"Apesar dos avanços
recentes, detemos a 15ª pior concentração de renda do mundo", pontua o
economista Eduardo Fagnani
“É preciso acabar com o Fator
Previdenciário porque ele é socialmente injusto. Ele penaliza os trabalhadores
mais pobres que entram mais cedo no mercado de trabalho”, defende Eduardo
Fagnani à IHU On-Line. O economista explica que aqueles que ingressam no mercado
de trabalho aos 15 anos de idade acabam contribuindo por 45 anos para
conseguirem a aposentadoria integral, ao invés de cumprirem 35/30 anos de tempo
de serviço. “Desde a implantação do fator (1999), houve sim uma redução
expressiva do fluxo de novas ‘aposentadorias por tempo de contribuição’. Mas,
de fato, outra parcela dos trabalhadores decide se aposentar mesmo com a
incidência do fator, deixando de ter o benefício integral”, avalia.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, comenta a proposta de refazer o cálculo da aposentadoria a partir da fórmula 85/95. “Assim, por exemplo, uma mulher precisa ter no mínimo 30 anos de contribuição e, com 55 anos de idade, teria direito a se aposentar com benefícios integrais. No caso dos homens, eles precisariam ter no mínimo 35 anos de recolhimento e, com 60 anos de idade, poderiam se aposentar com o valor integral. Esta fórmula tem sido defendida pelas Centrais Sindicais e parece ser um bom ponto de partida para as negociações. Beneficia os trabalhadores mais pobres, porque, como mencionado, eles entram muito precocemente no mercado de trabalho”.
O pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho – CESIT enfatiza que na comparação internacional acerca da aposentadoria, “o Brasil, desde 1998, é um ponto fora da curva quando se analisa a combinação esperança de vida, idade para aposentadoria e tempo de contribuição. Aqui com esperança de vida de 74,9 anos exige-se 65/60 anos para se aposentar e 18 anos de contribuição (no caso da ‘Aposentadoria por tempo de serviço’), ou 35/30 de contribuição e 65/60 anos de idade (‘Aposentadoria por tempo de contribuição’)”.
Na avaliação do economista, “a questão de fundo” a ser enfrentada na agenda de desenvolvimento diz respeito “ao fato de que as elites políticas e econômicas do país jamais aceitaram os avanços na Seguridade Social obtidos na Constituição de 1988, mesmo quando se trata apenas de garantir direitos sociais básicos para a construção de uma sociedade democrática e justa. Pressionados por esses atores, desde 1989 os Poderes Executivo e Legislativo optaram por não implantar dispositivos constitucionais pétreos relativos à Seguridade Social (organização, financiamento e controle social)”.
Ele lembra ainda que a estratégia ortodoxa de ajuste macroeconômico do governo poderá não só conduzir o país para a recessão, mas terá “reflexos negativos sobre o mercado de trabalho”. O atual cenário “aponta para graves desequilíbrios financeiros nas contas da previdência. Esta será a senha para novas rodadas de reformas para suprimir direitos. Já vivemos isso nos anos 1990”, conclui.
Eduardo Fagnani é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente leciona no Instituto de Economia da Unicamp e coordena a rede Plataforma Política Social.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Pode nos explicar em que contexto e por que foi criado o Fator Previdenciário no Brasil? Ele conseguiu cumprir seus objetivos?
Eduardo Fagnani – Com base na experiência chilena, no início da década de 1990 o Banco Mundial elaborou o conhecido “modelo dos três pilares”. Ao Estado cabia somente atuar no “pilar inferior” (pobreza extrema). O setor privado atuaria nos pilares superiores. Após o Chile, nove países de América Latina privatizaram a previdência social na década de 1990.
O governo de Fernando Henrique Cardoso procurou seguir essa trilha. Em março de 1995, o Executivo encaminhou ao Congresso a PEC n. 33/95 que tratava da reforma da previdência. No final de 1998 foi concluída uma etapa importante, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 20/98. Essa Emenda implicou retrocessos na Constituição de 1988. Além de suprimir direitos, seu objetivo último era fomentar, para o setor financeiro privado, o mercado de previdência complementar do Regime Geral da Previdência Social – RGPS e do Regime Próprio da Previdência do Servidor Público – RPPSP para o setor financeiro.
O primeiro passo foi tornar restritivas as regras de acesso ao RGPS e ao RPPSP. No caso do setor público, obteve-se êxito ao conjugar idade mínima (65 anos para homens e 60 para mulheres) e tempo de contribuição (35/30 anos).
No caso do RGPS, essa regra foi freada pelo Congresso, que instituiu duas formas de aposentadoria: 1) A “aposentadoria por idade” (65/60 anos, mais 18 anos de contribuição); 2) A “aposentadoria por tempo de contribuição” (35/30 anos e idade mínima de 53/48 anos). Nesse caso, até que os contribuintes atinjam 65/60 anos, incide o “Fator Previdenciário”, criado em 1999, que penaliza o indivíduo que cumpre o tempo de contribuição, mas não possui idade mínima para se aposentar. Ele suprime parcela do valor do benefício e incentiva a postergação da data da aposentadoria.
