Quando
passam 50 anos da morte de Che Guevara na Bolívia, o Expresso falou
com Juan Martín, o irmão mais novo. Para quem Che é, acima de tudo, Ernesto.
Ele quebrou um silêncio de décadas e escreveu um livro para o dizer
Ser
ou não ser sempre fez a diferença. E ser ou não ser irmão de Ernesto Guevara de
la Serna é algo avassalador. “Cada vez sou menos Juan Martín e mais o irmão do
Che Guevara”, diz ao Expresso o mais novo dos quatro irmãos do Comandante. A
família manteve um silêncio de meio século antes que Juan Martín Guevara, hoje
com 74 anos, acedesse a falar sobre o que se passou. Sobre quem foi, de onde
veio, o que fez, o que deixou, como morreu aquele homem que tantas vezes viu
chegar e partir, até um dia o ver partir de vez. Sobre a circunstância de ser
irmão de um mito, de um ícone tão indiscutível quanto vilipendiado. Falar
custou-lhe a reprovação seca da irmã Celia, a segunda mais velha do clã. E a
oposição acentuou-se quando escreveu, com a jornalista Armelle Vincent, o livro
“Mon Frère, le Che”, publicado em França e já traduzido para 11 línguas — e
acabado de sair em Portugal com o título “O Meu Irmão Che” (ed. Objectiva).
“Ela estava mesmo contra isso. Sabe do livro e não gosta. Não me deixou de
falar, mas há coisas de que é proibido falarmos. O livro é uma delas.” As suas
mais de 300 páginas são apenas “um degrau” na decisão de procurar uma
compreensão de Che diferente da “imagem distorcida, mítica e distante” que as
pessoas têm dele.
Durante
duas horas de conversa ao telefone desde a sua casa em Buenos Aires, Juan
Martín Guevara evocou o seu famoso irmão, 15 anos mais velho do que ele.
Lembrou-se de Ernesto, de Ernestito, de Teté — como só na família era conhecido
—, de Fuser — diminutivo de “Furibundo [furioso] Serna” —, de Chancho, até à
sua derradeira transformação em Che. “Costumo dizer que sou irmão de sangue de
Ernesto e companheiro de ideias do Che. Nunca, nem eu nem os meus irmãos,
sentimos nisso uma carga. O que não quer dizer que sempre tenha sido fácil. Não
foi”, começa ele, que foi militante político e esteve oito anos preso durante a
ditadura militar argentina e que passou por situações tão contraditórias como
aquela que (conta) lhe aconteceu na cadeia. Estava a ser interrogado duramente
por um polícia e pensou o pior. No fim, ele apenas comentou: “Que grande homem
era o teu irmão! Pena que fosse de esquerda.”
A
família Guevara de la Serna era, ela mesma, um poço de contradições. Possuía
nome e antecedentes aristocráticos, mas andava sempre escassa de dinheiro e
havia surgido de uma transgressão — o casamento entre Ernesto Guevara Lynch e
Celia de la Serna y Llosa, que ocorreu contra a vontade dos pais dela. “Essa
ideia da ‘família aristocrática e oligárquica’ do Che é uma parvoíce. A
oligarquia define uma posição de riqueza e de poder. E a aristocracia tem a ver
com o autoritarismo familiar. Ora, se bem que o resto da família fosse
abastada, nós não tínhamos nem riqueza nem poder. Pelo contrário, pela
inconstância do meu pai, estávamos sempre com dificuldades económicas. E
certamente não éramos condicionados pelos hábitos tradicionalistas da linhagem.
A minha mãe foi uma feminista sem o ser, antes do tempo. Fumava, vestia calças,
cortou o cabelo, odiava a lida da casa, fazia o que lhe apetecia. Nem sequer se
punha a pensar que a podiam questionar. Quem não gostasse que fosse dar uma
volta. O meu pai era manipulador e egocêntrico e ligava mais à opinião dos
outros. Mas, por outro lado, tinha muita lata. Era supersticioso e fazia coisas
que eram muito estranhas aos olhos dos outros”, recorda Juan Martín.
