Qualquer
projeto político precisa propor, também, outros modos de sentir e desejar. Como
superar a competição perpétua, acumulação obsessiva e banalização dos afetos
que caracterizam o neoliberalismo?
Amador
Fernández-Savater | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho |
Imagem:Henri Cartier-Bresson
Nos
anos 70, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini propôs pensar o conflito
político como uma disputa fundamentalmente antropológica: entre diferentes
modos de ser, sensibilidades, ideias de felicidade. Uma força política não é
nada (não tem nenhuma força) se não se enraiza em um “mundo” que rivalize com o
dominante em termos de formas de vida desejáveis.
Enquanto
os “homens políticos” de seu tempo (dirigentes de partido, militantes de
vanguarda, teóricos críticos) miravam o poder estatal como o lugar privilegiado
para a transformação social (toma-se o poder e muda-se a sociedade a partir de
cima), Pasolini advertia – com sensibilidade poética, isto é, sismográfica –
que o capitalismo estava avançando mediante um processo de “homologação
cultural” que arruinava os “outros mundos” (campesinos, proletários,
subproletários), contagiando os valores e modelos de consumo “horizontalmente”:
através da moda, da publicidade, da informação, da televisão, da cultura de
massas etc. O novo poder não emana, irradia ou desce de um lugar central, antes
se propaga “indiretamente, na vivência, no existencial, no concreto”, dizia
Pasolini.
No
vestir e no andar, na seriedade e nos sorrisos, na gesticulação e nos
comportamentos, o poeta decifrava os signos de uma “mutação antropológica” em
marcha: a revolução do consumo. Freá-la a partir do poder político seria como
tratar de conter uma inundação com uma mangueira. Não é possível impor outros
conteúdos ou finalidades a um mesmo marco de acumulação e crescimento. É antes
o contrário: o modo de produção-consumo será o que determina as margens do
poder político. Só se interrompe uma civilização com outra. São necessários
outros vestires e outros andares, outra seriedade e outros sorrisos, outra
gesticulação e outros comportamentos.
A
disputa política (a que não é simples jogo de tronos) expressa um “desacordo
ético” entre diferentes ideias sobre a vida, ou melhor, a boa vida. Não ideias
que flutuam por aí ou se enunciam retoricamente, mas ideias práticas
encarnadas, materializadas, inscritas nos gestos e dispositivos mais cotidianos
(Facebook, Uber ou Airbnb são expressões do desejo, daí sua força). O que
poderia nos contar um olhar antropológico sobre a política? Que mundos
chocam-se hoje? Em que desacordos éticos sobre a vida boa poderiam aflorar
ações políticas transformadoras?
O
velho espírito do capitalismo
Vamos
primeiro dar um passo atrás. Onde nasceu a ideia de organizar a vida inteira em
torno do trabalho, a eficiência e a produtividade? Segundo Max Weber, a cultura
burguesa teve sua origem, motor e combustível na ética protestante (sobretudo
do protestantismo ascético). Através da reconceituação do trabalho como
“profissão” e da teoria da predestinação (só no êxito terreno podemos encontrar
sinais de nossa salvação), gera-se uma subjetividade que coloca no centro da
vida o dinheiro e o enriquecimento, que aspira à “racionalização” de toda a
existência (a relação com o tempo, o corpo, a honra, a educação dos filhos),
que condena a pobreza como o pior dos males (“escolher a pobreza é como
escolher a doença”), etc.
Essa
subjetividade não é um “reflexo automático” da objetividade econômica, mas um
elemento decisivo da “cultura capitalista”, sem a qual simplesmente não há
capitalismo. Somente um novo tipo de imaginário e subjetividade (uma nova
organização do desejo) poderia ter a força suficiente para quebrar a
“mentalidade tradicionalista” (então dominante). Segundo esta, não se vive para
trabalhar (isso seria absurdo), antes trabalha-se para viver; e quem dispõe de
riqueza (por trabalho próprio, alheio ou boa sorte), dedica-se à contemplação
ou à guerra, a brincar ou a caçar, a dormir tranquilo ou ao gozo sensual da
vida, mas não lhe passa pela cabeça reinvesti-la para continuar acumulando.
A
cultura burguesa nasce portanto da potência de um imaginário religioso que logo
abandona, laicizando seus valores: o sentido da responsabilidade individual,
o self made man, a meritocracia, o crédito, o progresso, a sensibilidade
puritana e severa etc. A modernidade foi predominantemente uma “cultura do
Norte”: anglo-saxã, masculina, branca e protestante. Mas o domínio deste
imaginário (viver para trabalhar, investir os lucros para obter mais lucros,
submeter todos os aspectos da vida a um controle regulamentado e sistemático
etc.) nunca foi completo.
