Severino
Ngoenha faz uma radiografia dos partidos políticos e diz que há défice de
ideias e de democracia nos partidos
À
porta do XI Congresso da Frelimo, o académico Severino Ngoenha espera que, no
fim do evento, o partido dos camaradas se reaproxime do povo e abandone
políticas individualistas inspiradas no capitalismo e na “dulocracia”. Ngoenha
quer uma Frelimo que discuta ideias e não pessoas, para o bem da sociedade
moçambicana. Por outro lado, o filósofo e reitor da Universidade Técnica de
Moçambique (UDM) faz uma radiografia dos partidos políticos e diz que há um
défice de ideias e de democracia nos partidos, onde não se tolera o pensamento
diferente. Ngoenha chega a dizer que quem pensa diferente na Frelimo é tido
como reaccionário, na Renamo é encostado e no MDM perde apoio do partido. Neste
contexto, o académico diz que há uma necessidade de os partidos políticos reaprenderem
a fazer democracia.
Entre
os dias 26 de Setembro e 1 de Outubro, teremos o 11º Congresso da Frelimo. O
que se pode esperar deste evento?
Não
posso dizer o que se pode esperar, mas posso dizer o que acho que é desejável
que aconteça. Os congressos da Frelimo nunca foram banais, foram marcantes para
a vida política e social de Moçambique. O I Congresso foi o congresso em que
claramente se manifestou a vontade de pela independência de Moçambique.
Manifestou-se a vontade de um percurso de unidade que só ele poderia nos levar
à independência política, mas também a ideia de que todos os meios necessários
seriam utilizados para que chegássemos à independência. Quando chegámos ao II
Congresso, já estávamos em conflito dessa mesma unidade. Morre Eduardo Mondlane,
há expulsão daqueles que eram reaccionários. Era a purificação das novas
fileiras e havia já sintomas de desagregação. O III Congresso leva-nos em
direcção à independência. Foi uma opção ideológica que nós seguimos até aos
Acordos de Paz de Roma, que proporcionam o multipartidarismo. Cada congresso
teve que fazer frente a problemas concretos do país no momento em que se vivia,
o que importa é ver quais os problemas principais do país e ver em que medida é
que a Frelimo actual vai ser capaz, com extrema garra, determinação e
objectividade, fazer face a esse tipo de problemas. É o que as pessoas esperam.
A Frelimo é o partido primeiro de Moçambique, é o partido maior que nos levou à
independência, é o partido que governa Moçambique desde a sua independência.
Então, o que se passa na Frelimo é sobremaneira importante e marcante para a
história do nosso país. O que nós constatamos é que a Frelimo foi-se
metamorfoseando e não sempre no bom sentido. Espero que a Frelimo que vai sair
desse congresso seja diferente daquela que vimos ao longo dos anos, muito mais
ligada aos interesses individuais, economicentrismo e a dulocracia. É preciso
que ela volte àqueles elementos do povo, do interesse do bem comum e que volte
a ser um partido de um debate democrático muito forte, que nos traga propostas
de ideias que nos façam sonhar e nos dêem valor, como a Frelimo de 1974 fez
quando chegou aqui. Isso foi-se perdendo, sobretudo após o acordo de paz. Mais
do que aquilo que vai acontecer, o que espero que aconteça é que a Frelimo se
recrie, retome os seus valores verdadeiros. Nós precisamos de partidos
políticos grandes e fortes no tamanho das suas ideias, ideais, valores e no
compromisso com os moçambicanos. É isso que espero que aconteça neste
congresso, que seja de grande debate democrático. Nenhum partido não
democrático pode ser um partido democrático só nas eleições. A Frelimo não pode
apenas pensar nas eleições de cinco em cinco anos. Deve ser um partido
democrático, que se faça presente pelas ideias e ideais, pela maneira como
pensa que podemos utilizar os recursos que temos para melhorar a vida de todos.
E
como é que isso pode acontecer?
A
Frelimo deve ser um partido que pensa em como reapostar na educação, uma
educação de qualidade, que repense na saúde, que pense na questão da luta
contra as assimetrias, contra a desigualdade económica que o país tem. Comecei
pelo I Congresso. se a questão da unidade era muito forte, ela já claudicou em
1968, é mais forte hoje a questão da divisão, o tribalismo está perto. Começamos
a falar da questão de moçambicanos de gema. Chegamos ao Norte, dizem vocês do
Sul: a divisão entre nós nunca foi tão forte como é hoje. Nunca como hoje a
questão da unidade foi tão proeminente e é importante que a unidade seja de
ideias, que não seja uma redistribuição entre os pequenos grupos, porque isso
vai acabar lutando contra nós próprios.
O
tema da paz em Moçambique vai, sem dúvidas, ocupar os congressistas da Frelimo.
Na sua forma de ver, teríamos um XI Congresso capaz de acelerar ou desacelerar
o diálogo entre o Presidente da República e o líder da Renamo?
