Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Privatizações,
desde a revisão constitucional que as facilitou, tem havido muitas: as
visíveis, que em vários casos começaram por ser parciais para depois passarem a
totais, e as invisíveis. As visíveis parecem ter acabado de momento, desde logo
porque já não há muito a privatizar e porque a agenda privatizadora da Direita
foi travada a tempo pelos acordos entre os partidos que sustentam o Governo
atual.
Façamos
uma observação atenta ao que se tem passado, começando por identificar o rasto
que as privatizações visíveis deixaram. Algumas das empresas privatizadas em
vários setores já nem sequer existem. A banca pública foi entregue a grupos e
capitalistas portugueses, que em muitos casos fizeram chorudas negociatas a
favor de interesses particulares, e está hoje na mão de bancos estrangeiros no
contexto de um processo europeu de concentração da banca e de prosseguimento da
financeirização da economia. No conjunto das privatizações visíveis até temos a
EDP e a REN entregues a um grupo empresarial público chinês. Outras foram parar
a capitais de origem ou sustentabilidade duvidosa, como são os casos da
Fidelidade-Fosun, Cimpor-Camargo Correia, PT-Altice, BES-Lone Star,
TAP-Atlantic Gateway. Os problemas com estes novos donos de antigas empresas
públicas portuguesas começam agora a emergir e podem tornar-se muito perigosos.
Quanto
às privatizações menos visíveis ou invisíveis, todas passam por processos em
que o Estado compra a privados bens e serviços que anteriormente ele próprio
produzia, ou poderia vir a produzir. Vejamos alguns exemplos. i) Estradas.
Encomenda-se a privados uma estrada chave na mão. Depois o Estado e os
automobilistas ficam a pagar renda, cumprindo contratos altamente favoráveis
aos privados. ii) Saúde. Os serviços vão sendo exauridos, não se faz
investimento em nome da redução da despesa, os profissionais são
sobrecarregados e maltratados e, direta e indiretamente, encaminham-se os
doentes para laboratórios, hospitais e consultórios privados. Depois o Estado
comparticipa. iii) Educação. Na escola pública, reduz-se o número de
professores e de pessoal não docente, desprestigiam-se e sobrecarregam-se
professores com tarefas burocráticas, formata-se a direção das escolas para
lógicas de gestão economicista, aumenta-se o número de alunos por turma, eliminam-se
atividades de enriquecimento curricular, colocam-se alunos em escolas privadas.
Depois o Estado paga. iv) Cantinas escolares e refeitórios. Contrata-se o
fornecimento a empresas. Depois o Estado faz contas, mas, entretanto, não dá
atenção à qualidade.
Já
todos ouvimos a Direita falar das vantagens do Estado mínimo. Mas, será que já
todos nos interrogamos acerca das razões pelas quais apesar de tanta conversa
sobre o estado mínimo, o Estado nunca encolhe mesmo com governos de Direita? A
razão é simples: o Estado mínimo de que a Direita fala na realidade é Estado
máximo quanto à socialização das faturas que os privados lhe apresentam. Os
portugueses acabam por pagar elevados preços por bens e serviços fundamentais
agora entregues a negócios privados que o Estado tem de garantir.
Na
Constituição de 1976 podia ler-se: Para assegurar o direito à proteção da
saúde, incumbe prioritariamente ao Estado... Orientar a sua ação para a
socialização da medicina e dos setores médico-medicamentosos. A partir da
revisão de 1989 a frase em itálico foi substituída por "Orientar a sua
ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos". Na altura, porventura não se deu a atenção devida. Mas
quem impôs a emenda sabia muito bem o que estava a fazer: estava a socializar
os custos, isto é, a criar condições para que os serviços de saúde privados se
expandissem, à custa da subsidiação pública.
Ficamos
melhor assim porque os privados são mais eficientes? Não brinquem. Os êxitos
das empresas que atuam na provisão de bens e serviços que incubem ao Estado
resultam acima de tudo da existência de um "mercado" cativo garantido
pelo mesmo Estado.
Se
alguma coisa é preciso fazer na segunda parte do mandato do atual Governo é
exatamente dar passos na direção do fim desta socialização dos custos. A
começar pelo setor da saúde.
*Investigador
e professor universitário
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