Pen filha têm, respetivamente, quase 40 e quase 49 anos. Valha isso o que valer, registemos aqui o facto.
12/Maio/2017
Do
mesmo autor em resistir.info:
[*] Economista e sociólogo, jogra1958@netcabo.pt
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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