Além de restringir as regras para a aposentadoria, foi estipulado um teto nominal de benefícios extremamente baixo (atualmente de R$ 3.916,00). Com isso, os contribuintes (RGPS e RPPSP) que desejarem uma aposentadoria com valor acima desse teto seriam forçados a aderir aos fundos de previdência complementar geridos pelo setor financeiro.
O segundo passo foi a pronta regulamentação do Regime da Previdência Complementar – RPC, voltado para os trabalhadores do RGPS que pretendessem receber acima do teto.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, comenta a proposta de refazer o cálculo da aposentadoria a partir da fórmula 85/95. “Assim, por exemplo, uma mulher precisa ter no mínimo 30 anos de contribuição e, com 55 anos de idade, teria direito a se aposentar com benefícios integrais. No caso dos homens, eles precisariam ter no mínimo 35 anos de recolhimento e, com 60 anos de idade, poderiam se aposentar com o valor integral. Esta fórmula tem sido defendida pelas Centrais Sindicais e parece ser um bom ponto de partida para as negociações. Beneficia os trabalhadores mais pobres, porque, como mencionado, eles entram muito precocemente no mercado de trabalho”.
O pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho – CESIT enfatiza que na comparação internacional acerca da aposentadoria, “o Brasil, desde 1998, é um ponto fora da curva quando se analisa a combinação esperança de vida, idade para aposentadoria e tempo de contribuição. Aqui com esperança de vida de 74,9 anos exige-se 65/60 anos para se aposentar e 18 anos de contribuição (no caso da ‘Aposentadoria por tempo de serviço’), ou 35/30 de contribuição e 65/60 anos de idade (‘Aposentadoria por tempo de contribuição’)”.
Na avaliação do economista, “a questão de fundo” a ser enfrentada na agenda de desenvolvimento diz respeito “ao fato de que as elites políticas e econômicas do país jamais aceitaram os avanços na Seguridade Social obtidos na Constituição de 1988, mesmo quando se trata apenas de garantir direitos sociais básicos para a construção de uma sociedade democrática e justa. Pressionados por esses atores, desde 1989 os Poderes Executivo e Legislativo optaram por não implantar dispositivos constitucionais pétreos relativos à Seguridade Social (organização, financiamento e controle social)”.
Ele lembra ainda que a estratégia ortodoxa de ajuste macroeconômico do governo poderá não só conduzir o país para a recessão, mas terá “reflexos negativos sobre o mercado de trabalho”. O atual cenário “aponta para graves desequilíbrios financeiros nas contas da previdência. Esta será a senha para novas rodadas de reformas para suprimir direitos. Já vivemos isso nos anos 1990”, conclui.
Eduardo Fagnani é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente leciona no Instituto de Economia da Unicamp e coordena a rede Plataforma Política Social.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Pode nos explicar em que contexto e por que foi criado o Fator Previdenciário no Brasil? Ele conseguiu cumprir seus objetivos?
Eduardo Fagnani – Com base na experiência chilena, no início da década de 1990 o Banco Mundial elaborou o conhecido “modelo dos três pilares”. Ao Estado cabia somente atuar no “pilar inferior” (pobreza extrema). O setor privado atuaria nos pilares superiores. Após o Chile, nove países de América Latina privatizaram a previdência social na década de 1990.
O governo de Fernando Henrique Cardoso procurou seguir essa trilha. Em março de 1995, o Executivo encaminhou ao Congresso a PEC n. 33/95 que tratava da reforma da previdência. No final de 1998 foi concluída uma etapa importante, com a aprovação da Emenda Constitucional n. 20/98. Essa Emenda implicou retrocessos na Constituição de 1988. Além de suprimir direitos, seu objetivo último era fomentar, para o setor financeiro privado, o mercado de previdência complementar do Regime Geral da Previdência Social – RGPS e do Regime Próprio da Previdência do Servidor Público – RPPSP para o setor financeiro.
O primeiro passo foi tornar restritivas as regras de acesso ao RGPS e ao RPPSP. No caso do setor público, obteve-se êxito ao conjugar idade mínima (65 anos para homens e 60 para mulheres) e tempo de contribuição (35/30 anos).
No caso do RGPS, essa regra foi freada pelo Congresso, que instituiu duas formas de aposentadoria: 1) A “aposentadoria por idade” (65/60 anos, mais 18 anos de contribuição); 2) A “aposentadoria por tempo de contribuição” (35/30 anos e idade mínima de 53/48 anos). Nesse caso, até que os contribuintes atinjam 65/60 anos, incide o “Fator Previdenciário”, criado em 1999, que penaliza o indivíduo que cumpre o tempo de contribuição, mas não possui idade mínima para se aposentar. Ele suprime parcela do valor do benefício e incentiva a postergação da data da aposentadoria.
Além de restringir as regras para a aposentadoria, foi estipulado um teto nominal de benefícios extremamente baixo (atualmente de R$ 3.916,00). Com isso, os contribuintes (RGPS e RPPSP) que desejarem uma aposentadoria com valor acima desse teto seriam forçados a aderir aos fundos de previdência complementar geridos pelo setor financeiro.