UMA
FAMÍLIA PARTICULAR
Imagine,
desafia ele, o que representou para ambas as famílias que estes recém-casados
fossem viver para Misiones, no norte mais a norte da Argentina, a 2700
quilómetros da capital, onde o pai adquirira 200 hectares de plantação de
erva-mate e onde o primogénito, Ernesto — que nasceu por acaso na cidade de
Rosario a 14 de junho de 1928 —, passou os primeiros dois anos. Imagine,
prossegue, o contraste de trocar a selva por Buenos Aires, e Buenos Aires por
Córdoba, e Córdoba por Alta Gracia, e de novo Córdoba, para fechar o círculo em
Buenos Aires, e os filhos a nascer um em cada lugar. “Não era uma família
normal, nem para a aristocracia nem para ninguém. Era muito particular. Também
não era uma família operária — os meus irmãos foram todos estudantes
universitários. Mas a minha casa era a casa do povo. Tínhamos amigos de classes
sociais diferentes, e ninguém discriminava ninguém. Nem por religião, cor ou
dinheiro.”
Era
uma casa de loucos, gosta de dizer Juan Martín. Uma casa em que podia acontecer
levar-se um pontapé no traseiro por se estar simplesmente a levantar uma coisa
do chão, graças a uma ‘lei’ instituída pelo irmão Roberto segundo a qual “el
que se agacha la liga, la ley lo obliga” (quem se baixa apanha, assim a lei
obriga). Ernesto não seria diferente. Seria, antes, “talvez um bocado mais louco
do que os outros, mais audaz, sempre à beira do risco”. Era o jovem estudante
de Medicina a quem não por acaso apelidavam de “Chancho” (porco), pois
envergava a mesma camisa de nylon toda a semana, por vezes lavando-a de noite
para voltar a vesti-la de manhã. Era o adolescente que empreendia estranhos e
quase sempre bem-sucedidos negócios, como aquele em que, com um amigo, comprou
um stock de sapatos. “Venderam todos os pares e no fim restavam sapatos soltos.
O que fizeram? Andaram à procura de aleijados para lhes vender um só sapato.
Perto da nossa casa havia um carpinteiro sem uma perna que lhes comprou o
sapato direito. Ficaram amigos.” E era, também, a criança asmática e debilitada
cuja doença arrastou a família a mudar-se para a serrana província de Córdoba,
de clima adequado a quem sofria de problemas pulmonares.
“A
asma foi um obstáculo muito importante para ele, que exigiu muita tenacidade, e
isso pode tê-lo moldado”, admite Juan Martín. Mas claro que havia mais, tinha
de haver. Não só os pais o estimularam a ultrapassar essa condição “sem o
sobreproteger” como ele possuía dentro dele aquela chama de quem não perdoa
falhanços a si próprio. “Quando jogava râguebi, tinha um medicamento que se
colocava dentro de um pequeno fole de borracha — não existiam vaporizadores —,
e de vez em quando saía do jogo para aspirar aquilo. Depois continuava como se
nada fosse.” Atravessar a nado o rio Amazonas — como relata o filme “Diários de
Che Guevara”, de Walter Salles — porque “o prometera a si próprio” foi apenas
um dos seus muitos autoimpostos desafios. Outro foi ter escalado, no México, o
vulcão Popocatépetl, de 5400 metros, no cume do qual plantou a bandeira
argentina. “Ora, se plantou a bandeira argentina lá em cima é porque já tinha
pensado nisso”, comenta o irmão. Os exemplos sucedem-se, e talvez o mais
marcante seja o que rodeou o final da longa viagem pela América Latina
empreendida juntamente com o seu amigo Antonio Granado, em 1952. “O objetivo
era chegar aos Estados Unidos, mas Granado decidiu ficar na Venezuela. E
Ernesto, em vez de voltar, fez questão de prosseguir até Miami.”
Juan
Martín Guevara aponta dois grandes traços da personalidade de Ernesto que
persistem e se acentuam na transformação deste em Che. Um é a teimosia. “Era
cabeça dura. A minha tia Beatriz, em casa de quem costumávamos almoçar, disse
uma vez que nós, os Guevara, não podemos ser de outra forma: como descendentes
de irlandeses e de bascos, temos uma só ideia fixa, e ainda por cima...
quadrada. Ernesto era assim”, graceja. Mais séria resulta a memória da última
carta que Che escreveu aos pais, em abril de 1965, e que ficou retida em La
Habana tempo demais, razão por que a mãe não a chegou a ler antes de morrer,
nesse mesmo ano. Juan Martín cita ao telefone um excerto em especial — sem que
seja preciso, pois está incluído no livro: “Agora, uma vontade que poli com
deleite de artista irá segurar umas pernas flácidas e uns pulmões cansados.
Fá-lo-ei.” Este final de frase é significativo. “Ele não diz que vai tentar,
diz que vai fazer.”
