Reportagem
em Charloteville: como os supremacistas brancos tomaram a cidade e acrescentram
mais um dado tétrico a um cenário global tenso e difícil. Felizmente, houve
resistência
Ricardo
Senra, na BBC
| em Outras Palavras
Quando
propus minha ida neste fim de semana a Charlottesville, uma cidade
universitária de 50 mil habitantes ao sul de Washington, nos Estados Unidos,
minha ideia era conhecer os diferentes matizes da nova direita americana após a
eleição de Donald Trump.
O
protesto “Unite the Right”, ou “Unir a Direita”, até então não tinha muito
espaço na imprensa. Alguns blogs chamavam atenção para o ato, alguns com
elogios à celebração do orgulho e nacionalismo americano, outros com críticas à
ideia de segregação que estes valores podem carregar.
Meu
vagão no trem era heterogêneo. Famílias voltavam para a cidade com bebês para o
almoço de domingo com os avós, estudantes vinham reencontrar pais e namorados,
um ou outro jornalista fingia que estava ali por coincidência e achava que
estava sendo discreto mexendo freneticamente em seu computador, tablet e
celular (eu era um deles).
Quatro
homens chamavam atenção na fileira ao lado. Carecas, fortes, cheios de
tatuagens, vestindo calça bege e camisa branca, eles conversavam sobre algo
sério – e me olhavam muito feio quando eu tentava ler seus lábios, que
sussurravam e me deixavam pescar apenas palavras soltas. Uma delas foi “hate” –
ou ódio.
Pois
foi exatamente ódio o que eu encontrei nas horas seguintes.
Enquanto
desfazia a mala, li no Twitter boatos de um possível ato-surpresa dos
manifestantes, que haviam feito um acordo com a prefeitura para desfilar pela
cidade só no dia seguinte.
Era
sexta-feira à noite e eu corri para a Universidade de Virginia, ao norte do
centro da cidadezinha de casarões preservados e praças com monumentos antigos.
O campus estava escuro, vultos andavam de um lado para o outro em busca de
algum sinal.
Um
grupo de aproximadamente 20 homens subiu em passo acelerado em direção ao jardim
interno. A 50 metros de distância, um grupo menor os seguia. Corri até eles
pela penumbra.
O
segundo bloco era formado por estudantes que escreviam para um site local.
Anne, uma jovem de 20 anos, no máximo, me explicou: “São eles. Estão tentando
nos despistar e andando em círculos”.
Em
15 minutos eu entenderia o que ela quis dizer com “eles”. Depois de circular
todos os cantos do campus, um dos homens gritou: “Vamos!”
Eles
começaram a correr. Sabiam que nós os seguíamos e não diziam nada. Corremos por
quase 10 minutos até chegar ao alto de um vale.
“Eles”
estavam lá embaixo. Centenas de homens e mulheres, incluindo algumas crianças,
se organizavam em filas, rindo alto e brincando entre si enquanto acendiam
tochas. Estava muito escuro e a luz das tochas de madeira tingia de vermelho o
gramado, onde estudantes normalmente jogam beisebal e futebol americano.
Um
homem com tom agressivo começa a falar no megafone. “Alinhem-se agora! Duas
filas! Todos! Agora!”
A
linha iluminada pelas tochas já alcançava o horizonte quando eles começaram a
marchar. “Vocês não vão nos substituir!”, “Judeus não vão nos substituir!”,
“Vidas brancas importam!”, gritavam, bradando também ofensas a gays e
estrangeiros.
“Sou
nazista, sim”, “A negra está assustada”, “Suma daqui, viadinho”, “Ele não é
americano”. Os gritos raivosos, partindo do meio das tochas que homenageavam a
Ku Klux Klan (grupo racista que promoveu linchamentos, enforcamentos e
assassinatos de negros), bastões de baseball e socos ingleses.
A
caminhada terminou com uma briga generalizada com estudantes que tentaram
impedi-los de se aproximar da estátua de Thomas Jefferson, terceiro presidente
americano, em frente ao prédio principal da universidade.
