Por
não ousar novas formas de Democracia, Estado e Economia; e por não enfrentar
articuladamente as três faces da dominação, ela tem sido incapaz de deter a
ofensiva brutal do sistema
Boaventura
de Sousa Santos | Imagem: Edward Hooper, Pessoas ao sol (1963)
A
dominação social, política e cultural é sempre o resultado de uma distribuição
desigual do poder, nos termos da qual quem não tem poder ou tem menos poder vê
as suas expectativas de vida limitadas ou destruídas por quem tem mais poder.
Tal limitação ou destruição manifesta-se de várias formas, da discriminação à
exclusão, da marginalização à liquidação física, psíquica ou cultural, da
demonização à invisibilização. Todas esta formas podem-se reduzir a uma só –
opressão. Quanto mais desigual é a distribuição do poder, maior é a opressão.
As
sociedades com formas duradouras de poder desigual são sociedades divididas
entre opressores e oprimidos. A contradição entre estas duas categorias não é
lógica, é antes dialéctica, já que as duas categorias são ambas parte da mesma
unidade contraditória. Os fatores que estão na base da dominação variam de
época para época. Na época moderna, digamos, desde o século XVI, os três
fatores principais têm sido: capitalismo, colonialismo e patriarcado. O primeiro
é originário da modernidade ocidental, enquanto os outros dois existiram antes
mas foram reconfigurados pelo capitalismo. A dominação capitalista assenta na
exploração do trabalho assalariado por via de relações entre seres humanos
formalmente iguais. A dominação colonial assenta na relação hierárquica entre
grupos humanos por uma razão supostamente natural, seja ela a raça, a casta, a
religião ou a etnia. A dominação patriarcal implica outro tipo de relação de
poder mas igualmente assente na inferioridade natural de um sexo ou de uma
orientação sexual.
As
relações entre os três modos de dominação têm variado ao longo do tempo e do
espaço, mas o fato de a dominação moderna assentar nos três é uma constante. Ao
contrário do que vulgarmente se pensa, a independência política das antigas
colônias europeias não significou o fim do colonialismo, significou apenas a
substituição de um tipo de colonialismo (o colonialismo de ocupação territorial
efetiva por uma potência estrangeira) por outros tipos (colonialismo interno,
neocolonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, etc.).Vivemos hoje em
sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais. Para ter êxito, a
resistência contra a dominação moderna tem de assentar em lutas simultaneamente
anticapitalistas, anticoloniais e antipatriarcais. Todas as lutas têm de ter
como alvo os três fatores de dominação, e não apenas um, ainda que as
conjunturas possam aconselhar que incidam mais num fator que noutro.
O
século XX foi dos séculos mais violentos da história, mas também se
caracterizou por muitas conquistas positivas: dos direitos sociais e econômicos
dos trabalhadores à libertação e independência das colônias, dos movimentos dos
direitos cívicos das populações afrodescendentes nas Américas às lutas das
mulheres contra a discriminação sexual. No entanto, apesar dos êxitos, os resultados
não são brilhantes. Nas primeiras décadas do século XXI atravessamos mesmo um
período de refluxo generalizado de muitas das conquistas dessas lutas. O
capitalismo concentra a riqueza mais do que nunca e agrava a desigualdade entre
países e no interior de cada país; o racismo, o neocolonialismo e as guerras
imperiais assumem formas particularmente excludentes e violentas; o sexismo,
apesar de todos os êxitos dos movimentos feministas, continua a causar a
violência contra as mulheres com uma persistência inabalável.
Um
diagnóstico correto é a condição necessária para sairmos deste aparente
curto-circuito histórico. Sugiro vários componentes principais do diagnóstico.
O primeiro reside em que, enquanto a dominação moderna articula sempre
capitalismo com colonialismo e patriarcado, as organizações e os movimentos que
vêm lutando contra ela têm sempre estado divididas, cada uma delas
privilegiando um dos modos de dominação e negligenciando, ou mesmo ignorando,
os outros, e cada uma delas defendendo que a sua luta e o seu modo de luta é o
mais importante. Não surpreende assim que muitos partidos socialistas e
comunistas, que lutaram (quando lutaram) contra a dominação capitalista, tenham
sido durante muito tempo colonialistas, racistas e sexistas. Do mesmo modo, não
surpreende que movimentos nacionalistas, anticoloniais e antirracistas tenham
sido capitalistas ou pró-capitalistas e sexistas, e que movimentos feministas
tenham sido coniventes com o racismo, o colonialismo e o capitalismo. Deste
fato histórico resulta claro que os avanços serão escassos se a dominação
continuar unida e a oposição a ela, desunida.