O segundo passo foi a pronta regulamentação do Regime da Previdência Complementar – RPC, voltado para os trabalhadores do RGPS que pretendessem receber acima do teto.
O terceiro passo era fazer o mesmo com a previdência do servidor público, o que implica em transferir para o setor financeiro a gestão de parte expressiva da contribuição previdenciária de mais de seis milhões de funcionários ativos da União, dos estados e dos maiores municípios do país. A tramitação da medida foi longa e somente foi concluída em 2012 (governo Dilma Rousseff).
Ineficácia do setor previdenciário
A “eficácia” do Fator na redução das aposentadorias por “tempo de contribuição” é patente: o fluxo anual de novas aposentadorias reduziu-se pela metade a partir de 1999. É importante observar que a aposentadoria “por tempo de contribuição” é acessível para uma parcela restrita dos trabalhadores: aqueles que entraram no mercado de trabalho há cerca de 40 anos, período de crescimento econômico elevado, baixo desemprego e maior taxa de formalização do emprego. Aqueles que entraram no mercado de trabalho a partir dos anos 1990 dificilmente conseguirão comprovar 35 anos de contribuição, em decorrência das diversas modalidades de contratação flexível. Observe-se que, em 2011, 54,7% das aposentadorias concedidas foram “por idade” e apenas 28,0% por “tempo de contribuição”. As aposentadorias por “invalidez” representaram 17,2% do total.
IHU On-Line – Como o senhor está avaliando as articulações do governo Dilma com as centrais sindicais para acabar com o Fator Previdenciário? É preciso acabar com o Fator Previdenciário? Por quais razões? Quais são os prós e contras do Fator Previdenciário para o trabalhador?
Eduardo Fagnani – Aparentemente o tema não vinha sendo tratado pelo governo, a despeito das pressões do movimento sindical. Na semana passada, o Ministro da Previdência Social, Carlos Gabas, recolocou a questão na pauta. É provável que o atendimento a essa antiga reivindicação das Centrais Sindicais seja uma contrapartida para aliviar as tensões acirradas em virtude das medidas provisórias que afetam os benefícios previdenciários e o seguro-desemprego, duramente criticadas pelo movimento sindical.
É preciso acabar com o Fator porque ele é socialmente injusto. Ele penaliza os trabalhadores mais pobres que entram mais cedo no mercado de trabalho (por volta dos 15 anos). Os mais abastados estudam por um período mais longo e começam a trabalhar mais tarde (por volta dos 25 anos). Quem começa a trabalhar com 15 anos de idade, pode contribuir durante 35/30 anos antes de ter 65/60 anos de idade. Para cumprir a regra do Fator, para ter a aposentadoria integral ele acaba contribuindo por mais de 45 anos. Esse fato é inédito na experiência internacional. Além disso, anualmente o IBGE revisa a expectativa de vida do brasileiro; isso também afeta a regra do Fator, exigindo mais tempo de contribuição.
IHU On-Line – O ministro da Previdência Social, Carlos Gabas, declarou que “o Fator Previdenciário é ruim porque não cumpre o papel de retardar as aposentadorias. Agora nós precisamos pensar numa fórmula que faça isso e defendo o conceito do 85/95 como base de partida”. Pode nos explicar a nova fórmula sugerida pelo governo (85/95) (mulheres/homens)? O que muda com ela? O Ministro diz que ela beneficia os mais pobres. Como?
Eduardo Fagnani – Desde a implantação do fator (1999), houve sim uma redução expressiva do fluxo de novas “aposentadorias por tempo de contribuição”. Mas, de fato, outra parcela dos trabalhadores decide se aposentar mesmo com a incidência do fator, deixando de ter o benefício integral.
A fórmula 85/95 combina a soma da idade e do tempo de serviço, respectivamente, para mulheres e homens. Assim, por exemplo, uma mulher precisa ter no mínimo 30 anos de contribuição e, com 55 anos de idade, teria direito a se aposentar com benefícios integrais. No caso dos homens, eles precisariam ter no mínimo 35 anos de recolhimento e, com 60 anos de idade, poderiam se aposentar com o valor integral.
Esta fórmula tem sido defendida pelas Centrais Sindicais e parece ser um bom ponto de partida para as negociações. Beneficia os trabalhadores mais pobres, porque, como mencionado, eles entram muito precocemente no mercado de trabalho. Mas é preciso alertar que há determinados setores que defendem a chamada fórmula 95/105 e que é uma estultice sem tamanho para a realidade socioeconômica brasileira.
IHU On-Line – O ministro sugere reavaliar a idade média de aposentadoria, alegando que o cidadão se aposenta com 54 anos e fica 30 anos recebendo aposentadoria e isso onera o sistema. Essa discussão é factível? Qual seria a idade adequada para a aposentadoria?
Eduardo Fagnani – O Ministro de refere à expectativa de vida após o primeiro ano de vida. O indivíduo que sobreviva ao primeiro ano de vida teria, em média, uma expectativa de vida de 84 anos. Para efeitos de comparação, tomando-se a expectativa de vida ao nascer, a média calculada para os brasileiros é de 74,9 anos para ambos os sexos em 2013, segundo o IBGE. Mas existem diferenciais expressivas entre unidades da federação. Santa Catarina (78,1 anos) tem indicadores muito superiores aos registrados no Maranhão (69,7) ou Alagoas (70,4), por exemplo.
