terça-feira, 31 de outubro de 2017

PORTUGAL | Os nossos juízes estão a precisar de polícia?



Pedro Tadeu | Diário de Notícias | opinião

Para agir o Conselho Superior de Magistratura teve de ser pressionado pelos jornais, por colunistas, por comentadores, pelo Presidente da República, pela ministra da Justiça, pelas redes sociais e até por pequenas mas inéditas manifestações de rua contra o acórdão do juiz da Relação Neto Moura (co-assinado "de cruz", segundo o jornal "Expresso", pela juíza Maria Luísa Arantes) que teceu largas considerações gerais sobre a suposta imoralidade da mulher adúltera, aparente estatuto da vítima do caso, que levou no corpo com uma moca de pregos.

Para decidir estabelecer um simples inquérito disciplinar esse órgão de magistrados que aprecia o desempenho dos seus (e são tantos a ter "muito bom", tal como o próprio Neto Moura já teve, nas respetivas classificações de carreira que deveríamos esperar ter um serviço de justiça absolutamente excecional, em vez de termos de conviver com o arrastado desastre diário que ele é) teve de ser empurrado para uma espécie de beco sem saída mediático e político, cuja única escapatória foi tentar anunciar que ia fazer alguma coisa mais ou menos relevante, suponho que na esperança do assunto entrar no esquecimento.

Já foi ultra escalpelizada a sentença polémica deste juiz, suficientemente grave e anacrónica para até dar azo a que se sustentem opiniões de gente prestigiada que acabam, voluntária ou involuntariamente, a pôr em causa a independência dos juízes, privilégio fundamentalmente sustentado no facto de eles não deverem ser responsabilizados pelas decisões que tomam, o que até é garantido constitucionalmente.

O problema maior deste caso, precisamente, parece-me estar a passar ao lado de uma parte dos analistas. É que a incapacidade de um sistema de autorregulação para os juízes (como, no fundo, também é o Conselho Superior da Magistratura) em fazer corresponder a sua ação disciplinar e ética às expetativas da sociedade, ao mais comum e razoável bom senso, põe de facto em perigo a independência do sistema de justiça: se os erros graves da justiça, sem possibilidade de correção por terem atingido o estado de transitado em julgado, erros graves que são humanamente impossíveis de evitar, não motivam ações decisivas e consequentes pela única entidade que pode penalizar os autores desses erros, a sociedade deixa de acreditar na boa fé dos juízes, vai olhar para a "corporação" como uma "casta" que prefere proteger os seus em vez de proteger a própria sociedade.

Essa erosão da visão da Justiça pelos cidadãos poderá levar a tentativas de impor formas de fiscalização e penalização dos juízes por estruturas estranhas ao sistema e, se essas visões acabarem, com o tempo, por merecer apoio suficiente para serem vertidas em lei, a verdadeira independência dos tribunais morre. Um dos pilares da democracia ficará carcomido.

Esta ineficácia da autorregulação não afeta só os juízes. A Ordem dos Advogados tem muita dificuldade em encontrar advogados desonestos que todo o país conhece. O Conselho Superior do Ministério Público ignora as violações de segredo de justiça das investigações, conduzidas pelos seus ,que se publicam nos jornais. Os órgãos disciplinares e de ética dos médicos são quase cegos para casos de negligência que toda a gente vê. E os bancos centrais (sim, para mim são autoregulação) para agirem contra os desmandos dos senhores da finança deixam primeiro o mundo desabar!

Na minha profissão a autorregulação também não funciona. A Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas deve achar o nosso jornalismo deontologicamente puro pois, que eu saiba, nunca penalizou nenhum jornalista. Esta semana o Conselho Deontológico dos Jornalistas aceitou como válido um referendo de alterações ao código deontológico que teve a abstenção de 94% do eleitorado, o que é uma coisa totalmente antidemocrática! A única entidade que dá alguma "cacetada" nas empresas de comunicação social é a ERC, que emana do poder político, mas que se descredibilizou com decisões patetas e por não servir o interesse público mas os interesses de fação de quem consegue eleger os seus membros.

A autorregulação, nos mais diversos setores de atividade humana parece, portanto, uma missão impossível. Isso acontece por uma razão muito simples: quem tem o trabalho de autorregular pertence ao mundo dos regulados, logo é sempre um juiz em casa própria, é suspeito. Quem autorregula não é capaz de ser cego, decidido e equilibrado como a verdadeira Justiça deve ser. A autorregulação é uma perversão da democracia.

Devíamos acabar com a autorregulação? Em muitos setores, sim, mas, no caso dos juízes, não. É mais perigoso para a democracia ter entidades externas a avaliar juízes (e, assim, a influenciar as decisões dos tribunais) do que ter um Conselho Superior da Magistratura disciplinarmente hipócrita. O que não tem solução, solucionado está... Resta protestarmos.

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