O paternalismo institucional de
sabor monárquico com que o actual Presidente da República entende as suas
funções estende-se muito para lá da acção governativa. Através de uma
omnipresença sufocante nas televisões e nos jornais, retira ao governo, ao Parlamento
e, até, aos tribunais a oportunidade de as acções destes outros órgãos de
soberania serem assimiladas, analisadas e avaliadas, serenamente, pela opinião
pública.
O Presidente da República,
Marcelo Rebelo de Sousa, é mesmo a figura do ano em Portugal? Se concordar com
os pressupostos dos inúmeros comentários que li, ouvi e vi nestas últimas
semanas, através de enésimos e rotineiros balanços do ano, tenho a obrigação de
achar que sim.
O problema é que não concordo com
esses pressupostos e, se a sufocante e suposta unanimidade nacional sobre o
tema me der, democraticamente, licença e oportunidade para opinar de forma
divergente vou tentar, humildemente, explicar porquê, pedindo antecipadamente
desculpa pela impertinência e admitindo modestamente que mereço toda a carga de
pancada que vou levar dos leitores, quando este artigo for partilhado no
Facebook.
Aproveito-me, por isso, da boa
vontade que assola os espíritos na quadra natalícia para passar a criticar o
comportamento político do senhor Presidente da República.
Não acredito nos efeitos
positivos da intervenção pública permanente, a propósito de qualquer assunto,
do homem que trabalha a partir do Palácio de Belém.
Não discuto a inteligência, o bom
senso, a capacidade de comunicação nem a sensibilidade humana, política,
cultural, patriótica e social que o cidadão encarnado em Presidente Marcelo
Rebelo de Sousa possui (e bem falta fazem essas qualidades pessoais noutros
atores políticos) mas a transposição dessas características do indivíduo para a
instituição Presidência da República, através de uma omnipresença sufocante nas
televisões e nos jornais, retira ao governo, ao Parlamento e, até, aos
tribunais a oportunidade de as ações destes outros órgãos de soberania serem
assimiladas, analisadas e avaliadas, serenamente, pela opinião pública.
Com o supersónico Marcelo Rebelo
de Sousa na presidência o governo despersonaliza-se. Se hoje em dia António
Costa toma uma medida, seja ela qual for, das duas, uma: ou cedeu à pressão do
Presidente da República, que anteriormente já defendera uma solução semelhante,
ou, pelo contrário, afronta o Presidente da República, que se manifestara
crítico de tal ideia e, por isso, reprovara antecipadamente o ato político do
executivo, que, por sua vez, ao contrariá-lo, parece tentar um ato de pura
provocação política ao popular, querido e afetivo mais alto magistrado da
nação.
Se, excecionalmente, Marcelo
Rebelo de Sousa não opinara antes sobre alguma matéria que o governo acabaria
por regulamentar depois, então o Presidente da República não tardará a fazer a
sua apreciação de minuto e meio para os microfones das TV, no intervalo de uma
visita a um asilo de velhinhos, normalmente apadrinhando a ideia mas, por
vezes, tecendo algumas críticas. Seja como for, a medida governamental, para
grande parte dos portugueses, passa a ser vista não pelos pressupostos
políticos que a determinaram mas pelo enquadramento, pelas limitações, pela
visão e pelos comentários de Marcelo. Isto é manietar a vida política.
Este paternalismo institucional
de sabor monárquico com que o atual Presidente da República entende as suas
funções estende-se, como já sublinhei, muito para lá da ação governativa.
Lembro-me, por exemplo, de Marcelo ir visitar (e muito bem) zonas atingidas
pelos incêndios, decidindo criticar os deputados por não irem “ter com as
populações”.
Na verdade, vários deputados de
topo de vários partidos já tinham feito ou estavam a fazer essas visitas mas,
como o foco mediático sobre o Presidente é muito maior do que aquele que incide
sobre os deputados, a mensagem que passou para os portugueses foi a de que os
partidos políticos eram insensíveis à tragédia humana deste verão ou só agiram
depois de levarem um “ralhete” público do Presidente. O prestígio do Parlamento
foi gratuitamente atacado pelo Presidente.
E nem os tribunais escapam.
Quando o Presidente da República decidiu sugerir uma hipotética falha
constitucional quando questionado sobre o polémico e estúpido argumentário de
uma decisão do Tribunal da Relação do Porto que criticava o comportamento moral
de uma mulher num processo de violência doméstica, colocou-se num papel de
supremo juiz, lá nas nuvens, intocável, a fragilizar ainda mais a justiça
portuguesa e a sua capacidade de, autonomamente, resolver os problemas que tem.
O meu ponto, em suma, é este: uma
coisa é o Presidente da República agir para evitar o colapso da vida pública,
como fez nos primeiros dias após a tragédia de Pedrógão e, depois, nos
incêndios de outubro. Aí esteve muito bem. Outra é agir para perturbar a vida
pública, como ainda neste Natal fez ao visitar a associação Raríssimas,
caucionando-lhe a atividade antes de serem claros muitos detalhes sobre o seu
funcionamento, os subsídios que recebeu, o serviço que prestou e o escândalo
que a abalou.
Sim, é verdade que muitas vezes
governo, Parlamento e tribunais se colocam a jeito e dão enormes tiros no pé
mas, com Marcelo desabrido, como aconteceu ao longo deste ano, na opinião
pública prevalece a ideia de que nem o governo governa, nem o Parlamento é
útil, nem os tribunais fazem justiça e, por isso, parece que todos os órgãos de
soberania, tirando a Presidência da República, são inúteis. Isto, para mim, é
suficiente, apesar de gostar da persona Marcelo Rebelo de Sousa, para achar que
ele não é o político do ano e, até, que pode vir a ser pernicioso para o país.
Esperemos que não.
*Publicado no DN, 26.12.2017
*O Diário.info
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