Na comparação internacional, o Brasil, desde 1998, é um ponto fora da curva quando se analisa a combinação esperança de vida, idade para aposentadoria e tempo de contribuição. Aqui com esperança de vida de 74,9 anos, exige-se 65/60 anos para se aposentar e 18 anos de contribuição (no caso da “Aposentadoria por tempo de serviço”), ou 35/30 de contribuição e 65/60 anos de idade (“Aposentadoria por tempo de contribuição”).
Assim, em 1998, com a Emenda Constitucional 20, conseguiu-se transpor para o Brasil padrões semelhantes ou superiores aos existentes em países desenvolvidos. No caso da “aposentadoria por idade”, a idade mínima de 65 anos não era adotada sequer em países como a Bélgica, Alemanha, Canadá, Espanha, França e Portugal (60 anos) e os EUA (62 anos) e equivale ao parâmetro seguido na Suécia, Alemanha e Áustria (65 anos), por exemplo.
No caso da “aposentadoria por tempo de contribuição”, o patamar (35/30 anos) era superior ao estabelecido na Suécia (30 anos) e se aproximava do nível vigente nos EUA (35 anos), Portugal (36), Alemanha (35 a 40) e França (37,5), por exemplo. Como se sabe, esses países têm renda per capita bastante superior à brasileira e a expectativa de vida ao nascer é superior a 80 anos.
De fato, o crescimento da expectativa de vida requer ajustes nas regras da previdência social. Mas esses ajustes devem levar em conta a especificidade da nossa situação de capitalismo tardio. Apesar dos avanços recentes, detemos a 15ª pior concentração de renda do mundo. Os parâmetros internacionais deveriam servir como referência para as negociações em curso.
IHU On-Line – O Ministro declarou que os ajustes anunciados pelo governo em relação ao aperto na concessão dos benefícios sociais, como as pensões por morte e auxílio-doença, não são novidade e já vinham sendo discutidos entre o governo e as centrais e que as centrais “sabem da necessidade de se manter uma Previdência equilibrada”. Como tem se dado essa discussão? Desde quando ela tem sido feita?
Eduardo Fagnani – Não saberia dizer o estágio de negociações entre governo e as Centrais sindicais. Mas propostas deste tipo têm sido recorrentemente colocadas em pauta pelas forças do mercado. Isso ocorreu, por exemplo, em 2007 no âmbito do Fórum Nacional da Previdência Social, e foram rechaçadas pelas Centrais Sindicais. Depois disso a economia cresceu, as contas da previdência melhoraram e o tema saiu da pauta. O ajuste fiscal ortodoxo em curso certamente recolocou o tema na ordem do dia.
IHU On-Line – Ainda sobre esse assunto, o Ministro informou que em 2014 o governo gastou R$ 94,8 bilhões com pensões por morte e esse dinheiro todo foi para 7,4 milhões de pensionistas, e com o auxílio-doença foram gastos R$ 25,6 bilhões para 1,7 milhão de beneficiados. Ele alega que o governo tem gasto uma fortuna com isso. O que precisa ser feito em relação a esses benefícios?
Eduardo Fagnani – Pessoalmente, não sou contrário à realização de mudanças para corrigir algumas distorções no sistema de pensões por morte. No caso do auxílio-doença, o maior problema parece relacionado ao represamento da concessão do benefício, além da reduzida participação do setor privado no seu financiamento.
O enfrentamento dessas questões deveria ter sido proposto pelo governo pela via do diálogo com o movimento social. Poderia ter proposto, por exemplo, um fórum para debater esses temas, como ocorreu em 2007. O problema foi a forma (sem qualquer negociação prévia com as centrais sindicais), o momento (imediatamente após a vitória eleitoral) e o conteúdo (na direção oposta do que foi prometido na campanha) das medidas provisórias. Essa conjugação de fatores acirrou desnecessariamente as tensões com o movimento sindical, uma das principais bases de apoio do governo democraticamente eleito.
Na ausência da busca de diálogo para o consenso prévio, joga-se a decisão para o Congresso Nacional ainda mais conservador e fisiológico. O resultado desse embate poderá ser dramático para a proteção social brasileira.
IHU On-Line – O ministro também fala na necessidade de manter a previdência equilibrada. O que isso significa?
Eduardo Fagnani – Na década passada, a questão do crescimento voltou a ser espaço na agenda nacional e a forte recuperação do mercado de trabalho potencializou a arrecadação previdenciária. O segmento urbano voltou a ser superavitário, fato que não ocorria desde 1996. A realidade derrubou o mito de que a expansão dos benefícios e a recuperação real dos seus valores (decorrentes da agressiva política de valorização do salário mínimo) “quebraria” a Previdência.
A experiência recente demonstra que o equilíbrio financeiro da previdência depende, fundamentalmente, do crescimento da economia (fator exógeno). Não se sustenta o mito de que esse equilíbrio depende tão somente do corte de despesas (fator endógeno), o que não signifique que ajustes pontuais devam ser realizados.
