O que se diz quando se sai à rua
para defender um homem preso? Pode dizer-se isto: “Uma pessoa que fala em nome
do povo e dos trabalhadores e faz tudo em nome deles é um anti-herói”. Ou isto:
“Só um psicopata pode dizer que ele é culpado de alguma coisa”. E ainda: “Ele
não é um santo como ninguém é um santo”. Ou por exemplo: “Às vezes, uma foto
que a gente publique aqui em Lisboa com 10 manifestantes circula no Brasil e
tem um milhão de visualizações”. Afinal, o que aconteceu esta quarta-feira
junto à embaixada do Brasil em Portugal?
Manuel Albuquerque, 62 anos, é
professor em Pernambuco mas está de baixa médica porque quase perdeu a voz de
tanto gritar por Lula da Silva. Aproveitou essa pausa no trabalho para visitar
a filha e a neta que vivem em Lisboa e para participar no protesto realizado
esta quarta-feira junto à embaixada do Brasil, organizado pelo Conselho
Português para a Paz e Cooperação (CPPC) e apoiado por dezenas de organizações
políticas e da sociedade civil, incluindo representantes da comunidade
brasileira. Deixou por alguns minutos o lugar que ocupava entre as dezenas de
pessoas reunidas de frente para o palco destinado a receber alguns
intervenientes e começa a explicar ao Expresso o que o traz aqui. E o que traz
aqui é a certeza de que o ex-presidente brasileiro Lula da Silva, detido desde
sábado na sede da Polícia Federal de Curitiba, “está a ser alvo de uma
perseguição política” que tem como objetivo impedir a sua “vitória certa” nas
eleições presidenciais previstas para outubro. “Aqueles que estão agora no
poder não aguentavam perder uma quinta eleição e não é à toa que este golpe
está a acontecer. Ele já vinha sendo preparado devagarinho. Eles têm vindo a
forçar a barra para tomar poder e, como não conseguiram tomar com votos,
tomaram a pulso.”
Manuel Albuquerque tem estado com
um cartaz branco na mão onde se lê as palavras “Lula Livre” escritas a tinta
vermelha e é precisamente isso que defende, recorrendo aos mesmos argumentos
que têm sido usados pela defesa do antigo presidente brasileiro: considera que
a condenação de Lula da Silva a 12 anos e um mês de prisão por corrupção
passiva e branqueamento de capitais não tem base legal e que a prisão vai
contra a presunção de inocência garantida na Constituição, havendo ainda
recursos a apresentar junto da Justiça. “Temos de esgotar todas as instâncias”,
diz o professor brasileiro, apontando o dedo ao ideário que, no seu entender,
motivou e sustenta a prisão de Lula. “Eles não estão preocupados com a
corrupção. Ela paira em qualquer parte do planeta e deve ser punida. Eu concordo
com isso plenamente. Mas tem sido usado o jargão da luta contra a corrupção e
isso não é verdade. A corriola de bandidos que acompanha o presidente Michel
Temer tem 'ene' processos acumulados e não há uma só repreensão do poder
jurídico para colocá-los definitivamente na cadeia. Já Lula foi preso por causa
de um apartamento que nem sequer era dele.”
Manuel Albuquerque usa a
expressão “pandemónio armado” para descrever a situação que se vive hoje no
país. “Sei bem o que sofri na pele por causa de regimes ditatoriais. Acompanhei
o fim da ditadura e o princípio da democracia. O que temos hoje é um pandemónio
armado e um governo sem voto e ilegítimo, e forças externas a quererem entregar
o Brasil e as suas riquezas ao capital internacional.” O professor não vê a
hora de voltar ao seu país, não por apego ou dever profissional, mas para se
juntar aos apoiantes de Lula que continuam sem arredar pé das imediações da
sede da Polícia Federal de Curitiba, no estado do Paraná, onde Lula da Silva se
encontra detido e onde permanecerá até a providência interposta pelo Partido
Ecológico Nacional, que questiona a legalidade da prisão em segunda instância
sem o condenado esgotar todas as instâncias de recurso, ser discutida no
Supremo Tribunal Federal. “Assim que chegar, vou de imediato para lá. São três
horas de avião mas tenho de ir. Para quem tanto acompanhou os sindicatos, não
posso fingir que isto não está a acontecer. É preciso mostrar solidariedade,
não tem outra saída.”