Saudei
e continuo a saudar a ousadia do Presidente de “quebrar o protocolo” e ir a
Gorongosa falar com Dhlakama. Isto é importante. Este é um dos problemas
maiores de Moçambique, desde a independência nacional. Nós temos que encontrar,
de uma vez por todas, o caminho para uma paz efectiva e duradoura, uma paz
capaz de eleger a democracia, discussão e parlamentarismo como único elemento
legítimo para fazer uma participação política no espaço democrático que nós
queremos construir em Moçambique. Sou favorável a que tudo se faça para que se
milite por uma paz efectiva e justa. Por outras palavras, que sejam sanadas as
diferenças. Os conflitos e as incompreensões que Moçambique viveu nesses 40 anos
não afectaram somente Dhlakama, têm a ver com um conjunto de moçambicanos. A
África do Sul encontrou naquele sistema que todos conhecemos um processo de
reconciliação nacional, o Ruanda pautou por outro caminho. Em Moçambique, as
pessoas pensam em eleições gerais. A tribalização do país é um perigo a nível
interno, mas há muitas pessoas que do exterior podem aproveitar-se dessa
desunião para fomentar conflitos. É do interesse de todos que o país esteja
unido, mas essa unidade não pode ser só geográfica ou política, deve ser também
económica e social. Isto tem a ver com a distribuição, por que há acumulação de
riqueza em pequenos grupos, enquanto a maioria das pessoas continua com
problemas básicos. Temos milhares de pessoas que não têm duas refeições por dia
e outros exibem-se em grandes hotéis. Os poucos bens, riquezas e oportunidades
que temos têm que ser para todos. E se não forem para todos, este é o elemento
que vai despoletar novas divisões e ouso dizer que há o perigo de encontrarmos
um segundo Sudão em Moçambique.
É
verdade que a Frelimo vai ter já o seu XI Congresso, mas há outros partidos com
assento parlamentar, nomeadamente, Renamo e MDM, que estão também a
posicionar-se em face dos próximos eventos…
Um
dos maiores défices da nossa democracia é o défice de ideias. Não se percebe
muito bem quais são as ideias que a Frelimo traz para a governação do país nos
próximos anos, não se percebe muito bem o que a Renamo propõe, e não se percebe
muito bem o que propõe o MDM, ou seja, nós temos um défice de ideias. A
política é, antes de mais nada, um debate de ideias do tipo de cidade que
queremos construir. Parece-me que votamos na Frelimo pelo percurso histórico ou
por aliança que fizemos no passado; votamos na Renamo porque somos contra a
Frelimo ou porque somos da zona centro do país; votamos no MDM porque a Renamo
não participou ou porque queremos punir a Frelimo. As pessoas devem
identificar-se com as propostas dos partidos políticos e devem votar por conta
disso e não por outros motivos. O segundo défice que temos é de democracia,
isto porque democracia não significa votar de cinco em cinco anos. Democracia
significa a participação de todos nos grandes problemas que nos dizem respeito
a todos. É preciso que as escolhas que fazemos e as políticas pelas quais nós
optamos possam melhorar as condições objectivas das nossas vidas. A nossa
democracia carece da dimensão social. As pessoas não vêem as vidas melhoradas
pelas escolhas políticas que fazem, pelos votos que dão ou pelo posicionamento
dos partidos políticos.
E
como olha para esta democracia interna dos partidos políticos?
Há
um défice de democracia no interior dos partidos políticos, por isso, espero
que o XI congresso não seja para posicionar os “guebusianos” de um lado e os
“nyusianos” do outro ou quem sabe lá um outro grupo de outro lado, mas que seja
fortemente um debate de ideias. Ora, uma coisa que me parece paradoxal é que,
no panorama político nacional, o partido mais democrático a nível interno ainda
é a Frelimo. Porque, na Renamo, nós sabemos que o presidente Dhlakama ainda é o
todo-poderoso e não se vê emergir novas figuras no partido. Não se percebe na
Renamo um grande debate de ideias, em que as pessoas possam emergir pelas suas
qualidades humanas e políticas como novos líderes do partido. No MDM, temos o
mesmo tipo de figurino. Da mesma maneira que os outros partidos são pouco
democráticos, o MDM ficou uma espécie de célula de irmãos e carece de um debate
de ideias a nível interno. Se os partidos políticos não são democráticos,
homens não democráticos não podem fazer democracia. Então, é preciso que os
partidos reaprendam a fazer democracia.
O
caso de Amurane no MDM pode servir de exemplo para se falar do défice de
democracia interna?
Se
Mahamudo Amurane tiver ideias diferentes de Manuel de Araújo ou de Daviz
Simango, é normal. Mas este debate deve ser feito no interior do partido,
porque o mesmo não é uma lata de sardinha em que cada pedacinho deve ser igual
a outro. Um partido é um conglomerado de pessoas que comungam dos mesmos
ideais. mas visões comuns não significam uniformidade, significam que temos um
ideal de fundo comum, mas os caminhos que temos de percorrer para chegar a esse
objectivo são diferentes. Quando alguém toma uma posição diferente no interior
dos nossos partidos, na Frelimo são chamados reaccionários, no MDM tem que sair
e não vai ter apoio, e na Renamo é o que aconteceu com gente como Raul
Domingos, que teve a medida de ser colocado à parte, ou seja, cansemo-nos dessa
ideia de que não pode haver diferença.
Orlando
Macuácua | O País
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