Manuel
morreu a lutar pelo amigo enquanto, sem saber, a sua casa também ardia
O
telefone tocou e Manuel saltou da casa, sem hesitar. Perderia a batalha contra
as chamas. O fogo que deixou um rasto de escuridão em muitos lugares matou
cinco pessoas em São Joaninho, Viseu.
Maria
Helena secava as lágrimas invisíveis à conversa na berma da estrada com um
homem sentado na mota, com o capacete enfiado na cabeça e a voz gasta. Santa
Comba Dão, em Viseu, está como muitos lugares da região centro. As matas estão
mais magras, o chão fuma e não deseja ser mais pisado, os muros das casas
transformaram-se em muralhas e os troncos estão da cor da alegria da terra. Os
caminhantes caminham à procura de mensageiros da fortuna. Outros lamentam-se.
Maria Helena diz que foi um pesadelo. Uma vizinha até lhe pediu ajuda para
tirar os animais sem vida do barracão que ardeu. Não teve coragem. Ainda não
tem.
Esta
zona está praticamente toda sem comunicações. Nem nos correios foi possível
fazer um telefonema. Há gente no estrangeiro em sobressalto, há más notícias
por dar, há alívios por aliviar. Nada. Quase nada. Quando interrompidos ou
questionados sobre as coisas, que teimam descrever como "nunca
visto", o tom é sempre terno, de quem prefere aproximar a afugentar. É
meigo. Ou talvez derrotado. Puxa os olhos para o chão, os ombros têm menos
confiança hoje, a ressaca da desgraça.
A
TSF continua a percorrer aquelas estradas onde apenas as lembranças têm cor. As
conversas são todas sobre o mesmo. Há prantos a dois em supermercados. Há
palavras feias apontadas aos governantes. Contam-se histórias e fados,
revelam-se paradeiros e os caprichos crus da morte. Percentagens de corpos
queimados. Foi-se quase tudo. A terra onde as batatas luziam, as couves
ganhavam músculo, os animais levavam a sua vida. Foi-se a terra da gente que
fazia daquela gente a gente da terra. Quase tudo se perdeu. A esperança, outra
desaparecida entre as chamas. Resta a solidariedade do povo.
O
telefone de Manuel, em São Joaninho, tocou a uma qualquer hora do dia. Era um
amigo, estava aflito, as chamas ameaçavam a sua habitação. Manuel não pensou
muito. Saltou da cama, deixou a hesitação para outros tempos e lá foi. Esteve
na luta. Não saberia que a sua casa também seria invadida pelo fogo. A
ignorância salvou a casa do amigo. Mas a besta não lhe poupou a vida. Este
homem perdeu a batalha, sem lutar a sua, em nome da amizade.
Graça
e Eduardo, mulher e marido, cunhados de Manuel, contam a história. Entrámos por
acaso no café do casal, em busca do improvável que aconteceu: ter rede no
telefone para ligar para a rádio. O incêndio levou cinco pessoas de São
Joaninho.
"Era
muito de ajudar", conta Eduardo, com as lágrimas nos olhos, sobre Manuel.
Ver um velho derrotado, com o olhar perdido no nada, a contar os trocos na mão
-- talvez uma muleta para se distrair e não chorar a valer --, promove o
estômago ao estatuto de ginasta de alto gabarito das olimpíadas de 1976. A voz
que o acompanha há 76 anos fala baixinho. "É assim, o que é que se há de
fazer?", diz e voltaria a dizer.
Graça,
70 anos, estava mais serena, mas quanto mais falava mais lhe fugia o pensamento
e a realidade lhe apertava os ossos. A voz tremia. Parava. Recomeçava.
Lamenta-se das cinzas que lhe ocuparam a casa de banho do estabelecimento, que
agora estava com água a mais. É um desgosto. O desconforto em não querer que os
forasteiros vissem o cenário diz muito desta gente.
"É
triste, é triste", suspira Eduardo. "Não tem havido luz e água. Tive
de ir aos correios para ligar para França para falar com o família." Foi
assim que lhes contou sobre Manuel. Enquanto conversávamos, chegam familiares.
Os abraços e as lágrimas ocupam o palco. Não sabem quando é o funeral. Graça
quase parece sentir-se culpada por isso. "Só se vê cabos destruídos.
Destruiu tudo por onde passou. Vento, fumo e chamas", conta Eduardo,
enquanto a esposa imitava o som do vento, furioso. "Vruuu, vruuu".
O
fogo levou gente da terra, separou famílias, juntou famílias, queimou
fotografias, formas de viver e meter o pão na mesa. "Sempre tivemos muita
sorte aqui. Não me lembro de nada assim", sentencia Graça. "Eu vi
logo. Como isto andava, ele vinha aí..."
Ele.
Outra vez, é assim que o tratam nestes lugares. Quase dá para imaginar alguém a
deixar um rasto de derrota e ruínas, com o pior que os homens levam nas veias.
Ele matou terras e gente. Um homem morreu a lutar pela casa do amigo, enquanto
a sua também ardia. Manuel não sobreviveu para viver o desgosto. Ele levou
Manuel.
Hugo
Tavares da Silva | REPORTAGEM
TSF | Foto: Nacho Doce/Reuters (imagem não corresponde à reportagem) |
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