sábado, 24 de março de 2018

BRASIL | Marielle e nós


Isabel Moreira | Expresso | opinião

Não vale a pena despolitizar a morte de Marielle Franco. Há quem esteja entretido com isso, desde logo alguns fascistas brasileiros contentes por se sentarem no colo do golpe de Temer, que pôs em causa a democracia brasileira.

Não vale a pena aprovar o pesar pela morte de Marielle Franco se não se entender que estamos no domínio da política e que não aceitar isso é contribuir para a segunda morte de uma mulher jovem, de esquerda, favelada, eleita democraticamente, negra, negra, negra, feminista e lésbica.

É mesmo inadmissível.

Marielle é mulher e símbolo. Particularmente no Brasil.

Marielle nasceu na favela da maré, o que molda toda a sua vida. "Cria da Maré", dizia de si a mulher que começou a trabalhar aos 11 anos, porque ousou estudar para ter uma voz. É a violência na periferia que a atira para uma luta eterna pelos direitos humanos, uma bala que matou a sua amiga.

O que estudou Marielle? Ciências Sociais. A sua dissertação de mestrado tem este título: “"UPP - A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”.

Em 2016, após uma campanha que pude observar de perto, foi eleita vereadora pela coligação Mudar é possível, formada pelo PSOL e pelo PCP. Com mais de 46 mil votos, foi a segunda mulher mais votada ao cargo de vereadora em todo o país. Na Câmara Municipal, presidiu a Comissão de Defesa da Mulher e integrou uma comissão composta por quatro pessoas, cujo objetivo era monitorar a intervenção federal no Rio de Janeiro. Criticava sem medo a intervenção federal, denunciava constantemente abusos policiais e violações aos direitos humanos.

Era uma voz. Muitas vezes a voz das mulheres e homens da periferia, para os quais a democracia material nunca foi uma realidade.

Dedicou-se à luta contra a violência sobre as mulheres, lutou pelo direito ao aborto e pelo aumento da participação das mulheres na política.

Falava da democracia social, das condições efetivas para a libertação das mulheres, dos pobres, da opressão das mulheres negras, defendia os direitos LGBT, ela própria de casamento marcado com a sua companheira. Falava da importância da visibilidade lésbica, denunciava os crimes de ódio contra a comunidade LGBT, concretamente das mulheres (lesbicídio).

Era uma voz. Sem medo do medo. Em tudo o que fazia, carregava em si a sua condição de favelada, de mulher negra, de mulher lésbica, de pessoa de esquerda, de democrata inconformada.

E a voz denunciava.

Marielle foi profissionalmente executada. É certo que ainda não se concluiu uma investigação que o povo brasileiro exige que seja feita com rigor e com rapidez. É também certo que pobres, negros, negras, gente favelada, pessoas de esquerda que lutam contra o retrocesso social de um país sob as mãos de golpistas sentem que houve mão de quem queria calar a voz de Marielle e, nessa voz, a voz a de todos eles.

Sentem. Porque sabem do saber de dentro de cada pessoa. E sabem que Marielle tinha denunciado a violência policial um dia antes de ser executada.

Já escrevi que Marielle pode ser o símbolo para uma explosão no Brasil. O fim da linha para os golpistas – os tais que estiveram sempre à espreita, descontentes com a democracia – empenhados em destruir o sonho de um Brasil para todos, de um Brasil onde um operário chegou a Presidente e onde uma favelada negra chegou a vereadora.

E nós?

A morte de Marielle foi objeto de um voto de pesar unanime na Assembleia da República. Sabemos, no entanto, que à escala portuguesa, entre o Brasil imerso num golpe e vários países europeus a darem mostras de xenofobia, nacionalismo e de racismo, estamos longe de sermos unânimes na exclamação de que todas e todos são iguais.

Todas e todos. Todas e todos são iguais e têm os mesmos direitos independentemente da sua “raça”, orientação sexual, sexo, etc. O nosso Estado de direito visa a realização económica, social e cultural.

E, no entanto. Tantas “visões”, não é?

Qual é o teu compromisso?

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