segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A «Entente cordial» Franco-britânica


Thierry Meyssan*

Tendo passado despercebido no Ocidente, o relançamento do Tratado de Lancaster House por Londres e Paris instaura uma super «Entente cordial», bem mais profunda que a de 1904. Ela situa-se dentro do restabelecimento de um mundo bipolar e provocará inevitavelmente a saída da França da União Europeia, e o retorno das tensões entre Paris e Berlim.

Em 2010, David Cameron e Nicolas Sarkozy decidiram juntar as forças de projecção do Reino Unido e da França [1]. Por «força de projecção», deve entender-se as antigas tropas coloniais. O Tratado de Lancaster House era composto por vários anexos, dos quais um previa um gigantesco exercício conjunto, Southern Mistral. Constatou-se, alguns meses mais tarde, que o exercício se transformou numa verdadeira mobilização das mesmas unidades, e na mesma data, para uma guerra real contra a Líbia, com o nome de código de Operação Harmattan(tradução literal de Southern Mistral) [2].

À época, a iniciativa franco-britânica foi orientada por Washington sob o princípio de aplicação da estratégia de «liderança nos bastidores». As tropas dos dois países apareciam no palco principal, enquanto nos bastidores Washington lhes indicava missões precisas.

O Tratado de Lancaster House visava criar um quadro legal para intervenções como aquela (a acontecer) contra a Líbia, e para fundir as forças por uma preocupação de economia e de eficiência. Tal escolha implica uma verdadeira revolução: uma política externa comum.

No entanto, o impulso insuflado pelo Tratado e pela expedição contra a Líbia dissipa-se progressivamente com a inquietação da opinião pública, e de diplomatas britânicos, que se seguiu à Resistência iraquiana à ocupação anglo-saxónica [3]. Assim, a partir de 2004, o Reino Unido começou a preparar uma nova «revolta árabe», tal como em 1915, com o nome de «primavera árabe» [4], mas depois recusou bombardear Damasco.

Actualmente, Londres está em vias de reorganizar a sua Defesa no seguimento do Brexit, devido à recusa de Donald Trump em continuar a manipular o terrorismo islâmico, e à implantação russa na Síria.

Primeiro, Londres assinou acordos bilaterais com a Dinamarca, os Países Baixos, a Noruega e os Estados bálticos, estabelecendo o quadro para eventuais acções comuns posteriores. Depois, começou a reorganizar as redes jiadistas do Médio-Oriente em torno da Turquia e do Catar. Ela promoveu a reaproximação militar da Turquia, da Somália, do Sudão e do Chade. Por fim, apoiando-se no Tratado de Lancaster House, coloca em marcha hoje em dia uma grande «Entente cordial» com a França.

Se o Tratado negociado por David Cameron e Nicolas Sarkozy podia parecer não ser mais que uma oportunidade para fazer a guerra à Líbia, o relançamento deste Tratado por Theresa May e Emmanuel Macron é o fruto de uma escolha pensada a longo prazo [5]. Esta nova etapa foi negociada pelo mentor do Presidente Macron, Jean-Pierre Jouyet, o novo embaixador da França em Londres.

Londres e Paris têm ambos assento, como membros efectivos, no Conselho de Segurança da ONU. Dispõem da arma nuclear. Em conjunto, têm um orçamento militar 30% superior ao da Rússia (mas inferior ao dos Estados Unidos e da China).

Paris, ao escolher privilegiar a sua aliança militar com Londres, afasta-se de Berlim, a qual prepara o seu rearmamento e deseja tomar a liderança dos outros exércitos europeus [6]. Se este processo continuar, Paris, por seu lado, deverá sair da União Europeia da qual Berlim assume, de facto, já a liderança.

As declarações de Emmanuel Macron, e a criação por Theresa May de uma unidade militar contra as «mentiras» russas [7], anunciam o retorno de um mundo bipolar e a censura das informações provenientes de Moscovo. O abandono do casamento franco-alemão, por uma Entente franco-britânica, anuncia, quanto a si, o retorno das tão temidas tensões entre Paris e Berlim.

Thierry Meyssan* | Tradução Alva | Fonte Al-Watan (Síria)

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “Treaty between the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and the French Republic for Defence and Security Co-operation” («Tratado de Cooperação para Defesa e Segurança entre o Reino Unido e Irlanda do Norte e a França»- ndT), Voltaire Network, 2 November 2010.
[2] « Washington regarde se lever "l’aube de l’odyssée" africaine », par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 19 mars 2011.
[3] “Letter of the 52 Diplomats to Tony Blair” («Carta de 52 Diplomatas a Tony Blair»- ndT), Voltaire Network, 26 April 2004.
[4] When progressives threat with reactionaries. The British State flirtation wih radical Islamism («Quando os progressistas ameaçam com reacionários. O flirt do Estado Britânico com o islamismo radical»- ndT), Martin Bright, Policy Exchange, 2004.
[6] « Pour Berlin, prendre le leadership de l’Otan, ça en vaut la peine», par German Foreign Policy, Traduction Christine Maurel, Réseau Voltaire, 7 septembre 2017.
[7] “O exército britânico dota-se de uma unidade contra a propaganda russa”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 30 de Janeiro de 2018.

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