Mas
também havia o humor, o espírito provocador. Tão marcante que se converteu no
motivo por que Juan Martín não simpatiza com a fotografia de Alberto Korda que
imortalizou o rosto de Che, preferindo o sorriso das imagens escolhidas para a
capa do seu livro. “Ele era assim, estava sempre a pensar no que dizer para
provocar em nós uma reação”, refere. Em 1964, responde ao diretor do Hospital
Psiquiátrico de La Habana, que lhe enviara um número da revista por si editada
(e Juan Martín lê de novo): “Acuso a receção da revista, embora tenha muito
pouco tempo tentarei lê-la. Tenho, porém, outra curiosidade: como podem
imprimir-se 6300 exemplares de uma revista especializada quando nem sequer há
essa quantidade de médicos em Cuba? Assalta-me uma dúvida que conduz o meu
ânimo aos umbrais de uma psicose neuroeconómica: estarão os ratos a usar a
revista para aprofundar os seus conhecimentos psiquiátricos? Ou talvez cada
doente tenha à cabeceira um volume da publicação... Em todo o caso, rogo-te que
penses sobre isto. A revista está boa. A tiragem é intolerável. Acredita em
mim, porque nós os loucos dizemos sempre a verdade.”
“NUNCA
CONFIES NO INIMIGO”
Em
1964, Juan Martín tinha 21 anos. Já compreendia que aquele era o mesmo irmão
que, anos atrás, bombardeava Sabina Portugal, a empregada da casa, com
perguntas sobre a Bolívia e sobre o povo aymara, de que era originária. Ou o
mesmo que, tanto em Córdoba como no périplo com Granado, se dedicou a falar com
as pessoas, à procura do que aquela América Latina profunda — e tão diferente
de Buenos Aires — tinha em comum. Contava também com as recordações da viagem
feita em 1959, com a família, a uma Cuba recém-imersa na revolução — e teria lá
ficado se o pai lho tivesse permitido. “Uma coisa é o irmão mais velho que me
ensinava futebol, que tomava ‘mate’ comigo e que jogava muito bem xadrez, ou a
vida numa casa demasiado pequena para tanta gente. Outra é ele na juventude,
quando se tornou o Che.” Esse homem de barba hirsuta e eterno uniforme de caqui
que todos se calavam para ouvir mal pronunciasse uma palavra; que abandonara o
modo de falar rápido de sempre para passar a expressar-se num ritmo mais
pausado. Uma tarde em La Habana, no gabinete de Ernesto, Juan Martín teve a
prova dessa mudança, quando Che o incitou a boxear. “Dei-lhe um murro, e ele,
que tinha o braço lesionado, queixou-se. Então, ao ver-me baixar os braços,
desferiu-me um murro que me atirou para o chão. Levantei-me zangado, aos
gritos, a chamar-lhe traidor. ‘Nunca confies no inimigo’, disse-me ele.”
Viu-o
uma última vez, fugaz, em 1961. Che estava no Uruguai, a assistir à assembleia
da Organização de Estados Americanos. Toda a família viajou para estar com ele,
e só a mãe repetiria o encontro nas viagens a Cuba mais ou menos regulares e
com longas estadias que faria nos anos seguintes. Quando voltaram a Buenos
Aires, souberam pelo diário “La Nación” que Ernesto tinha afinal pisado a
capital argentina para uma reunião de três horas com o então Presidente Arturo
Frondizi. Nunca se soube o seu conteúdo. Mas os Guevara estavam habituados a
não conhecer os pormenores da nova vida de Che, da mesma forma que aprenderam a
viver, se tal fosse possível, com as ameaças anónimas e os tiros de que eram
alvo na sua própria casa. “Era um susto, os jornais estavam sempre a publicar
que o tinham matado. Nesses anos, saíram várias notícias a afirmá-lo, e a seguir
chegava uma carta de Cuba a tranquilizar os meus pais.” Em 1965, Cuba não
conseguiu ter esse efeito sobre a mãe Celia. “Estava muito preocupada e
intranquila. Não percebia onde estava Ernesto. A última vez que falou ao
telefone com Aleida [March, viúva de Che Guevara], ela disse-lhe que ele estava
bem. Na verdade, não disse quase nada, e a minha mãe percebeu que escondia
alguma coisa. Dois dias depois, mudou de hospital e morreu”, conta Juan Martín.
O
que Celia não sabia era que o filho mais velho estava no Congo, a combater e a
ser derrotado em nome da revolução. E que aquele viria a ser o início do seu
fim. E que o fim seria o início de uma outra era, a do mito, a das versões
contraditórias do mesmo, a das omissões e a dos silêncios. Essa que Juan Martín
se esforça por enterrar. Para isso, teve de dar vários passos. Teve primeiro de
ir a La Higuera, onde Che foi assassinado e o lugar assombrado que a família se
negava a visitar. Só o irmão Roberto tinha tentado lá chegar, logo após o
anúncio da morte de Che, para identificar um corpo que nunca pôde ver, graças
às manobras dissuasivas das autoridades bolivianas. Agora, em 2013, era o mais
novo da família, 46 anos após esse anúncio, que empreendia a viagem.