A recente adoção de uma estratégia ortodoxa de ajuste macroeconômico poderá conduzir o país para a recessão, com reflexos negativos sobre o mercado de trabalho e sobre as receitas governamentais. A elevação das taxas de juros ampliará o endividamento e as necessidades de superávit primário. Esse cenário aponta para graves desequilíbrios financeiros nas contas da previdência. Esta será a senha para novas rodadas de reformas para suprimir direitos. Já vivemos isso nos anos 1990.
IHU On-Line – O ministro diz que muitas forças políticas sugerem uma “grande reforma da Previdência”, mas ele é contrário. É preciso ou não uma reforma? Por que e em que consistiria?
Eduardo Fagnani – Propor uma “grande reforma da Previdência” é um despautério sem limites. Essa “grande reforma” já foi feita por FHC nos anos 1990 (EC 20/1998). Como mencionado, no caso da “aposentadoria por idade”, conseguiu-se transpor para o Brasil padrões semelhantes ou superiores aos existentes em países desenvolvidos. A exigência de 65/60 anos não era adotada sequer em países como Bélgica, Alemanha, Canadá, Espanha, França e Portugal, por exemplo. A própria Organização Mundial de Saúde (FIBGE, 2002:9) estabelece clara diferença entre a população idosa nos países desenvolvidos (acima de 65 anos) e nos países em desenvolvimento (acima de 60 anos). No caso da “aposentadoria por tempo de contribuição”, além do injusto Fator Previdenciário, passou-se a exigir a comprovação de 35 anos para os homens e de 30 anos para as mulheres. Esse patamar era semelhante ou superior ao adotado nos países escandinavos, por exemplo.
A vigência dessas regras mostra-se paradoxal, se consideramos que não há como demarcar qualquer equivalência entre esses países e o nosso contexto socioeconômico e demográfico de capitalismo tardio. Há um enorme hiato que nos distancia dos países desenvolvidos no tocante ao PIB per capita, à concentração da renda, à desigualdade social e à expectativa de vida.
O que eles querem fazer? Elevar a idade de aposentadoria para 70 anos? Querem que o brasileiro contribua para a previdência por mais de 40 anos? Estamos perto da liderança do campeonato mundial de concentração da renda. Também seremos campeões mundiais em regras de acesso à aposentadoria?
IHU On-Line – Quais são os principais problemas da previdência hoje? Que pontos deveriam entrar em discussão?
Eduardo Fagnani – O principal problema da previdência social hoje são os impactos que o ajuste macroeconômico ortodoxo terá sobre a perda de receitas e o consequente desequilíbrio nas contas previdenciárias. Este ponto é crucial.
Outro tema central, na perspectiva progressista, é cumprir a Constituição da República de 1988. O poder público jamais organizou a Seguridade Social como rezam os artigos 165, 194, 195 e 59 (este último, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). O Executivo jamais apresentou e executou o Orçamento da Seguridade Social rigorosamente como reza o artigo 195. O Executivo jamais instituiu o Conselho Nacional da Seguridade Social, mecanismo de controle social previsto no art. 194.
Em função desses fatos, desde 1989 o MPAS não considera a previdência como parte da Seguridade Social, resultando no mito do “déficit” da previdência, pois não tem amparo constitucional. A preservação das fontes de financiamento da Previdência Social também requer o fim da Desvinculação das Receitas da União – DRU, criada em 1994 e renovada continuamente. Estudos da Anfip demonstram que, em 2012, a DRU retirou da Seguridade Social R$ 52,6 bilhões. O acumulado, apenas para o período 2005/2012, totaliza mais de R$ 286 bilhões.
Também será preciso revisar a política de desonerações fiscais para setores econômicos selecionados. Caso isso não seja feito, a sustentabilidade da Seguridade Social, principal pilar do sistema de proteção social brasileira, será comprometida no médio prazo.
IHU On-Line – O senhor tem afirmado que nas últimas décadas o campo progressista deixou de tratar dos grandes temas nacionais relacionados ao enfrentamento do subdesenvolvimento político, econômico e social do país. Acerca dessas questões, quais temas centrais ficaram fora da agenda?
Eduardo Fagnani – O desafio para o campo progressista é enfrentar a crônica desigualdade social, cujas marcas profundas não foram apagadas pelo progresso recente. Ainda vivemos graves níveis de concentração de renda e de riqueza, miséria, injustiça fiscal, problemas estruturais no mercado de trabalho e acesso precário aos bens e serviços sociais básicos.
A universalização da cidadania social depende da realização de uma série de mudanças estruturais.
O financiamento das políticas universais depende de reforma tributária que promova a justiça fiscal, taxando-se o lucro e o patrimônio, e não o consumo. Também requer a revisão do pacto federativo, o enfrentamento dos processos de mercantilização e privatização da oferta de serviços e o fortalecimento da gestão estatal, enfraquecida pelo avanço de diversos mecanismos de gestão privada que cria duplicidades, fragmentação e dificuldades para assegurar um padrão de eficiência.
