segunda-feira, 12 de março de 2018

Relações de intimidação: Austrália, Timor-Leste e recursos naturais


Binoy Kampmark [*]

"A Comissão optou ao invés pela saída mais fácil, a qual é uma vergonha pois na minha percepção revela a sua própria falta de imparcialidade!" - Xanana Gusmão, negociador chefe de Timor-Leste, 28/Fev/2018

Na lógica das coisas, a Austrália foi delegada como capataz regional das potências imperiais desde o momento em que se tornou um posto avançado do império britânico. Os estados vizinhos têm sido ridicularizados e zombados como se fossem constituídos por sub-humanos e incapazes. A expressão "estado falhado" ainda é utilizada em círculos de poder de Camberra em relação a casos desesperados. Não é de admirar que a China pressinta uma reputação tortuosa.

É nesse estado de espírito que teve lugar a assinatura de um acordo entre a Austrália e Timor-Leste para demarcar fronteiras marítimas. Oficialmente, havia sorrisos, mesmo tapinhas na costa. O comunicado de imprensa de 7 de Março da ministra dos Negócios Estrangeiros, Julie Bishop, transmite este momento de falsa elevação:

"O tratado é um acordo histórico que abre um novo capítulo no nosso relacionamento bilateral. Ele estabelece fronteiras marítimas permanentes entre nossos países e proporciona desenvolvimento e gestão conjunta dos campos de gás Great Sunrise".

A narrativa por trás desta fricção premente era mais problemática. Ambos os países haviam, afinal de contas, atingido este ponto depois de alegações de espionagem terem ameaçado afundar as conversações. Aquelas alegações referiam-se a esforços por parte do Australian Secret Intelligence Service de espionar delegados timorenses durante as negociações de 2006 do CMATS (Certain Maritime Arrangements in the Timor Sea). No que se refere à divisão das receitas – nesse caso, o campo de gás Greater Sunrise no Mar de Timor – os espectros continuarão.

Os pontos centrais do contencioso histórico entre os estados são os tradicionais: recursos naturais e como melhor aproveitá-los. Nenhum dos dois podia concordar sobre quem teria acesso às reservas de petróleo e gás no Mar de Timor. O imbroglio político teve sua origem no Tratado Timor Gap assinado em 1989 entre a Austrália e a Indonésia quando a cleptocracia do presidente Suharto, para não mencionar a brutal repressão de Timor Leste, foram considerados assuntos aceitáveis de realpolitik.

A subsequente libertação de Timor-Leste deixou o estado nascente numa situação perigosa, próxima da morte. A Indonésia e a Austrália continuavam a partilhar os recursos do Timor Gap numa alegre festa glutona até a assinatura do Tratado do Mar de Timor. O documento tinha uma deriva gritante: a falta de uma fronteira marítima determinada e permanente. O CMATS, o qual Timor-Leste rasgou devidamente, permitir uma divisão igual das receitas, mas adiava da mesma forma a discussão de uma fronteira marítima.

Foi central para a estratégia de Timor-Leste uma determinação de fazer isto de acordo com o direito internacional. Timor-Leste argumentou em favor de uma fronteira marítima que ficasse a meio caminho entre o seu país e a Austrália, que seguisse sua plataforma continental. O Tribunal Permanente de Arbitragem e os Comissários da Conciliação estiveram devidamente empenhados em aplicar a Convenção da ONU sobre a Lei do Mar. A Austrália subsequentemente celebrou o resultado como "a primeira conciliação de sempre sob o UNCLOS".

Apesar de estudantes de direito internacional louvarem o resultado, a dimensão política demonstrou-se mais feia. O negociador chefe de Timor-Leste e Xanana Gusmão, a versátil figura da resistência, fustigou a Austrália e os Comissários numa carta à Comissão de Conciliação.

