segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

PORTUGAL | O outro diabo e o trabalho


Pedro Marques Lopes | Diário de Notícias | opinião

1 - O conflito de baixa intensidade entre o governo, a parte do PS que gostava de que o PS fosse outra coisa, o BE e o PCP sobre legislação do trabalho preencheu a semana política. Ou seja, um assunto que mal se viu, esmagado pela extraordinária importância dos humores de Bruno de Carvalho e as humorísticas disputas eclesiásticas sobre as alcovas dos fiéis.

Na melhor das hipóteses, ficou pela enésima vez patente a incapacidade dos partidos que apoiam a solução governativa de se entenderem em questões-chave. Enquanto a devolução de direitos e a restituição de regalias (ambas justas) foram o eixo central da política governamental tudo estava bem, no momento em que é preciso governar, reformar, intervir em questões estruturais, as diferenças inultrapassáveis entre o PS e os seus circunstancialíssimos parceiros vieram à tona. Não é possível misturar azeite e água.

As promessas de amor eterno e os elogios que os socialistas dedicam aos seus parceiros soam cada vez mais a falso. Uma espécie de divórcio que querem que seja a bem, mas em que não estão dispostos a dar um tostão que seja do património que construíram em comum. Continue a situação económica em bom estado, prossiga a redução do desemprego, não exista qualquer convulsão internacional que traga turbulência e o PCP e, sobretudo, o BE vão arrepender-se amargamente de não terem ido para o governo: quer se queira quer não, é o governo que capitaliza o sucesso. BE e PCP estão numa situação em que se não protestam correm o risco de ver os seus eleitores tradicionais incomodados; se protestam arriscam-se a ser vistos pelo eleitorado da esquerda moderada (a grande maioria do eleitorado de esquerda e centro-esquerda) como forças de bloqueio quando os resultados estão a ser bons. É preciso dizer que os bloquistas são os que terão mais problemas. Não só o eleitorado tradicional do PCP é mais fiel, como o BE não tem as fortes raízes dos comunistas no movimento sindical e nas autarquias (mesmo assim, foi o que foi nas últimas eleições autárquicas).

Mantenha-se tudo como está e serão os bloquistas e os comunistas que ficarão a pensar se a vinda do diabo teria sido assim tão má. Mais, os resultados eleitorais trarão maiores problemas para a esquerda do PS do que para o PSD.

2 - Assisto a muitas discussões sobre flexibilidade e rigidez de despedimentos e poucas sobre esta relação com a produtividade.

Há países em que o despedimento individual é praticamente livre e em que a produtividade é elevada e outros em que o despedimento também é livre e a produtividade baixíssima. Como temos países com uma elevada rigidez nos despedimentos que têm elevados índices de produtividade e países com o mesmo tipo de legislação laboral com reduzida produtividade.

Circunscrever a questão da produtividade à facilidade ou dificuldade de despedir ou colocá-la como fator decisivo na criação de riqueza é um erro crasso. Aliás, Portugal é um excelente exemplo disso. Somos um país onde se trabalha muitas horas e a produtividade é baixa, e não foi, nem é, a antiga rigidez ou a recente flexibilidade nos despedimentos que alterou o que quer que fosse. E, no entanto, a legislação laboral é sempre vista como o alfa e o ómega da discussão sobre produtividade e crescimento económico. Não há leis laborais nem maior facilidade em despedir que remedeiem a nossa má organização do trabalho, a deficiente formação da maioria dos nossos empresários e gestores, a falta de investimento, o desprezo pela formação dentro e fora do posto de trabalho.

Numa outra dimensão, é também recorrente uma análise meramente económica sobre o trabalho e o emprego. Aparece amiúde quando se discute o valor do salário mínimo ou mesmo a sua própria existência.

Convém recordar que o salário mínimo e o seu valor têm que ver com o especial papel que a comunidade dá ao trabalho. Algo com origens nos valores mais profundos da civilização judaico-cristã e enunciado, por exemplo, de uma forma veemente pela doutrina social da Igreja. O trabalho define em grande parte o papel e a inserção do cidadão na comunidade. Trabalhar tem de corresponder a uma retribuição que garanta a um homem ou a uma mulher viver com dignidade - ainda estamos longe disso no nosso país. Colocar o trabalho como um simples fator de produção põe o homem com a mesma dignidade de uma máquina ou de um pedaço de terra. Não pode haver argumento económico que se sobreponha ao conteúdo ético do trabalho.

No mesmo sentido, apesar de numa dimensão diferente, ver o trabalho como uma simples transação em que as partes estão em igualdade de circunstâncias não é admissível porque simplesmente não é verdade. A regulamentação - que tem de ter limites para que não torne impossível a organização do trabalho que tem sempre de ser do empresário - de uma relação que será sempre desequilibrada tem de, mais uma vez, proteger a parte mais fraca e impor direitos e deveres não negociáveis.

É verdade que é impossível olhar para o trabalho como se olhava, sequer, há vinte anos. A transformação da maneira como se trabalha, as mudanças que as novas tecnologias provocaram, a globalização, exigem uma reflexão sobre o trabalho e o que a nova realidade implica que em larga medida ainda está por fazer. Mas por muito que esse novo mundo se imponha, retirar o conteúdo ético ao trabalho ou transformá-lo num mero produto nunca pode ser opção.

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