O
segundo componente tem a ver com o modo como se organizaram as resistências
anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais. Trabalhadores, camponeses,
mulheres, escravizados, povos colonizados, povos indígenas, povos
afrodescendentes, populações discriminadas pela deficiência ou pela orientação
sexual recorreram a muitas formas de luta, umas violentas outras, pacíficas,
umas institucionais outras, extra-institucionais. Ao longo do século passado
essas múltiplas formas foram-se condensando em partidos políticos, movimentos
de libertação e movimentos sociais, e, com algumas exceções, foram dando
preferência à luta institucional e não violenta. O regime político que se impôs
como dando a melhor resposta a estas opções foi a democracia de origem liberal,
a democracia atualmente existente. Acontece que a potencialidade deste tipo de
democracia para corresponder às aspirações das populações oprimidas sempre foi
muito limitada e as limitações foram-se agravando em tempos mais recentes.
O
tipo que mais desenvolveu essa potencialidade foi a social-democracia europeia,
e o seu melhor momento (conseguido, em boa medida, à custa do colonialismo e
neocolonialismo, ou seja, das relações econômicas desiguais com as colônias e
as ex-colônias), está hoje sob ataque, não só na Europa, como também em todos
os países que procuraram imitar o seu espirito moderadamente redistributivo
para reduzir as enormes desigualdades sociais (Argentina, Brasil, Venezuela).
Por todo o lado, a democracia de baixa intensidade que ainda existe está sendo
cercada por forças antidemocráticas e, nalguns países, vai transitando para
ditaduras atípicas, muitas vezes assentes na destruição da separação dos
poderes (do Brasil à Polônia e à Turquia) ou na manipulação dos sistemas
majoritários (fraude eleitoral sistemática, como no México, sistemas eleitorais
que não garantem a vitória ao candidato mais votado, como nos EUA). Sabíamos
que a democracia se defende mal dos antidemocratas pois, doutro modo, Hitler
não teria ascendido ao poder por via de eleições. Mas note-se que, ainda que de
modo fraudulento, o seu partido ostentava a palavra “socialismo” no seu nome.
Hoje,
a democracia está a ser sequestrada por forças econômicas poderosas (Bancos
Centrais, Fundo Monetário Internacional, agências de avaliação de crédito) não
sujeitas a qualquer deliberação democrática. E as imposições podem ser legais
(e legítimas?): juros de dívida pública, imposição de tratados de “livre”
comércio, políticas de austeridade, rules of engagement das
multinacionais, controle corporativo dos grande meios de comunicação social; e
ilegais: corrupção, tráfico de influências, abuso de poder, infiltração nas
organizações democráticas, incitamento à violência. A democracia é hoje
subserviente dos interesses imperiais, senão mesmo um dos seus instrumentos.
Para a impor destroem-se países inteiros, sejam eles o Iraque, a Líbia, a
Síria, o Yemen. Está bem documentada a intervenção imperialista para
desestabilizar processos democráticos dotados de algum ânimo redistributivo e
animados de algum defensismo nacionalista para proteger do mercado
internacional predador de recursos estratégicos, sejam eles petróleo, minérios
ou, crescentemente, terra ou água. Esta desestabilização nutre-se sempre dos
erros, por vezes graves, dos governos nacionais (alguns considerados
progressistas) e conta com a ativa cumplicidade das oligarquias que dominaram
estes países. A descaracterização da democracia é tal que já se fala hoje de
pós-democracia, um novo regime político assente na conversão dos conflitos
políticos em conflitos mediáticos minuciosamente geridos por técnicos de
publicidade e comunicação e ultimamente apoiados pela pós-verdade mediática das fake
news.
O
terceiro componente do diagnóstico diz precisamente respeito aos erros dos
governos nacionais. Porque erram tão frequentemente, sobretudo quando
considerados progressistas? São muitos os fatores: não há alternativas
anticapitalistas credíveis e as conquistas contra o colonialismo, o racismo ou
o sexismo parecem depender de não interferirem com a dominação capitalista; uma
vez com poder de governo, as forças progressistas comportam-se como se
tivessem, além dele, o poder econômico, social e cultural que se reproduz na
sociedade em geral, e com isso deixa de se reconhecer a gravidade ou mesmo a
existência de antagonismo de classes, de raças e de sexos. As lutas contra o
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são sempre concebidas como visando
eliminar os “excessos” destes modos de dominação, e não a sua fonte. Desta
“autocontenção”, voluntária ou imposta, decorrem duas consequências fatais.
A
primeira é tolerar ou mesmo promover um sistema de educação que promove os
valores e as subjetividades que sustentam o capitalismo e as relações
coloniais, racistas e sexistas. A segunda é recusar imaginar (ou ignorar quando
ocorrem) formas alternativas de organizar a economia, conceber a democracia ou
organizar o Estado, praticar a dignidade humana e dignificar a natureza,
promover formas de sentir e de ser solidárias, substituir quantidades e gostos
infinitos pela proporcionalidade, deixar de lado euforias desenvolvimentistas
em benefício de limites justos e fruições comedidas, promover a diferença e a
diversidade com a mesma intensidade com que se promove a horizontalidade. Ao
apresentarem-se como fatais, estas duas consequências são desumanas. Pela
simples razão de que ser humano é não ser ainda plenamente humano. É não ter de
ser para sempre o que se é num dado contexto, tempo ou lugar.
* Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito
pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de
Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente
da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória
recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e
participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma
obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para
Novos Manifestos.
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