O
ÚLTIMO DESTINO PODE SER O PRIMEIRO
“Fui
duas vezes, da primeira só visitei a escola em La Higuera, onde o assassinaram.
Da segunda desci a Quebrada del Yuro, onde o prenderam. E não me livro da
estranheza de olhar para lá e pensar: ‘Como é que chegaram a este lugar tão
inóspito e exposto, que se vê perfeitamente lá de cima? Em que circunstâncias
se viram arrastados até aqui?’”, recorda Juan Martín. Já em La Higuera reza-se
a San Ernesto de La Higuera, enquanto a aldeia vive do merchandising de Che
Guevara. “Essa mistura do boliviano descalço a pedir ao santinho coisas da sua
vida camponesa e dos franceses, brasileiros e italianos a pedirem dinheiro nas
suas lojas não me caiu muito bem.” Ao mesmo tempo que não guarda rancor ao povo
boliviano, Juan Martín pensa que o Estado “deveria esclarecer muitas coisas
obscuras e devolver outras que ainda estão na posse do exército”. O Museu Che
Guevara, erigido em Vallegrande, por sua vez, “nada diz sobre a luta popular, passa
por cima do pensamento do Che”. É talvez isto que o irmão mais lamenta: que a
homenagem deste ano, 50 anos depois da sua morte, seja celebrada com “a mesma
mistura de religião, turismo e negociação política”.
Recapitulemos:
Che Guevara foi ferido e capturado na Quebrada del Yuro, Bolívia, na tarde de 8
de outubro de 1967. Tinha chegado ao país irreconhecível, sob o nome de Ramón
Benítez, em novembro do ano anterior, para dali alastrar a revolução para o
resto da América Latina. Os militares levaram-no para uma pequena escola, onde
só no dia seguinte seria executado pelo soldado Mario Terán. Ao jornal espanhol
“El Mundo”, numa entrevista inédita de 2014, este contaria que o detido, antes
de morrer, disse: “Esteja sereno, você vai matar um homem.” Terán teve de dar
duas rajadas de metralhadora para Che deixar de respirar. Depois, o corpo foi
exibido na lavandaria de um hospital de Vallegrande, antes de ir a enterrar
numa vala comum. Antes ainda, as mãos foram cortadas, para o exército ficar com
uma prova da sua identidade. Mas eis que aquelas mãos passariam dois anos num
frasco de formol debaixo da cama de Antonio Arguedas, então ministro do
Interior da Bolívia, e acabariam por regressar a Cuba em inícios de 1970. Foram
entregues a Fidel Castro por um tal Juan Coronel, do Partido Comunista daquele
país, fazendo escala prévia em Moscovo. Só se juntariam ao corpo a que pertenceram
em 1997, quando o jornalista Jon Lee Anderson — autor da mais completa
biografia sobre Che — arrancou ao general boliviano Mario Vargas Salinas a
informação sobre a localização dos restos mortais.
“Quando
o assassinaram, cortaram-lhe as mãos e enterraram-no numa fossa comum. A
intenção era que não houvesse mais Che e que mais ninguém falasse dele. Isso
não aconteceu. Depois tentaram vender a imagem do homem sangrento, do
discriminador, do misógino, tudo o que pudesse diminuí-lo. Também não funcionou:
neste momento, estão a surgir guevaristas como cogumelos”, reflete Juan Martín.
Reage mal às histórias que retratam o irmão como o Comandante implacável que
supervisionou execuções e autorizou fuzilamentos. “A tirania de Batista fez 20
mil mortos. E a guerra pela libertação de Cuba foi obviamente muito violenta
das duas partes. Porém, mal o exército rebelde entra em La Habana, garante que
todos os presos sejam julgados. O primeiro processo, a Sosa Blanco, é público.
O Che era o chefe da prisão de La Cabaña, onde se faziam as execuções, mas não
era ele a julgar e a decidir. Eram os juízes. E, como oficial, cabia-lhe
assinar as sentenças dos juízes.”
