quarta-feira, 10 de maio de 2017

Portugal | TOLERÂNCIA DE PONTO-FINAL-PARÁGRAFO


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

Se Deus - ou alguém em sua representação oficial - voltasse à terra na véspera do 13 de Maio, o que veria? Crentes funcionários públicos em peregrinação, crentes funcionários privados em abstinência espiritual ou não abençoados funcionários-de-todo-o-Mundo-uni-vos em absoluto desdém pela intolerância? A tolerância de ponto decretada pelo Governo socialista-laico é uma reminiscência daqueles habituais costumes que não deveriam fazer do hábito a razão última da sua permanência. Ou será apenas a habitual e moderna tendência transgénica do cultivo das rosas sem espinhos? Sacrossanto caminho este. Caminhar para a cruz à distância do calvário, sacrificando a exegese ao sabor de uma maioria que a sustente.

No caso concreto da visita papal, a maioria até fez o pleno. À excepção de vozes individuais, nenhum dos partidos com representação parlamentar manifestou qualquer discordância ou reserva sobre a subserviência do pequeno país laico ao enorme país católico. A laicidade do Estado, porém, deveria estar para além do respeito: ela vive da equidade. Quando todo o espectro político não levanta a questão da desigualdade entre a celebração pública das convicções mais íntimas, esqueçam a canonização da santa Lúcia: a única beatificação da semana pertence a António Costa e à aparição do seu pleno parlamentar. Não me conforta o argumento de que esta é matéria estritamente reservada ao Governo. Recordo-me de como PS, BE e PCP criticaram a decisão de Passos Coelho em não conceder tolerância de ponto aos funcionários públicos pelo Carnaval.

Ponto final à tolerância, final de parágrafo. A tolerância de ponto não é um fim por si só, uma qualquer forma hábil de devolver qualidade ao lazer das famílias ou sadio ócio ao agregado. Não são férias acrescidas, diminuição da idade da reforma ou redução do horário de trabalho. Está longe de ser um direito. A tolerância de ponto é uma benesse. Neste caso, entre públicos e privados, desigual. Neste caso, entre crentes e não crentes, absurda. Como entendo que isto da fé é para ser levado muito a sério, questiono-me como se permite aos partidos que continuem a brincar às religiões. Se fosse ateu, estaria abalado na minha crença. Enquanto agnóstico, limito-me a desconfiar. Adeus à virgem.
O autor escreve segundo a antiga ortografia

* Músico e advogado

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