Miguel
Guedes | Jornal de Notícias | opinião
Se
Deus - ou alguém em sua representação oficial - voltasse à terra na véspera do
13 de Maio, o que veria? Crentes funcionários públicos em peregrinação, crentes
funcionários privados em abstinência espiritual ou não abençoados
funcionários-de-todo-o-Mundo-uni-vos em absoluto desdém pela intolerância? A
tolerância de ponto decretada pelo Governo socialista-laico é uma reminiscência
daqueles habituais costumes que não deveriam fazer do hábito a razão última da
sua permanência. Ou será apenas a habitual e moderna tendência transgénica do
cultivo das rosas sem espinhos? Sacrossanto caminho este. Caminhar para a cruz
à distância do calvário, sacrificando a exegese ao sabor de uma maioria que a
sustente.
No
caso concreto da visita papal, a maioria até fez o pleno. À excepção de vozes
individuais, nenhum dos partidos com representação parlamentar manifestou
qualquer discordância ou reserva sobre a subserviência do pequeno país laico ao
enorme país católico. A laicidade do Estado, porém, deveria estar para além do
respeito: ela vive da equidade. Quando todo o espectro político não levanta a
questão da desigualdade entre a celebração pública das convicções mais íntimas,
esqueçam a canonização da santa Lúcia: a única beatificação da semana pertence
a António Costa e à aparição do seu pleno parlamentar. Não me conforta o
argumento de que esta é matéria estritamente reservada ao Governo. Recordo-me
de como PS, BE e PCP criticaram a decisão de Passos Coelho em não conceder
tolerância de ponto aos funcionários públicos pelo Carnaval.
Ponto
final à tolerância, final de parágrafo. A tolerância de ponto não é um fim por
si só, uma qualquer forma hábil de devolver qualidade ao lazer das famílias ou
sadio ócio ao agregado. Não são férias acrescidas, diminuição da idade da
reforma ou redução do horário de trabalho. Está longe de ser um direito. A
tolerância de ponto é uma benesse. Neste caso, entre públicos e privados,
desigual. Neste caso, entre crentes e não crentes, absurda. Como entendo que
isto da fé é para ser levado muito a sério, questiono-me como se permite aos
partidos que continuem a brincar às religiões. Se fosse ateu, estaria abalado
na minha crença. Enquanto agnóstico, limito-me a desconfiar. Adeus à virgem.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*
Músico e advogado
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