Mas
tudo isso era só um prenúncio do que aconteceria no dia seguinte, o sábado da
marcha oficial.
Acordei
com gritos na praça ao lado do hotel: “Escória racista!”Ali, grupos
antifascistas – opositores aos supremacistas brancos, em muitos casos também
agressivos e radicais – se reuniam para contra-atacar. Nascida e criada em
Charlottesville, a senhora que servia o café da manhã comentava com a gerente.
“Manny
disse que está assustado. Acredita que mandaram ele vestir a farda e vir
trabalhar?”
Depois
descobri que Manny é policial aposentado há quase dez anos. Ele havia dito que
os colegas temiam pelo pior, porque a quantidade de homens se aglomerando nas
praças da cidade só crescia.
“Manny
disse que só uma tempestade seria capaz de controlar isso aqui”, contou a
cozinheira. A previsão do tempo de fato indicava chuvas durante todo o dia.
Mas
não se confirmou.
Durante
quatro horas, homens com suásticas tatuadas no crânio e bandeiras confederadas
(símbolo do grupo que lutou na guerra civil americana por manter a escravidão)
trocavam socos, pauladas e cusparadas com jovens vestindo máscaras e carregando
bastões de madeira e sprays de pimenta.
Eles
se batiam até sangrar, e policiais como o velho Manny assistiam a tudo de
longe, visivelmente impotentes diante de grupos numerosos, estimados entre 2 e
6 mil pessoas, segundo a mídia local.
Os
nacionalistas, neonazistas, supremacistas brancos e simpatizantes se
concentravam na praça, em torno da estátua do general confederado Robert E.
Lee, um dos principais defensores da escravidão.
Antifascistas,
punks, anarquistas e simpatizantes (incluindo hippies de roupas coloridas e
tranças como os que vemos nos vídeos de Woodstock) ficavam do lado de fora.
Para
entrar na praça, os nacionalistas precisavam atravessar um paredão formado por
antifascistas. Durante o caminho saltavam ofensas pesadas de ambos os lados, e
volta e meia os ataques verbais se tornavam físicos.
Fui
pego de surpresa em uma dessas escaladas violentas. Eu tentava filmar o
encontro entre os grupos, quando uma briga generalizada começou. Nacionalistas
fechavam os olhos e batiam com bandeiras em tudo o que viam pela frente, e
antifascistas faziam o mesmo com sprays de pimenta.
O
spray me atingiu pelo corpo todo – e por uns três minutos eu não enxergava nada
e corria, tentando sair da pancadaria. Alguém me puxou com força e me carregou.
Eu não tinha ideia de quem era e temia o que fariam comigo. “Calma, calma, você
vai ficar bem.”
A
jovem fazia parte de um grupo de estudantes voluntários que levavam materiais
de primeiros-socorros, água e comida para atender a feridos. Eles passaram
vinagre no meu rosto e um produto que até agora não entendi qual é – mas tirou
o ardor dos meus olhos na hora. Eles me salvaram no meio da confusão.
Voltei
à cobertura para a BBC Brasil e o que mais impressionava a meu redor, mesmo a
mim, brasileiro, era a quantidade de armas. Grupos uniformizados, representando
os dois lados dos protestos, carregavam pistolas e fuzis, com cintos repletos
de munição.
Na
Virgínia, quem tem porte de armas e determinados tipos de licença pode circular
pelas cidades exibindo o armamento. A combinação entre a primeira e a segunda
emendas da Constituição americana – liberdade de expressão e direito ao porte
de armas, respectivamente – faziam em Charlottesville uma combinação tensa.
O
medo era que, a qualquer momento, alguém disparasse e um tiroteio de proporções
imensas deixasse uma multidão de feridos.
Felizmente,
isso não aconteceu. O governador declarou estado de emergência, e em poucos
minutos helicópteros, tanques e centenas de policiais de diferentes grupos,
incluindo a Força Nacional, chegaram à cidade e ordenaram a saída dos grupos
nacionalistas da praça. Eles seguiram em fila para uma estrada que leva para o
subúrbio local.