A Comissão, argumentou ele, era ignorante em assuntos timorenses. O "perito técnico escolhido não tinha a experiência apropriada ou o entendimento do trabalho em Timor-Leste ou no contexto de um país em desenvolvimento semelhante". Suas avaliações sobre "benefícios potenciais para a população de Timor-Leste" foram "chocantemente superficiais", um ponto que só beneficiou a Austrália.

Gusmão também tinha outra queixa: os negociadores australianos aparentemente haviam sido escolhidos pelos peso-pesados da indústria extractiva, a Woodside Petroleum e a Conoco Philips. "A sociedade civil poderia potencialmente perceber isto como uma 'forma' de conivência entre o Governo da Austrália e a Darwin LNG Partners e/ou a Sunrise J".

Que os responsáveis de Timor-Leste devessem arvorar suspeitas obstinadas é não só entendível como sagaz. Negociar com repressivos e sanguinários militares indonésios foi bastante penoso. Mas chegou então ao conhecimento internacional o regime brutal que operava no Timor-Leste, o conhecimento que vinha de certa forma associado à cumplicidade activa. Conversações fraternais tendem a ser falsificadas no mercado da geopolítica.

O relatório de 2500 páginas da Comissão para a acolhida, verdade e reconciliação em Timor-Leste , entregue pelo então presidente Gusmão ao parlamento nacional em Novembro de 2005 mencionava centenas de documentos reveladores anteriormente classificados pelos EUA e Grã-Bretanha. Eles mostravam a aprovação tácita tanto dos EUA como da Grã-Bretanha à invasão de Timor-Leste em 1975 e ao status quo até 1999, período durante qual morreram cerca de 100 mil timorenses.

Houve mesmo exemplos de responsáveis indonésios a mostrarem interesse, como declara um memorando do Conselho de Segurança Nacional ao secretário de Estado Henry Kissinger, "em saber a atitude americana em relação ao Timor português (e, por implicação, nossa reacção a uma possível tomada de controle indonésio)". Eles não foram desapontados.

Ainda em 2014, o governo australiano fez consideráveis esforços para impedir a divulgação de ficheiros referentes ao conhecimento de Canberra de deslocações de tropa indonésia durante a ocupação. De sensibilidade particular foram as operações conduzidas no fim de 1981 e princípio de 1982, as quais acabaram num massacre previsível. Numa decisão do Tribunal Administrativo de Recursos a concordar com o governo, o presidente Duncan Kerr afirmou com absurdo kafkiano que ele tinha de "exprimir conclusões as quais sou incapaz de explicar".

O que a justiça revelou foi um petisco tentador acerca da intimidação regional a que Timor-Leste foi sujeita às mãos de assassinos e ocasionalmente potências cúmplices. Evidência submetida ao Department of Foreign Affairs and Trade [da Austrália] revelou uma certa insistência por parte das autoridades dos EUA em 2013 pretendendo que "o governo australiano continue a restringir acesso... a quatro documentos" com "sensibilidades em curso".

Timor-Leste permanece um estado precário. Está empobrecido. Apesar de tudo, a preferência australiana continua determinada e exploradora. A questão sobre onde o petróleo e o gás serão processados continua como um incómodo assunto melindroso. Canberra prefere que a tubagem tenha lugar através de Darwin, com o incentivo de uma receita de 80 por cento para Timor-Leste.

Isso dificilmente é aceitável para Dili, a qual considera valiosa ter a instalação de processamento em Timor-Leste, onde um "centro petrolífero" está a ser desenvolvido. Com esse objectivo, está mesmo disposta a aceitar um corte de receita em favor da Austrália. As maquinações do poder e o lobby australiano do petróleo ainda podem desfazer estes acordos. A intimidação regional continua a renascer. 

[*] Foi académico da Commonwealth no Selwyn College, em Cambridge. Dá aulas na RMIT University, em Melbourne. Email: bkampmark@gmail.com 

O original encontra-se em countercurrents.org/... 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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