terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Portugal | MARCELO NÃO É A PERSONALIDADE DO ANO


O paternalismo institucional de sabor monárquico com que o actual Presidente da República entende as suas funções estende-se muito para lá da acção governativa. Através de uma omnipresença sufocante nas televisões e nos jornais, retira ao governo, ao Parlamento e, até, aos tribunais a oportunidade de as acções destes outros órgãos de soberania serem assimiladas, analisadas e avaliadas, serenamente, pela opinião pública.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, é mesmo a figura do ano em Portugal? Se concordar com os pressupostos dos inúmeros comentários que li, ouvi e vi nestas últimas semanas, através de enésimos e rotineiros balanços do ano, tenho a obrigação de achar que sim.

O problema é que não concordo com esses pressupostos e, se a sufocante e suposta unanimidade nacional sobre o tema me der, democraticamente, licença e oportunidade para opinar de forma divergente vou tentar, humildemente, explicar porquê, pedindo antecipadamente desculpa pela impertinência e admitindo modestamente que mereço toda a carga de pancada que vou levar dos leitores, quando este artigo for partilhado no Facebook.

Aproveito-me, por isso, da boa vontade que assola os espíritos na quadra natalícia para passar a criticar o comportamento político do senhor Presidente da República.
Não acredito nos efeitos positivos da intervenção pública permanente, a propósito de qualquer assunto, do homem que trabalha a partir do Palácio de Belém.

Não discuto a inteligência, o bom senso, a capacidade de comunicação nem a sensibilidade humana, política, cultural, patriótica e social que o cidadão encarnado em Presidente Marcelo Rebelo de Sousa possui (e bem falta fazem essas qualidades pessoais noutros atores políticos) mas a transposição dessas características do indivíduo para a instituição Presidência da República, através de uma omnipresença sufocante nas televisões e nos jornais, retira ao governo, ao Parlamento e, até, aos tribunais a oportunidade de as ações destes outros órgãos de soberania serem assimiladas, analisadas e avaliadas, serenamente, pela opinião pública.

Com o supersónico Marcelo Rebelo de Sousa na presidência o governo despersonaliza-se. Se hoje em dia António Costa toma uma medida, seja ela qual for, das duas, uma: ou cedeu à pressão do Presidente da República, que anteriormente já defendera uma solução semelhante, ou, pelo contrário, afronta o Presidente da República, que se manifestara crítico de tal ideia e, por isso, reprovara antecipadamente o ato político do executivo, que, por sua vez, ao contrariá-lo, parece tentar um ato de pura provocação política ao popular, querido e afetivo mais alto magistrado da nação.

Se, excecionalmente, Marcelo Rebelo de Sousa não opinara antes sobre alguma matéria que o governo acabaria por regulamentar depois, então o Presidente da República não tardará a fazer a sua apreciação de minuto e meio para os microfones das TV, no intervalo de uma visita a um asilo de velhinhos, normalmente apadrinhando a ideia mas, por vezes, tecendo algumas críticas. Seja como for, a medida governamental, para grande parte dos portugueses, passa a ser vista não pelos pressupostos políticos que a determinaram mas pelo enquadramento, pelas limitações, pela visão e pelos comentários de Marcelo. Isto é manietar a vida política.

Este paternalismo institucional de sabor monárquico com que o atual Presidente da República entende as suas funções estende-se, como já sublinhei, muito para lá da ação governativa. Lembro-me, por exemplo, de Marcelo ir visitar (e muito bem) zonas atingidas pelos incêndios, decidindo criticar os deputados por não irem “ter com as populações”.

Na verdade, vários deputados de topo de vários partidos já tinham feito ou estavam a fazer essas visitas mas, como o foco mediático sobre o Presidente é muito maior do que aquele que incide sobre os deputados, a mensagem que passou para os portugueses foi a de que os partidos políticos eram insensíveis à tragédia humana deste verão ou só agiram depois de levarem um “ralhete” público do Presidente. O prestígio do Parlamento foi gratuitamente atacado pelo Presidente.

E nem os tribunais escapam. Quando o Presidente da República decidiu sugerir uma hipotética falha constitucional quando questionado sobre o polémico e estúpido argumentário de uma decisão do Tribunal da Relação do Porto que criticava o comportamento moral de uma mulher num processo de violência doméstica, colocou-se num papel de supremo juiz, lá nas nuvens, intocável, a fragilizar ainda mais a justiça portuguesa e a sua capacidade de, autonomamente, resolver os problemas que tem.

O meu ponto, em suma, é este: uma coisa é o Presidente da República agir para evitar o colapso da vida pública, como fez nos primeiros dias após a tragédia de Pedrógão e, depois, nos incêndios de outubro. Aí esteve muito bem. Outra é agir para perturbar a vida pública, como ainda neste Natal fez ao visitar a associação Raríssimas, caucionando-lhe a atividade antes de serem claros muitos detalhes sobre o seu funcionamento, os subsídios que recebeu, o serviço que prestou e o escândalo que a abalou.

Sim, é verdade que muitas vezes governo, Parlamento e tribunais se colocam a jeito e dão enormes tiros no pé mas, com Marcelo desabrido, como aconteceu ao longo deste ano, na opinião pública prevalece a ideia de que nem o governo governa, nem o Parlamento é útil, nem os tribunais fazem justiça e, por isso, parece que todos os órgãos de soberania, tirando a Presidência da República, são inúteis. Isto, para mim, é suficiente, apesar de gostar da persona Marcelo Rebelo de Sousa, para achar que ele não é o político do ano e, até, que pode vir a ser pernicioso para o país. Esperemos que não.

*Publicado no DN, 26.12.2017

*O Diário.info

Gostaste do que leste?

Divulga o endereço deste texto e o de odiario.info entre os teus amigos e conhecidos

Sem comentários:

Mais lidas da semana