Isabel Moreira | Expresso | opinião
Não vale a pena despolitizar a
morte de Marielle Franco. Há quem esteja entretido com isso, desde logo alguns
fascistas brasileiros contentes por se sentarem no colo do golpe de Temer, que
pôs em causa a democracia brasileira.
Não vale a pena aprovar o pesar
pela morte de Marielle Franco se não se entender que estamos no domínio da
política e que não aceitar isso é contribuir para a segunda morte de uma mulher
jovem, de esquerda, favelada, eleita democraticamente, negra, negra, negra,
feminista e lésbica.
É mesmo inadmissível.
Marielle é mulher e símbolo.
Particularmente no Brasil.
Marielle nasceu na favela da
maré, o que molda toda a sua vida. "Cria da Maré", dizia de si a
mulher que começou a trabalhar aos 11 anos, porque ousou estudar para ter uma
voz. É a violência na periferia que a atira para uma luta eterna pelos direitos
humanos, uma bala que matou a sua amiga.
O que estudou Marielle? Ciências
Sociais. A sua dissertação de mestrado tem este título: “"UPP - A redução
da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado
do Rio de Janeiro”.
Em 2016, após uma campanha que
pude observar de perto, foi eleita vereadora pela coligação Mudar é
possível, formada pelo PSOL e pelo PCP. Com mais de 46 mil votos, foi a segunda
mulher mais votada ao cargo de vereadora em todo o país. Na Câmara Municipal,
presidiu a Comissão de Defesa da Mulher e integrou uma comissão composta por
quatro pessoas, cujo objetivo era monitorar a intervenção federal no Rio de
Janeiro. Criticava sem medo a intervenção federal, denunciava constantemente
abusos policiais e violações aos direitos humanos.
Era uma voz. Muitas vezes a voz
das mulheres e homens da periferia, para os quais a democracia material nunca
foi uma realidade.
Dedicou-se à luta contra a
violência sobre as mulheres, lutou pelo direito ao aborto e pelo aumento da
participação das mulheres na política.
Falava da democracia social, das
condições efetivas para a libertação das mulheres, dos pobres, da opressão das
mulheres negras, defendia os direitos LGBT, ela própria de casamento marcado
com a sua companheira. Falava da importância da visibilidade lésbica,
denunciava os crimes de ódio contra a comunidade LGBT, concretamente das
mulheres (lesbicídio).
Era uma voz. Sem medo do medo. Em
tudo o que fazia, carregava em si a sua condição de favelada, de mulher negra,
de mulher lésbica, de pessoa de esquerda, de democrata inconformada.
E a voz denunciava.
Marielle foi profissionalmente
executada. É certo que ainda não se concluiu uma investigação que o povo brasileiro
exige que seja feita com rigor e com rapidez. É também certo que pobres,
negros, negras, gente favelada, pessoas de esquerda que lutam contra o
retrocesso social de um país sob as mãos de golpistas sentem que houve mão de
quem queria calar a voz de Marielle e, nessa voz, a voz a de todos eles.
Sentem. Porque sabem do saber de
dentro de cada pessoa. E sabem que Marielle tinha denunciado a violência
policial um dia antes de ser executada.
Já escrevi que Marielle pode ser
o símbolo para uma explosão no Brasil. O fim da linha para os golpistas – os
tais que estiveram sempre à espreita, descontentes com a democracia –
empenhados em destruir o sonho de um Brasil para todos, de um Brasil onde um
operário chegou a Presidente e onde uma favelada negra chegou a vereadora.
E nós?
A morte de Marielle foi objeto de
um voto de pesar unanime na Assembleia da República. Sabemos, no entanto, que à
escala portuguesa, entre o Brasil imerso num golpe e vários países europeus a
darem mostras de xenofobia, nacionalismo e de racismo, estamos longe de sermos
unânimes na exclamação de que todas e todos são iguais.
Todas e todos. Todas e todos são
iguais e têm os mesmos direitos independentemente da sua “raça”, orientação
sexual, sexo, etc. O nosso Estado de direito visa a realização económica,
social e cultural.
E, no entanto. Tantas “visões”,
não é?
Qual é o teu compromisso?
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