Luiz
Gonzaga Belluzzo, economista
O
consenso obtido pela mídia bloqueia o imaginário social e os pobres delegam as
decisões para os “sábios”.
Segundo
o economista, “a desigualdade secular brasileira está na raiz da
reemergência dos antigos ideais do liberalismo econômico, apresentados como o “último grito”
da moda econômica. Nas confrontações que hoje assolam e já assolaram a política brasileira, nada mais velho do que o novo. A
proliferação de caras novas destina-se a esconder o rosto do velho e
persistente poder da casa-grande esculpido em pétrea solidez”.
Eis
o artigo
A
nova pesquisa do IBGE revela o que todos sabem e alguns simulam
ignorar. O Brasil disputa o pódio da desigualdade com o Lesoto e
a Zâmbia. As manchetes da quinta-feira proclamam: o rendimento médio
mensal do 1% mais rico é 36 vezes maior do que os recebimentos dos 50% mais
pobres.
A
pesquisa recém-divulgada tem maior abrangência e acuidade no cálculo dos
rendimentos, o que não permite comparações com as informações capturadas em
pesquisas anteriores. Mas o Índice de Gini já colocava o Brasil entre
os campeões da desigualdade, a despeito dos esforços do governo Lula de
minorar as dores e sofrimentos da pobreza absoluta e elevar o padrão de vida da classe
trabalhadora. Especialistas argumentam que os mais ricos resistiram melhor à
depressão de 2015 e 2016 do que os mais pobres.
Fiquei
surpreso, não com o fenômeno, mas com a constatação. A experiência histórica e
universal registra a maior resiliência das classes proprietárias e dos
assalariados de escol no episódio de encolhimento do nível de atividade. Esta é
a marca registrada das sociedades em que o poder econômico e político está distribuído desigualmente.
Os
“pecados” de concepção e de administração das políticas econômicas regressivas, como a brasileira, não
são daqueles que podem ser cometidos solitariamente por economistas, ministros
da Fazenda ou presidentes da República. Acidentes de tal monta causados por
erros individuais ou por pequenos grupos dirigentes podem acontecer na história
dos povos, mas estou convencido de que eles são menos frequentes do que imagina
o senso comum.
A desigualdade secular brasileira está na raiz da
reemergência dos antigos ideais do liberalismo econômico, apresentados como o “último grito” da
moda econômica. Nas confrontações que hoje assolam e já assolaram a política brasileira, nada mais velho do que o novo. A
proliferação de caras novas destina-se a esconder o rosto do velho e
persistente poder da casa-grande esculpido em pétrea solidez.
Nos
empenhos da troca de máscaras, os disfarces de maior sucesso no momento foram
confeccionados por mãos hábeis. Os artesãos do conservadorismo sabem esculpir com novos cinzéis as
formas petrificadas do velho arranjo oligárquico. São escultores altamente
qualificados nos ofícios do continuísmo com continuidade que encaixam, com
ajustes mas sem atritos, as máscaras do novo nos rostos encarquilhados dos
velhos senhores de sempre.
O
consenso dominante dos dominantes trata de explicar que, se os cânones de sua
dominação não forem respeitados, a vida dos dominados vai piorar ainda mais.
Patrocinada pelo monopólio da mídia, a formação desse consenso é um método
eficaz de bloquear o imaginário social, uma ação destinada a comprovar que a
história humana não deve ser entregue às decisões insensatas da democracia dos
“pobres e ignorantes”, mas mantida permanentemente sob o controle dos “sábios”.
Em
seu rastro de contundências, o golpe de 2016 sacrificou a República e espalhou
os despojos às costas de 13 milhões de desempregados. O apetite voraz de muitos
brasileiros ricos e bonitos por preconceitos de todos os matizes chegou ao
ponto do regurgitamento.
Na
onda recente de mastigação de impropérios racistas, homofóbicos eregionalistas,
tal voracidade encontrou auxílio nos maxilares que proclamam as virtudes da “meritocracia”. Meritocracia no Brasil é palavra de ordem para justificar a rapina
praticada pelos bonitinhos da finança inútil e predatória. Rapina da riqueza
produzida pelo esforço coletivo dos empresários, os que sobraram e ainda
insistem em produzir “coisas” e ideias inovadoras, juntamente com seus
trabalhadores.
A
diferenciação de renda e riquezaengendrada pelo poder do capital estéril veio
acompanhada pela rejeição do “outro”. A rejeição é mais profunda porque
atingiu, de forma devastadora, os sentimentos de pertinência à mesma comunidade
de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e desidentificação
em relação aos “outros”, ou seja, à massa de pobres e miseráveis que
“infesta” o País. E essa desidentificação vem assumindo cada vez mais as
feições de um individualismo agressivo e antirrepublicano. Uma espécie de
caricatura do americanismo.
É
ocioso dizer que tais expectativas e anseios não são um desvio psicológico, mas
enterram suas raízes nas profundezas da desigualdade que há séculos assola o País. Produtos da desigualdade secular e daquela acrescentada no período
do desenvolvimentismo, as classes cosmopolitas têm sido, ao mesmo tempo,
decisivas para a reprodução do apartheid social e impiedosas na
crítica do desenvolvimento nacional, a partir de um primeiro-mundismo abstrato
e não raro, vulgar.
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