A
sociabilidade do Sul
Segundo
o sociólogo (da vida cotidiana) Michel Maffesoli, sempre existiu, insistiu e
resistiu uma “sociabilidade do Sul”. Uma sociabilidade difusa, submersa e
oculta, difícil de ver porém presente, capaz de revelar-se e ativar-se quando
está ameaçada. Uma dinâmica informal (formas de vínculo, de pertencimento
subjetivo, de fazer prático) determinante na vida diária, como substrato ou
“manto freático” da existência coletiva.
Em
que consiste essa sociabilidade do Sul? Em primeiro lugar, é um impulso vital,
não-racional. Uma vontade de viver, um querer viver. Mas não viver de qualquer
modo, e sim afirmando um tipo de vínculo, um tipo de existência, uma certa
ideia de felicidade: um estar-juntos antropológico. É também um conjunto de
saberes e estratégias para reproduzir esses vínculos, essas formas de vida.
Esse
“Sul” refere-se original e historicamente aos países mediterrâneos e
latino-americanos, mas converte-se em seguida na obra do autor numa noção mais
movediça que aponta para “valores” e “climas afetivos”, mais que a uma
localização geográfica. Nesse sentido, há “Sul no Norte”, como também há “Norte
no Sul”. Colônia (viva, alegre, falante, proletária) seria o “Sul” na
Alemanha; Frankfurt, das finanças, o “Norte”.
Podemos
agora enunciar cinco “valores” (o que vale) para esta sociabilidade do Sul:
–
em primeiro lugar, o presente: a vida não se projeta “para diante” (um futuro
de salvação, de perfeição), mas se afirma “agora”. Esta certa despreocupação
quanto ao amanhã não exclui (paradoxalmente?) uma obstinação por reproduzir-se
e durar. A temporalidade da sociabilidade do Sul é intensa e não extensa, mas
ela se empenha em “perseverar em seu ser”.
–
em segundo lugar, o vínculo. A vida se dá em continuidade com os outros,
entrelaçada com outros, enredada com outros. Não somente por necessidade, mas
também pelo prazer de compartilhar. O vínculo mais apreciado é o vínculo
estreito, próximo, ao alcance da mão (o tátil como valor). Este “aqui” não nos
separa do que está “ali” (o distante), antes pelo contrário: a partir do que
vivemos “aqui” nos pode ressoar algo “ali”.
–
em terceiro lugar, o trágico, a assunção da anarquia do que há, do que é. Não
se trata de “solucionar” ou “superar” o que está dado (incerto, obscuro,
múltiplo), antes muito mais de saber “compor-se” com ele. Outra relação, pois,
com o mal, o risco ou a morte, que não são algo a ser erradicado (segundo as
lógicas reinantes do controle, da segurança e da previsibilidade total), mas um
lado da vida (e também podem ser força, alavanca, se sabemos como nos compor).
–
em quarto lugar, o dionisíaco, não a vida encerrada em si mesmo (trabalho,
sucesso, progresso), mas a vida “enlevada” que busca sair de si através do gozo
do corpo, o gosto pela máscara e o disfarce (as aparências), a fusão com o
outro nas celebrações coletivas (musicais, esportivas, religiosas) etc.
Excesso, desperdício, vertigem, entrega, destruição: o “dionisíaco” é uma
exploração da alteridade.
–
por último, o jogo duplo, não a paixão pelo direto, frontal e explícito, mas
pelo desvio, a astúcia, o rebuscado, a burla, a duplicidade, a dissimulação, o
jogo com a lei e a norma, as estratégias informais de conservação e
sobrevivência (minha de dos meus). Não a paixão por corrigir e endireitar, mas
por sortear, regatear, driblar e enganar.
A
crise como ocasião
Os
economistas neoliberais fazem sua própria leitura “antropológica” do mundo e
concluem que a crise econômica de 2008 tem a ver com a “insuficiente mobilidade
geográfica”, o “espírito empreendedor limitado”, a “rede de proteção familiar”,
o “trabalho informal” ou a “indiferença (inclusive a repugnância) com relação
ao enriquecimento” ainda muito presentes nos países do Sul (os chamados PIGS:
Portugal, Itália, Grécia, Espanha, nenhum deles um país protestante, por
certo). À luz dessa análise, vemos a sociabilidade do Sul em ação.
Podemos
ler a gestão neoliberal da crise como a tentativa de suprimir por fim todas
essas “inadequações culturais” e acelerar assim “o devir mundo do capital”
(Laval y Dardot)? A crise da dívida seria, desse modo, a ocasião perfeita para
desatar a “destruição criativa” de tudo aquilo que, dentro e fora de nós
mesmos, nos indispõe para pensarmos e atuarmos como simples átomos sociais,
partículas egocêntricas desvinculadas, máquinas de cálcula egoísto. Costumes e
vínculos, apegos e solidariedades.