Não existem perspectivas favoráveis para a superação desses problemas sem o resgate da política e da democracia. Nesta perspectiva a reforma política é a mais importante das reformas.
Também não existem perspectivas favoráveis para a superação desses problemas sem o reforço do papel do Estado, o que é fundamental para a democracia e para o desenvolvimento.
Da mesma forma, crescimento econômico baseado na indústria de transformação é condição necessária para a inclusão social e a redistribuição da renda. No entanto, os pressupostos teóricos que dão substrato ao tripé macroeconômico (câmbio flutuante, superávit fiscal e metas de inflação) não convergem para esse objetivo. O aprofundamento da gestão ortodoxa do tripé interdita, em grande medida, o enfrentamento desta agenda.
IHU On-Line – Quais são as razões da fragmentação da luta política em torno de pautas setoriais específicas e por que elas têm prevalecido ante o debate de temas estruturais?
Eduardo Fagnani – De fato, nas últimas décadas o campo progressista deixou de tratar dos grandes temas nacionais relacionados ao enfrentamento do subdesenvolvimento político, econômico e social do país. A fragmentação da luta política em torno de pautas setoriais específicas tem prevalecido ante o debate de temas estruturais. Partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e universidade parecem viver enredados e prisioneiros de seus próprios labirintos.
Este fato está relacionado à crise da democracia liberal representativa no contexto da concorrência capitalista sob a hegemonia do capital financeiro e do pensamento neoliberal. Existe clara assimetria na representação política, em favor dos interesses do poder econômico. A esfera pública foi esvaziada ante os valores do individualismo e da meritocracia. Os Estados Nacionais foram enfraquecidos e perderam a capacidade de coordenar projetos de transformação. No caso brasileiro, também é preciso levar em conta a “secular capacidade das elites, para preservarem o status quo social”, como ressaltada por Celso Furtado.
Esse quadro mais geral tem influenciado a ação dos movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos do campo progressista. O papel que se espera dos partidos políticos progressistas como instituições articuladoras das demandas da sociedade numa perspectiva de transformação foi esvaziado nas últimas décadas. Os partidos e o sistema político como um todo estão submetidos à mercantilização do voto, tornando-se dependentes das bancadas particularistas de toda espécie. Infelizmente não temos unidade da esquerda no Brasil. E as possibilidades disso ocorrer são cada vez mais remotas.
IHU On-Line – Em artigo recente o senhor assinala que o atual “momento requer que se questionem as desonerações fiscais que estão corroendo as bases de financiamento da Previdência, Saúde, Assistência Social e do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. É hora de pressionar por mudanças na contabilização inconstitucional praticada pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) desde 1989, que não considera a previdência como parte da Seguridade Social e que não contabiliza as renúncias fiscais como fonte de receitas da Previdência Social”. Pode desenvolver essa ideia? O que sugere?
Eduardo Fagnani – A questão de fundo que deve ser enfrentada na perspectiva da agenda de desenvolvimento diz respeito ao fato de que as elites políticas e econômicas do país jamais aceitaram os avanços na Seguridade Social obtidos na Constituição de 1988, mesmo quando se trata apenas de garantir direitos sociais básicos para a construção de uma sociedade democrática e justa. Pressionados por esses atores, desde 1989 os Poderes Executivo e Legislativo optaram por não implantar dispositivos constitucionais pétreos relativos à Seguridade Social (organização, financiamento e controle social).
Essa recorrente recusa em não reconhecer o que reza a Constituição Federal alimenta continuamente a campanha para “demonizar” a previdência social. Um dos mecanismos utilizados nesse sentido é a difusão do mito que existe “déficit” sempre que a contribuição dos empregados e empregadores para a previdência social urbana for insuficiente para bancar os gastos com o INSS Urbano e o INSS Rural. O suposto “rombo” decorre da Previdência Rural, um benefício típico da Seguridade Social que, pelo texto constitucional, deve ser financiado pelas demais fontes de recursos que integram o Orçamento da Seguridade Social (artigo 195). Portanto, essa leitura desconsidera que a previdência é parte da Seguridade Social.
Esse mito é alimentado por setores do mercado e, paradoxalmente, pela forma como os dados da Previdência Social têm sido contabilizados pelos órgãos do governo federal (MPAS, MPOG, MF e BC) desde 1989. Estudos da ANFIP demonstram que o Orçamento da Seguridade Social sempre foi superavitário. Em 2012, por exemplo, ela apresentou saldo positivo de R$ 78,1 bilhões. Portanto sobram recursos que são desviados para finalidades não previstas pela Constituição.
Superávit da Seguridade Social
O superávit da Seguridade Social tem sido obtido mesmo com a vigência da DRU e da política de desonerações fiscais para setores econômicos selecionados, adotada nos anos 1990 e revigorada na década seguinte. Segundo a ANFIP, em 2012, as isenções tributárias concedidas sobre as fontes da Seguridade Social (CSLL, PIS/PASEP, COFINS e Folha de Pagamento) totalizaram R$ 77 bilhões (1,7% do PIB). A previsão para 2014 é que elas atinjam R$ 123,2 bilhões (2,7% do PIB).
