O
vento sopra em todo o país, mas as chamas, tal como em 1975, poupam as zonas
onde prevalecem grandes interesses económicos tendencialmente sem pátria.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
O
terrorismo tem mil caras. Lançar o terror contra pessoas comuns e quase sempre
indefesas, ou atemorizar populações e devastar países usando os cidadãos
apavorados como reféns são práticas que preenchem os nossos dias num mundo que,
pela mão de dementes usando o poder acumulado por conglomerados do dinheiro,
caminha para inimagináveis patamares de destruição.
Portugal
tem tido a sorte de ser poupado pelo terrorismo, diz-se e repete-se, por vezes
com inflexões de um misticismo bolorento próprio de pátrias «escolhidas» para
auferir das mercês do sobrenatural. Uma interpretação com curtos horizontes e
vistas estreitas, características cultivadas por uma comunicação social
habilmente arrastada para realidades paralelas e que reduz o terrorismo dos
nossos dias ao estereótipo do muçulmano fanático imolando-se com explosivos à
cintura, ou atropelando a eito, não se esquecendo de deixar o cartão de
identidade, intacto, num local de crime reduzido a destroços humanos e
amontoados de escombros.
Assim
sendo, deixa de ser terrorismo, por exemplo, o que a NATO fez na Líbia, o que
Israel pratica em Gaza, os massacres que as milícias nazis integradas no
exército nacional da Ucrânia «democratizada» cometeram, por exemplo, na
cidade de Odessa.
Olhando
em redor, porém, é imperativo que cada um de nós estilhace a dependência em
relação a um conceito de terrorismo que corresponde a uma ínfima parte da
gravidade do fenómeno global. Só assim alongaremos os horizontes e alargaremos
as vistas que permitirão reflectir a sério, e profundamente, sobre a realidade
que devasta Portugal e que, com uma irresponsabilidade e uma inevitabilidade
próprias de uma cultura tecnocrática e desumana, chegou a ser conhecida
como «a época dos incêndios».
Se
quisermos reflectir livre e abertamente sobre o maior número possível de
aspectos da situação com que nos confrontamos é imprescindível associar o poder
destruidor e aterrador dos incêndios deste ano ao quadro político-social que
vivemos em Portugal; e também à memória que em muitos ainda estará viva e que
outros poderão consultar junto dos mais velhos ou das fontes de uma época que
dista 42 anos. Chamaram-lhe o «Verão quente de 1975».
Pois
nesse «Verão quente», assim baptizado não por causa do terrorismo incendiário
mas de uma instabilidade política inerente às situações revolucionárias e
também organizada, em grande parte, por conspiradores externos, internos e
todos os outros manobradores integráveis no diversificado círculo dos
contrarrevolucionários, multiplicaram-se as práticas terroristas.
Houve
os assassínios políticos puros e duros, os assaltos às sedes dos partidos de
esquerda, quase sempre culminados com incêndios, a intimidação e perseguição de
democratas em regiões onde o salazarismo campeava como se nada tivesse
acontecido, forçando a restauração de situações de clandestinidade; e houve os
incêndios: no Alentejo, ferindo a Reforma Agrária, que depois viria a ser
assaltada e liquidada em nome da «normalidade», da «estabilidade», enfim,
da «democracia do arco da governação»; e que deflagraram também em muitas
outras regiões do país onde não ameaçavam os grandes interesses económicos
estabelecidos – desde logo protegidos pela contrarrevolução – caracterizadas
por populações economicamente mais débeis, socialmente vulneráveis, presas
fáceis das mensagens contra a «indisciplina», a «balbúrdia» e todos
os outros nefastos efeitos atribuídos à revolução.
Hoje
os tempos são outros, mas quem dispuser de olhos para ver não terá dificuldade
em encontrar pontos de contacto. A própria comunicação social, no seu afã
recadeiro de apontar culpados e responsáveis pelas causas e consequências da
interminável vaga de incêndios, abre interessantes pistas de análise e, por
certo involuntariamente, ajuda a estabelecer diferenças gritantes entre a
tragédia deste ano e as rotineiras «épocas de incêndios».
Sem
precisar de evocar essas discrepâncias, é evidente que o actual governo
português, pesem embora as suas subserviências, que são também fontes das suas
fragilidades, não goza das simpatias dos interesses que gerem a União Europeia,
a NATO, enfim das gentes que dirigem o mundo. Tal como em 1975, mesmo que as
semelhanças sejam pouco mais que imperceptíveis.
Porém,
nunca como agora, nos tempos da «estabilidade», um governo foi atado ao
pelourinho dos responsáveis pela vaga estival de incêndios, tanto pela oposição
como pela comunicação social. São conjecturas, especulações, exigências de
demissões, acusações levianas de incompetência, sucessivas adivinhações sobre
«remodelações ministeriais», aproveitamentos necrófilos das vítimas, mentiras
sobre suicídios e outras desgraças – o quadro é tão conhecido que não vale a
pena prosseguir com a enumeração das malfeitorias.
As
atrocidades políticas chegam ao ponto de responsabilizar o governo por
insuficiências do SIRESP e da PT, entidades privadas que se guiam pelo lucro e
não pelos interesses humanos, quando o verdadeiro pecado do executivo, nesta
matéria, é sujeitar-se a mendigar investimentos a sociopatas, pondo
liminarmente de lado o dever de colocar tais entidades ao serviço dos
portugueses e às ordens do Estado Português, porque manipulam interesses
estratégicos dos cidadãos nacionais, prejudicando-os.