LULA “NÃO É UM SANTO COMO NINGUÉM
É UM SANTO”
Com Manuel Albuquerque está a sua
filha, Daniela, de 34 anos, que diz procurar neste encontro de apoiantes de
Lula da Silva “uma luz ao fundo do túnel”. “Temos de tentar fazer alguma coisa
mesmo estando longe.” Natural de Recife, Daniela chegou a Portugal em março
deste ano e, ao contrário do pai, não tenciona voltar para o Brasil nos
próximos tempos. “Vim para aqui para tentar dar uma vida melhor e mais segura
às minhas filhas. A gente foge de lá por isso, porque não tem segurança nem
saúde nem educação. Pagava mil reais para ter a minha filha no infantário e
quatro reais, quase um euro, por um litro de leite. Aqui ao menos sei que vou
ter um salário”, diz, apontando para a criança pequena de olhos rasgados ao seu
lado que observa tudo com ar de novidade enquanto vai metendo pipocas à boca.
“Tenho a certeza que se eu fosse pequena e os meus pais tivessem a idade que eu
tenho eles fariam o mesmo por mim e viriam para aqui ou para outro lugar
qualquer.”
As críticas explícitas de Daniela
têm um alvo muito específico e esse alvo é o governo de Michel Temer, “que veio
acabar com as leis de proteção dos trabalhadores”. “Tudo era melhor quando Lula
era presidente porque a inflação estava controlada. Agora maquilham as
informações que passam para fora. De uma hora para a outra, tudo complicou.”
Sobre a detenção conturbada do antigo presidente brasileiro, começa por dizer
que ele “não é um santo como ninguém é um santo”, mas que isso não é razão para
ser condenado sem provas. “Eu sou a favor do Lula e votei Lula e votarei Lula,
mas acho que isto é uma questão apartidária. A justiça não pode ser feita
apenas para um lado. Se ele tem de responder, os demais também têm.”
Francisco Cabrita, reformado
português de 63 anos, concorda sobre a não santidade de Lula e diz mesmo que
“não há nenhum dirigente de nenhum país que esteja completamente limpo”. No
entanto, não concorda com a forma como o processo tem sido conduzido e é por
isso que está aqui hoje. “Não se decide de boca que alguém é corrupto e por
isso que, enquanto não for provado, vou continuar a acreditar em Lula. Estou
aqui para manifestar a minha solidariedade para com o povo brasileiro”, diz
Francisco, para quem o antigo presidente brasileiro é um “anti-herói” e não o
seu contrário. “Uma pessoa que fala em nome do povo e dos trabalhadores e faz
tudo em nome deles é um anti-herói. Ele nunca se gabou pelo que fez.”
“UM PROCESSO ANTIDEMOCRÁTICO QUE
VAI CONTRA AS CONQUISTAS DO POVO BRASILEIRO”
Eco de todas estas palavras faz
Filipe Ferreira, vice-presidente da direção-nacional do Conselho Português para
a Paz e Cooperação (CPPC), que organizou a iniciativa. “Reconhecemos que há um
processo antidemocrático que vai contra as conquistas do povo brasileiro.
Primeiro assistimos à tentativa de afastar Dilma Rousseff do poder e agora à
tentativa de impedir a candidatura de Lula da Silva por processos que vão
contra as próprias leis brasileiras e a Constituição nacional” diz ao Expresso
o vice-presidente.
O encontro desta quarta-feira
tarde foi organizado no seguimento de uma outra iniciativa do CPPC na
sexta-feira passada, também em frente à embaixada brasileira e quando foi
confirmada a ordem de prisão de Lula da Silva. Nesse protesto foi entregue um
manifesto na embaixada que “repudia o golpe institucional”, manifestada “viva
solidariedade ao povo irmão brasileiro e à sua luta para salvaguardar os
direitos e garantias democráticas” e feito um apelo à resistência “a um poder
crescentemente repressivo e autoritário”.
O manifesto foi lido esta
quarta-feira perante dezenas de pessoas enquanto subiam ao palco, para breves
intervenções, representantes de alguns dos 44 atuais subscritores, entre eles
Solange Pereira da Juventude Operária Católica (JOC), Rita Rato, deputada do
PCP, Pedro Noronha, da Associação de amizade Portugal-Cuba, Kaoê Rodrigues, de
uma associação de estudantes da Universidade Nova, Joaquim Correia, do partido
Os Verdes, Evones Santos, coordenadora do PT brasileiro em Lisboa, e Arménio
Carlos, secretário-geral da CGTP.
Filipe Ferreira diz acreditar que
manifestações como a desta quarta-feira podem resultar em mudanças concretas e
é também essa a opinião de Samara Azevedo, do Coletivo Andorinha, também
promotor da iniciativa. “A pressão internacional reverba bastante no Brasil. O
que acontece lá tem um grande impacto no mundo inteiro e vice-versa. Há essa síndrome,
a chamada síndrome de vira-lata, que é achar que tudo o que vem de fora é
melhor do que o que vem de dentro. O nosso papel enquanto coletivo acaba por
ser muito imagético. Às vezes, uma foto que a gente publique aqui em Lisboa com
10 manifestantes circula no Brasil e tem um milhão de visualizações.”