Essa política de desoneração foi intensificada a partir de 2011. O governo editou diversas medidas que desoneram a contribuição patronal de 20% sobre a folha de salários para a Previdência Social. Atualmente a desoneração da folha atinge mais de 60 setores. Para 2014, estima-se que essas renúncias atinjam R$ 25 bilhões.
O problema é que as renúncias concedidas pela a área econômica não são compensadas contabilmente pelo MPAS. Ao lançar a política de desoneração da contribuição patronal em 2011, o Ministro da Fazenda afirmou que “a União compensará qualquer perda de arrecadação previdenciária com recursos do Tesouro”. Todavia, isso não tem ocorrido na prática. Nesse sentido, propõe-se a promulgação de legislação específica que inclua a rubrica “transferências da União para compensação de renúncias previdenciárias” como fonte de receita da Previdência Social. O ponto de partida é recuperar a iniciativa impulsionada pelo próprio MPAS em 2007, que reconhecia a referida manipulação contábil e pretendia alterar a legislação mudando as regras de contabilidade das renúncias previdenciárias no sentido aqui proposto. Na época, essa orientação contava com o apoio das centrais sindicais. Mas esse debate foi abandonado, enquanto a política de isenções foi reforçada.
IHU On-Line – O senhor está entre aqueles que evidenciam uma virada neoliberal no segundo governo Dilma ou entre aqueles que veem uma continuidade do primeiro mandato? O que o segundo mandato sinaliza nesse sentido e como se difere do primeiro?
Eduardo Fagnani – O que de fato existe é um reforço do ajuste macroeconômico ortodoxo, o que distancia a presidente da República das promessas da campanha e a aproxima das promessas da oposição, assentadas no aprofundamento da gestão ortodoxa do “tripé” macroeconômico. Em parte, esse recuo está relacionado ao preocupante agravamento do cenário político-institucional, percebido pelo conservadorismo da composição do Congresso Nacional, pelas consequências imprevisíveis do escândalo da Petrobras e pela irresponsável campanha golpista orquestrada pela oposição. De toda forma, as perspectivas são sombrias, pois o reforço da ortodoxia interdita a agenda de transformações necessárias para a superação do nosso subdesenvolvimento político, econômico, social e cultural.
IHU On-Line – Quais tendem a ser os impactos e os reflexos da austeridade econômica na área social?
Eduardo Fagnani – Num cenário internacional adverso, a ortodoxia tende a levar o país para a recessão. A continuidade do ciclo de aumento da taxa de juros agravará o endividamento, exigindo mais superávit primário para pagar parte dos juros. Esse “enxugamento de gelo” restringirá o gasto social, o investimento e o papel dos bancos públicos no financiamento da infraestrutura.
O mercado de trabalho já dá os primeiros sinais de desaceleração em 2015 (redução de 86 mil postos de trabalho e aumento da taxa de desemprego). Essa tendência tenderá a se agravar nos próximos meses. Corre-se o risco de retrocesso da inclusão obtida nos últimos anos (movimento já observado desde 2013). O endividamento das famílias será ampliado e colocará dificuldades para as camadas sociais despolitizadas recém-incorporadas ao consumo manterem esse status.
A ortodoxia econômica interdita a agenda de transformações que o país necessita para superar o seu subdesenvolvimento. Políticas de “austeridade” abrem um ciclo perverso de desfinanciamento do Estado, o que exige novos cortes nos gastos públicos e agravamento da recessão. O exemplo da Europa é emblemático.
O aprofundamento da gestão ortodoxa do tripé econômico caminha na direção oposta até mesmo da visão de instituições que representam o establishment da ordem ideológica, econômica e política globais. A autocrítica dos erros da ortodoxia foi recentemente exposta pelo economista-chefe do Fundo Monetário Internacional – FMI. A ficha caiu até para o editor econômico do “Financial Times”. Para Martin Wolf “esse é um modelo maravilhoso para banqueiros. Mas, e para o resto do mundo?”, pergunta. Joseph Stiglitz afirma que o grande problema em 2015 não é econômico. “O problema são nossas políticas estúpidas”, sentencia. No Brasil, a gestão do “tripé” macroeconômico tornou-se ideia fixa. Qualquer visão crítica é considerada herética.
IHU On-Line – Que medidas deveriam ter sido implantadas nos últimos 12 anos para que as mudanças sociais fossem sustentáveis? Onde o governo errou?
Eduardo Fagnani – A partir de 2006, o projeto “social-desenvolvimentista”, formulado antes da eleição de 2002, foi parcialmente resgatado. Impulsionado pelo comércio internacional favorável, o crescimento voltou a ser contemplado na agenda. O governo optou por políticas fiscais e monetárias menos restritivas. A economia voltou a crescer e teve repercussões positivas sobre mercado de trabalho, transferências de renda da Seguridade Social e gasto social. Essa melhor articulação das políticas econômicas e sociais contribuiu para a melhora dos indicadores de distribuição da renda do trabalho, mobilidade social, consumo das famílias e redução da miséria extrema.