Pelo
megafone, a polícia dizia: “Evacuem a área. Evacuem a área. Quem continuar aqui
será preso”.
A
maior parte das ruas do centro foi bloqueada e eu fiquei preso em um
quarteirão, sem poder ir até o hotel – único lugar onde eu poderia ligar meu
computador numa tomada, já que todo o comércio estava fechado.
Nesse
momento, pela segunda vez, encontrei uma onda inspiradora de solidariedade em
meio ao ódio que pontuou o fim de semana em Charlottesville. Grupos de
moradores, muitos deles idosos, circulavam pelas poucas ruas liberadas,
oferecendo garrafas de água gelada e pacotinhos com batatas chips e amendoins.
“Se
hidrate, se alimente”, diziam, sorrindo. “Quanto custa?”, perguntei
automaticamente, achando que eram vendedores ambulantes. “Fazemos por amor”,
respondeu a senhora de cabelos brancos e avental azul, dando um tapinha em
minhas costas.
Dois
homens com tatuagens de símbolos nacionalistas estavam sentados em um canto,
mexendo no celular. O grupo foi até eles também: “Beba água. Se hidrate. Se
alimente”.
Passaram-se
duas horas até que as ruas do centro fossem abertas novamente. Não demorou até
que os grupos que tentavam circular voltassem a se reunir.
Quando
tudo parecia mais calmo, tentei seguir um pequeno grupo de nacionalistas que se
dirigia até um estacionamento para entrar na van que os trouxe à cidade. Nesse
momento, um carro cinza, completamente destruído, passou em alta velocidade.
Alguns
antifascistas aplaudiram, achando que o carro do nacionalista havia sido
depredado. Estavam errados.
A
duas quadras de onde estávamos, uma multidão gritava após o carro ter
atropelado dezenas de pessoas e fugido em marcha ré, para depois acelerar em
fuga em frente ao estacionamento onde eu estava.
Quatro
ambulâncias chegaram rápido – pessoas ensanguentadas eram carregadas, parentes
e amigos choravam em desespero e a polícia tentava, à força, isolar o local.
Mais tarde soubemos: Heather Heyer, uma mulher de 32 anos, morreu atropelada,
enquanto outras 19 pessoas ficaram feridas.
A
cidade foi novamente evacuada por algumas horas. Anoiteceu, e a rua de
pedestres do centro histórico, que na véspera estava lotada de estudantes
comendo e bebendo animados, antes de entrar nas boates locais, estava deserta.
Jornalistas e policiais eram os únicos a ir e vir, sempre em busca de “algo
novo”.
No
local do atropelamento, um grupo de jovens acendia velas e trazia flores. Eles
se organizaram em roda e começaram a rezar, abraçados.
A
chuva prevista para a manhã daquele sábado enfim começou a cair. Inicialmente
leve, uma garoa, depois mais pesada – o que lentamente esvaziou o centro por
completo.
Charlottesville
estava de luto.
Na
manhã deste domingo, moradores varriam calçadas e tentavam recomeçar. No café
da manhã do hotel, a cozinheira conversava com a gerente.
“Manny
ainda não acordou, coitado. Está em choque. Sue (sua esposa) disse que ele não
dorme tanto há 30 anos.”
1 comentário:
Donald Trump pôs a nu os BANDOS DE NAZIS QUE PULULAM POR AÍ: não podem ouvir falar em fronteiras, a existência de outros é uma coisa que lhes faz um bocado de confusão -» nazi não é ser alto e louro, blá, blá, blá... mas sim, a busca de pretextos com o objectivo de negar o Direito à Sobrevivência de outros.
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P.S.
DEMOGRAFIA E SEPARATISMO-50-50: Todos Diferentes, Todos Iguais... ou seja, todas as Identidades Autóctones devem possuir o Direito de ter o SEU espaço no planeta -» inclusive as de rendimento demográfico mais baixo, inclusive as economicamente menos rentáveis.
-» Os 'globalization-lovers', UE-lovers e afins, que fiquem na sua... desde que respeitem os Direitos dos outros... e vice-versa.
---» blog http://separatismo--50--50.blogspot.com/.
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