E
não está Juan Martín a fazer um retrato de Che despido de defeitos? “É um
defeito tomar as armas para lutar pela liberdade de um povo? Se assim for,
temos de derrubar todas as estátuas de San Martín [general argentino que
libertou o Chile, a Argentina e o Peru da coroa espanhola] — que, diga-se de
passagem, também fuzilou alguns”, atira, para continuar: “É um defeito ter
deixado a família, os filhos? Há quem diga que sim. Ele amava-os, mas, entre a
responsabilidade de ficar com eles e a de ir lutar, foi atrás da segunda. É uma
decisão pessoal.”
CUBA
SEMPRE, APESAR DE TUDO
Neste
ponto da conversa, estamos simbolicamente a descer, outra vez, a Quebrada del
Yuro. A fazer a travessia em direção ao vazio, ao enigma do que de facto
aconteceu a Che na Bolívia. Nunca o saberemos, diz o irmão. Não há
desclassificação de documentos que o esclareça. Mas, como toda a gente, ele
também tem uma teoria. “As mãos do Che, a máscara que fizeram do seu rosto e o
diário foram enviados para Cuba por um dos membros do Governo militar de [René]
Barrientos, o então Presidente boliviano. Sendo inimigos, como pôde ser? Só
havendo uma participação de Cuba. Ao mesmo tempo, estava lá Félix Rodriguez, da
CIA. E o Partido Comunista da Bolívia, que traiu o Che, provavelmente fez isso
a mando do KGB. Havia uma quantidade enorme de fatores e de forças presentes no
terreno.” Se Cuba participou, Fidel não poderia tê-lo salvo? “A decisão de ir à
Bolívia foi comum. Toda a preparação do Che pelos serviços de inteligência
cubanos para lá chegar assim o prova. Claro que dentro de Cuba havia gente no
Governo que não estava de acordo com o Che. Ele tinha criticado a União
Soviética no discurso de Argel [em 1965], e isso pode não ter caído bem. Agora,
dizer que Fidel o deixou sozinho, que lhe soltou a mão, é um disparate. O Che
estava isolado, e não foi Cuba que o isolou.”
Tal
é a fé nessa convicção que, após a morte de Che, grande parte da família
Guevara de la Serna foi gradualmente emigrando para Cuba. O pai, que voltou a
casar-se e teve mais dois filhos. A irmã Ana Maria, que morreu de cancro como a
mãe. Os filhos de Juan Martín, em fuga da ditadura argentina que aprisionara o
seu pai. Em Cuba também viveram sempre os quatro filhos de Ernesto e Aleida
March, assim como a filha mais velha de Che, Hilda, já falecida e fruto do
primeiro casamento deste. O irmão Roberto viveu anos em Espanha. Só Celia e
Juan Martín fincaram o pé na Argentina. Agora, este assiste a uma corrente de
direção contrária, com os sobrinhos e sobrinhos-netos a pedir — e a obter — a
cidadania argentina. “Celia, a minha sobrinha veterinária, tem-na. Assim como
Ernesto, o mais novo, e o filho dele. Como nasceu em 1965, não conheceu o Che.
Para ele, o Che é o que a mãe e o tio Fidel dizem que é. O curioso é que alguma
coisa deve ter percebido do pai, porque quis ter o passaporte argentino. E isto
tem um sentido afetivo”, conta Juan Martín.
E
o que fará ele, ex-militante de esquerda e ex-empresário no ramo dos livros e
dos charutos, que tem passaporte argentino e escreveu um livro, aceitando ser,
finalmente, irmão do seu irmão? “Todos leram esta ou aquela biografia do Che —
há mais de 40. O meu livro foi traduzido para 11 línguas. Porém, não se
conhecem as 4288 páginas em que está plasmado o pensamento do Che. Essa será a
minha responsabilidade, dar a conhecer as 4288 páginas.” É o caminho mais
natural, o motivo por que criou a Fundação Che Vive, que visa disponibilizar os
escritos do Comandante, para que a juventude os possa ler. É isto que vai fazer
“enquanto der”. Não só — arriscamos nós — pelo que Che possa ainda, em geral,
ensinar ou não à Humanidade. Mas pelo que Ernesto, Ernestito, Teté pode ainda
fazer pela infância e pela vida de Tin, Patatín, Tudito, Juan Martín. “Nas
gravações da adolescência, a voz dele é uma voz asmática. E percebe-se
perfeitamente quando tinha acabado de ter um ataque. Nos discursos, ele já tem
uma forma de falar caribenha, convicta. Mas aqui ainda não. Esta era a sua voz,
a voz de Ernesto, a voz do meu irmão.”
LUCIANA LEIDERFARB
| Expresso | Foto: CBS PHOTO ARCHIVE/GETTY IMAGES
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