Não obstante, um conjunto de problemas estruturais não foi enfrentado. Em grande medida, como aponta André Singer, esse fato decorre do “modelo de transformação lenta e dentro da ordem” que tem pautado a atuação dos governos do Partido dos Trabalhadores. Essa opção pelo “gradualismo extremo” explica, em grande medida, o fato de que muitos retrocessos nos direitos sociais, implantados nos anos 1990, não tenham sido enfrentados nesta quadra.
Reformismo fraco
Neste sentido, destaca-se, por exemplo, que, apesar de breves impulsos de afastamento, manteve-se a gestão macroeconômica por meio do ortodoxo “tripé” (meta de inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante) introduzido em 1999 por FHC. Também se destaca a ambiguidade com relação ao processo de desregulamentação dos direitos trabalhistas e sindicais, tendência predominante desde os anos 1990. O “reformismo fraco” também se revela no esvaziamento da proposta de Reforma Agrária “estrutural e massiva” elaborada em 2001 por um grupo de especialistas do partido. A grave questão da injustiça fiscal também não foi enfrentada nesta quadra. A consolidação da Seguridade Social de acordo com os princípios estabelecidos pela Constituição também não foi objeto dos governos petistas. Da mesma forma, também não foi revertida a recorrente captura das fontes de financiamento da Seguridade Social. A forma inconstitucional de contabilização dos dados da Previdência Social permaneceu inalterada. A Desvinculação das Receitas da União – DRU foi mantida – exceto para o setor da educação.
Os governos petistas aprofundaram a política de concessão de isenções fiscais para setores econômicos selecionados que vinha sendo praticada desde 1990, restringindo as receitas do governo, comprometendo o superávit primário e a expansão do gasto social. O esvaziamento do pacto federativo observado nos anos 1990 também não foi enfrentado. A mercantilização da oferta de serviços sociais foi mantida e incentivada em diversas frentes da política social.
Esses são alguns exemplos emblemáticos do não enfrentamento – e, em alguns casos, do aprofundamento – dos diversos mecanismos adotados nos anos 1990 que tinham por finalidade impor contramarchas à cidadania social consagrada pela Constituição da República.
No campo econômico, também se destaca a errática política econômica adotada: forte ajuste (2011); tentativa de retomar o crescimento com a adoção de política monetária menos restritiva (2012); recuo em função do “terrorismo econômico” difundido pelo mercado, visando às eleições presidenciais (2013 e 2014).
Apesar de tudo, os fundamentos macroeconômicos do Brasil são relativamente mais confortáveis do que foi observado nos países desenvolvidos e da América Latina. Era necessário corrigir os erros do passado? Sim. Mas, a terapia não exige remédios tão amargos que, dependendo da dose, poderão matar o paciente.
IHU On-Line – Quais alternativas existem para se atingir a meta do superávit primário sem cortar gasto social?
Eduardo Fagnani – A primeira é o crescimento que tem efeitos positivos na arrecadação governamental. Em contextos de crise são necessárias políticas anticíclicas. O que está sendo feito caminha na direção contrária: políticas pró-cíclicas que irão aprofundar a recessão. Superávit primário se faz quando a economia cresce.
A segunda é enfrentar o conflito de classes entre capital e trabalho na estrutura imposta. A dita “austeridade” é seletiva. Ela não atinge os detentores da riqueza. Quem paga o pato são os trabalhadores. A ampliação das receitas do governo poderia vir da revisão seletiva da política de isenções fiscais para setores econômicos, iniciada na década de 1990 e reforçada posteriormente. Estima-se que, em 2014, essas renúncias totalizarão R$ 193 bilhões (4,5% do PIB); somente as renúncias sobre a contribuição patronal para a previdência devem atingir R$ 25 bilhões. O equilíbrio orçamentário também pode vir da Reforma tributária.
Não basta taxar as grandes fortunas. Será preciso revisar o sistema tributário, cujos núcleos vigoram desde meados da década de 1960. Os tributos indiretos (incidentes sobre consumo), que atingem proporcionalmente os mais pobres, representaram 49,2% da arrecadação tributária total. Os tributos diretos, que incidem sobre a renda e o patrimônio, corresponderam a 19,0% e 3,7% da arrecadação, respectivamente. Nos países-membros da OCDE, o peso da tributação direta representa 33% da arrecadação total.
É verdade que não existe correlação política favorável para se enfrentar estes temas. A mudança desse quadro exige uma nova postura da esquerda no sentido da unificação da luta política em torno de um projeto nacional de transformação social. Também exige a mudança da postura do governo no sentido de disputar a hegemonia em torno dessas ideias. Ele precisa sair das cordas, superar a inação e travar a batalha pelo desenvolvimento. Isso passa pela questão da comunicação.
Não dá para entender o masoquismo oficial em transferir fortunas para a grande imprensa impulsionar o golpe institucional. Por que a meta do “superávit” primário não atinge essas verbas bilionárias? O que ocorreria se, em nome da “austeridade” fiscal, fosse decidido um corte linear de 50% nas verbas da propaganda oficial?
* – Eduardo Fagnani é Economista e professor do IE-Unicamp e coordenador da rede Plataforma Política Social.
Por Plataforma Política Social
| em Carta Maior
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