No
meio da altercação passa de fininho o facto mais repugnante das manobras: foi a
actual oposição quem entregou esses serviços fundamentais a entidades que nem
querem ouvir falar em pessoas e nos inconvenientes que provocam ao bem-estar do
mercado.
Indo
por este caminho, porém, perder-nos-íamos em atalhos da política de bordel e
nunca chegaríamos ao patamar de reflexões que a situação dos incêndios em
Portugal exige.
O
princípio da abordagem é tão óbvio que a comunicação social foge dele como o
diabo da cruz: o fogo que alastra em Portugal, sem descanso, resulta da
acumulação de incêndios isolados provocados por fenómenos naturais ou pela
demência de pirómanos? Ou é uma vaga terrorista organizada para devastar o
país, delapidar o que resta da sua riqueza natural e impedir o governo de
governar até que mãos salvadoras venham encarreirar a pátria nos trilhos de
onde jamais deveria ter saído?
Estamos,
obviamente, a lidar, com uma teoria da conspiração.
Assim
era também o argumento fatal em 1975, como muitos se recordarão. No entanto, na
sombra, organizações terroristas como o ELP («Exército de Libertação de
Portugal«) e o MDLP («Movimento Democrático de Libertação de Portugal»),
dirigidas por mãos experientes como as do marechal Spínola e de profissionais do
terror instalados em embaixadas estrangeiras – de países da NATO, naturalmente
– conduziam a vaga de incêndios e outras acções terroristas contra Portugal e
os portugueses. O objectivo era virar as populações indefesas contra a
«balbúrdia» criada pelo movimento transformador, abrindo as portas à
contrarrevolução, à «estabilidade». E conseguiram-no.
Quando
se saúda que Portugal tem estado imune ao terrorismo costuma acrescentar-se que
o mesmo acontece em relação a organizações fascistas, por sinal numa Europa
onde elas se desenvolvem a ritmo veloz. Será?
Ora
vivendo nós em macro estado policial formado pela União Europeia e a NATO, onde
as organizações internas e externas para devassa secreta da vida dos cidadãos
se atropelam, ao que parece para detectar as intenções ínfimas de um qualquer
muçulmano, não haverá meios para investigar a possibilidade de existir um
ataque terrorista sistematizado contra Portugal através desta espécie de fogo
inquisitorial? Ou será porque não querem? Ou será porque tal hipótese nem
sequer passou por cabeças tão informadas sobre as vocações conspirativas de
cada qual?
Ou
porque entendem que é suficiente resumir os autos aos interrogatórios de
dezenas de incendiários já detidos, como se o banal executante do crime
soubesse dizer alguma coisa sobre os chefes terroristas supremos? Se acham que
investigar assunto tão corriqueiro é enfadonho, ao menos ouçam os bombeiros.
Até
à vista desarmada – sem necessitar da espionagem por satélites ou da caça aos
telefones e e-mails de cada um de nós – se percebe que nem tudo é aleatório no
quadro de incêndios em Portugal. O vento sopra em todo o país, mas as chamas,
tal como em 1975, poupam as zonas onde prevalecem grandes interesses económicos
tendencialmente sem pátria.
As
vítimas da catástrofe são pequenos e médios proprietários fundiários,
normalmente esquecidos pelos governos e indefesos perante as calamidades; o
terror ataca pequenas aldeias que até os mapas oficiais olvidam, ou então
preciosidades do património humano, histórico e natural que é de todos, como no
caso da Gardunha e suas aldeias, onde chegou a hora do ataque das chamas.
Tanto
como destruir, o efeito procurado é o de aterrorizar. Não é difícil perceber
que o fogo, entendido como a soma de todos os incêndios, escolhe áreas a consumir,
combustíveis e rotas que não são apenas as ditadas pelos ventos. Ao menos a
grande parte do Alentejo flagelada em 1975 tem sido agora poupada,
provavelmente porque os ventos, tal como os tempos, também mudaram.
Se
pedirem a cada uma das pessoas directamente prejudicadas pela calamidade que
cite responsáveis pela tragédia, certo será, mesmo sem qualquer sondagem, que o
governo ficará com as orelhas a arder. As pessoas sentem, mas também ouvem e
assimilam, sobretudo o que via TV's, rádios e jornais as ajuda a identificar os
alvos mais fáceis para descarregar a raiva do desespero.
O
ELP e o MDLP já lá vão, sendo certo que as suas mentalidades não se
desvaneceram, tudo tem o seu aggiornamento.
Ignorar,
para os devidos efeitos, que a vaga de incêndios em curso em Portugal, pelas
suas características, regiões de acção e contumácia, pode ser uma operação de
terrorismo organizado é um crime contra o país e todos os portugueses. Uma
hipótese como essa não pode ser descartada.
Por
isso, é dever de todos os cidadãos interrogar-se, reflectir e exigir respostas
das autoridades competentes sobre quem tira proveito dos dois crimes: o dos
incêndios e o do laxismo no apuramento de uma eventual componente terrorista.
Uma
coisa parece óbvia e pode servir como ponto de partida para uma investigação
que se pretende indispensável: ninguém, desde o Presidente da República ao mais
comum dos cidadãos, pode garantir que o ataque incendiário em curso contra
Portugal não é uma operação terrorista.
Foto:
Paulo Cunha / Agência Lusa
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