“SÓ UM PSICOPATA PODE DIZER QUE
ELE É CULPADO DE ALGUMA COISA”
Maria Oliveira, brasileira
reformada de 60 anos, parece ter saído diretamente de uma das várias
manifestações de 2016 contra o impeachment de Dilma Rousseff, no Brasil. É ela
que faz questão de assinalá-lo ao exibir a t-shirt que usou num desses eventos
e que tem gravada a frase “em defesa da democracia, resistir é preciso!”,
escrita em letras brancas sobre o tecido de uma cor, vermelha, que combina com
a bandolete que usa para segurar o cabelo e que tem a forma de um laço - numa
aba lê-se “Lula” e na outra “Livre”. “Estou aqui para defender a democracia e
principalmente Lula da Silva, que foi condenado injustamente. Prender com base
em suposições e convicções é errado. Só um psicopata pode dizer que ele é
culpado de alguma coisa. Há quatro anos que vasculham a vida dele e não
descobriram nada. Boto a minha mão no fogo por ele.”
Lula da Silva tem o amor de parte
povo devido às suas políticas de apoio social mas Maria Oliveira acha que o que
incomoda mesmo à direita brasileira - e que “justifica” o que está a acontecer
agora - é a sua “astúcia, carisma e inteligência”. “Para mim, tudo isto tem que
ver com o ódio invejoso em relação a um cara que veio de nordeste na boleia de
um pau de arara [meio de transporte ainda utilizado naquela região brasileira,
vulgo carrinha de caixa aberta] e que ganhou duas eleições. Saiu do governo com
mais de 80% de aprovação. Eu não conheço todos os presidentes do mundo, mas
duvido que haja algum que tenha deixado o cargo com uma percentagem de
popularidade superior.” Sublinhando não ser “necessário” enumerar todas as
“medidas positivas” de Lula, visto estar “tudo no Google”, Maria Oliveira
realça apenas como a “estabilidade económica do Governo Lula” lhe permitiu e à
sua família “ter casa e carro”. “A minha vida transformou-se nessa altura.”
Tal como Manuel Albuquerque,
Maria Oliveira vê na condenação e detenção de Lula da Silva uma tentativa da
direita de impedir a candidatura do antigo presidente brasileiro às próximas
eleições. “Se tirarem Lula da corrida eleitoral conseguem tirar o PT”, diz a
reformada, aludindo à ausência de um sucessor à altura de Lula ou da sua
popularidade dentro do Partido Trabalhista, o que complicará a vida do partido
caso o antigo presidente brasileiro acaba mesmo impedido de se candidatar por
força da lei da ficha limpa, aprovada durante o seu mandato e que diz que
nenhum político condenado por crimes contra o Estado em segunda instância pode
candidatar-se a cargos públicos.
“SEI O QUE OS MEUS PAIS PASSARAM
E NÃO QUERO ISSO PARA OS OUTROS NEM PARA MIM”
“Quanto mais tempo passa mais eu
acredito que foi tudo forjado”, diz a mulher brasileira sentada ao lado,
Silvana Almeida, que chegou a Portugal em 2001 e é cozinheira num restaurante.
Ao Expresso, explica por que razão decidiu participar no protesto desta tarde.
“Temos de fazer alguma coisa. Ninguém faz mudanças sentado no sofá. É preciso
vir para a rua. Saí do Brasil antes de Lula ser presidente porque não havia
trabalho. Via anúncios de emprego no jornal e quando chegava ao local havia
gente na fila há mais de quatro horas. Com Lula, a situação melhorou e agora
voltou a piorar novamente.”
Lis Araújo, a sua filha, tinha
apenas quatro anos na altura mas lembra-se, por exemplo, de “querer um boneco”
e os pais não terem dinheiro para o comprar. Diz ao Expresso que a vida dos
primos que ficaram no Brasil “melhorou” com Lula da Silva, mas também a sua, já
em Portugal. “Antigamente, o Brasil era país posto um bocado de parte. Quando
chegámos, o processo de legalização foi difícil. Lembro-me perfeitamente de
andar a saltar de consulado em consulado com os meus pais, mas com Lula isso
tornou-se muito mais fácil. Ele conseguiu abrir as fronteiras do Brasil e
mostrar que o país estava aberto a relações diplomáticas.” Com 20 anos, Lis
Araújo diz saber ser demasiado “nova” para argumentar a favor de Lula como o
fazem os seus pais e outros familiares, mas esforça-se por ouvir, perceber “o
que está para trás” e lutar, como hoje. “Sei o que os meus pais passaram e não
quero isso para os outros nem para mim.”
Helena Bento | Expresso
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