Eliminando
as proteções sociais, fragilizando os direitos associados ao trabalho,
favorecendo o endividamento geral dos estudantes e das famílias, precarizando,
reduzindo os salários e o investimento social, trata-se de fomentar o “salve-se
quem puder” e destruir tudo aquilo que permita às pessoas qualquer margem de
liberdade com relação ao mercado. Tudo o que há “entre” os seres e faz deles
algo mais que “partículas elementais” em competência: laços de mil tipos,
direitos conquistados, lugares vivos, recursos públicos e comuns, redes de
solidariedade e apoio, circuitos não mercantis de bens e serviços etc. A base
material de qualquer autonomia. Governar hoje consiste precisamente em corroer
esse “entre”, essa rede densa de laços, afetos, apoio mútuo…
Mas
bem quando se queria “extirpá-la”, a sociabilidade do Sul estende-se e
ativa-se. Na Espanha da crise proliferaram por exemplo os microgrupos informais
de solidariedade e apoio mútuo (familiares, de vizinhança, de amizade) que
suavizaram os efeitos devastadores da gestão neoliberal da crise: medo, solidão
e desamparo. Uma proliferação que contradiz em si mesma o paradigma
liberal-individualista: “cada um tem sua vida”.
Bem
quando nos dizem que “havíamos vivido acima de nossas possibilidades” e
devíamos expiar e pagar, os valores do Sul vingam-se, afirmando e difundindo
outras ideias de riqueza e felicidade: mais baseadas no presente que no futuro,
nos vínculos que na solidão, no tempo disponivel e não na vida para o trabalho,
na empatia e não na competição, no desfrute da graça, mais que na culpa pela
dívida.
O
novo espírito do capitalismo
Mais
difícil ainda. Segundo alguns autores, estaríamos hoje atravessando a passagem
para a superação (intensificação? radicalização?) do antigo “espírito” do
capitalismo, cujas origens Max Weber estudou.
Por
exemplo, segundo Franco Berardi, a burguesia ainda “vivia nos vínculos” (com
uma comunidade, alguns lugares, alguns bens físicos, uma classe trabalhadora
que não podia suprimir, a relação entre valor e tempo de trabalho). Porém, o
capitalismo financeiro é muito mais abstrato: não se identifica com nenhum
lugar, com nenhuma população concreta, qualquer tipo de trabalho, com nenhuma regra,
embora suas decisões tenham consequências (devastadoras) sobre lugares,
populações, trabalhadores etc.
Por
outro lado, segundo Christian Laval e Pierre Dardot, essa lógica de acumulação
infinita do capital tornou-se hoje uma “modalidade subjetiva”. Que quer dizer
isso? Pois que o “homo economicus” (definido pela prudência, a ponderação, o
equilíbrio nos intercâmbios, a felicidade sem excessos, a paridade dos esforços
e dos prazeres) é substituído o “empresário de si mesmo” (definido pela
competência e a autossuperação constante: viver no risco, ir além de si mesmo,
assumir um desequilíbrio permanente, não descansar ou parar jamais, colocar
todo o gozo na autossuperação). Uma expressão resume, segundo os autores
franceses, o tipo subjetivo do capitalismo atual: “sempre mais”. O gozo da
falta de limite.
Nessa
transformação seria necessário por certo reavaliar a resistência que apresenta
a “sociabilidade do Sul”, quando por exemplo a cultura capitalista já não exige
hoje a repressão do afetivo/passional, mas antes sua completa
instrumentalização a serviço da lógica do lucro: a
instrumentalização do íntimo. Mas sem dúvida a afirmação de uma “vida que
se basta a si mesma” continua sendo absolutamente subversiva (mais que nunca?).
Uma vida que não tenta extrair e acumular “sempre mais”, mas que se vive no
gozo de cuidar e compartilhar, o mais proximamente possível, aquilo que nos foi
dado, aqui e agora.
A
insurreição da sociabilidade do Sul consistiria em afirmar politicamente esta
outra ideia de felicidade, esta potência subterrânea, estas vagas oceânicas.
Referências
-Cartas
luteranas (Trotta) e Escritos corsarios (Ediciones del Oriente y el
Meditarráneo), de Pier Paolo Pasolini.
-A nuestros amigos e Ahora (ambos em Pepitas de Calabaza), do Comitê Invisível.
-A ética protestante e o “espíritu” do capitalismo (Alianza), de Max Weber.
-A sublevação (edições castelhanas em Hekht y Artefakt), de Franco Berardi, Bifo.
-O pesadelo que nunca acaba (Gedisa), de Christian Laval e Pierre Dardot.
-A nuestros amigos e Ahora (ambos em Pepitas de Calabaza), do Comitê Invisível.
-A ética protestante e o “espíritu” do capitalismo (Alianza), de Max Weber.
-A sublevação (edições castelhanas em Hekht y Artefakt), de Franco Berardi, Bifo.
-O pesadelo que nunca acaba (Gedisa), de Christian Laval e Pierre Dardot.
– O tempo das tribos (Icaria), A fatia do diablo (Siglo XXI) e A
transfiguração do político (Herder), de Michel Maffesoli.
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