Há 50 anos era morto a tiro em
Memphis, Tenessee, Martin Luther King, líder histórico da luta pelos direitos
civis. Tal como sucedeu com o Presidente Kennedy, as circunstâncias da morte
levantaram suspeitas de conspiração. Seguiu-se um verão marcado por violentos
motins raciais nalgumas das maiores cidades norte-americanas
O sonho do pregador Martin Luther
King, expresso no famoso discurso proferido junto ao Capitólio a 28 de agosto
de 1963, após a Marcha sobre Washington, era de que um dia os seus filhos
“fossem julgados não pela cor da pele mas pela força do seu caráter”. Foi para
matar esse sonho que, há 50 anos, no dia 4 de abril de 1968, foi disparado um
tiro de espingarda de precisão que atingiu King na cabeça quando estava à
varanda do seu quarto no Motel Lorraine em Memphis. Deslocara-se à cidade para
apoiar a greve do pessoal dos serviços de limpeza.
Impressões digitais e outros
vestígios encontrados no local do crime, corroborados por testemunhos, apontavam
como principal suspeito James Earl Ray, homem de tendências racistas e com
historial de crimes violentos. Depois de uma fuga rocambolesca com passaporte
falso que incluiu uma passagem por Lisboa, Ray viria a ser detido no aeroporto
londrino de Heathrow e extraditado para os EUA. Foi considerado culpado e
condenado a prisão perpétua, tendo morrido em cativeiro.
Contudo, tal como após o
assassínio de John Kennedy, multiplicaram-se indícios de que o atirador poderia
não ter agido sozinho no quadro de uma conspiração mais vasta. Diversas
investigações do Departamento de Justiça, a última das quais de 2000, não deram
substância a estas suspeitas. Contudo, o papel do FBI é complexo. Vigiava
sistematicamente King, considerado suspeito de proximidade com comunistas e
radicais negros e, a partir de escutas telefónicas e violação de
correspondência, fabricava dossiês contra ele que incluíam o empolamento de
casos de adultério, visando chantageá-lo, senão levá-lo ao suicídio. Em
contrapartida, o mínimo que se pode dizer é que o FBI, então ainda dirigido por
Edgar Hoover, não teve o mesmo esmero a proteger King do que a espiá-lo.
Além do mais, Martin Luther King,
militante pelos direitos civis e Prémio Nobel da Paz de 1964, tinha entrado em
rota de colisão com os seus aliados democratas na Casa Branca, nomeadamente o
Presidente Johnson, após ter feito um discurso de condenação da Guerra do
Vietname um ano antes (4 de abril de 1967) em Nova Iorque, intitulado “é tempo
de quebrar o silêncio”.
A história de King começara em
1955, quando liderara o boicote aos transportes públicos segregados em
Montgomery, Alabama, iniciados quando uma mulher negra, Rosa Parks, se sentara
nos bancos dos autocarros reservados a brancos e recusara ceder o lugar,
acabando na prisão. Seguiu-se, em 1962, a luta contra a segregação em Albany,
Georgia, e os protestos pacíficos de 1963 em Birmingham, Alabama, sendo o ponto
alto da sua ação a marcha sobre Washington de 1963, cenário do famoso e já
referido discurso.
UM CORAÇÃO DESTROÇADO
Seguro é que King era um homem
dilacerado. Era um adepto incondicional da não-violência e apostava na
desobediência civil mas esta via parecia muitas vezes posta em causa pelo grau
extremo da repressão de que eram alvo as comunidades negras. Ao mesmo tempo era
acusado de tibieza pelos radicais do Black Power e foi incapaz de repetir nos
guetos negros das cidades do Norte o sucesso que tivera nos estados racistas do
Sul, onde mobilizara a população negra em massa.
Perdera o apoio da Casa Branca e
dos grandes media quando ousara distanciar-se do envolvimento militar no
Vietname. Tinha verdadeiramente o coração destroçado quando morreu. O relatório
da autópsia fala num estado de saúde mais próprio de um septuagenário que de um
homem de 39 anos.
Não deixa de ser irónico, como
sublinha a historiadora francesa Sylvie Laurent na edição de março da revista
francesa “L’Histoire”, que nos seus últimos anos de vida Martin Luther King se
tenha aproximado dos ativistas do Poder Negro, não nos métodos, uma vez que foi
sempre fiel ao ideal da não-violência, mas nas ideias, à medida que evoluía da
luta pelos direitos constitucionais para a luta social e a oposição ao
militarismo e à guerra.
Se King foi a face mais visível
do combate à discriminação racial, esta teve múltiplos protagonistas, dos mais
anónimos aos mais radicalizados. O que ele conseguiu fazer foi, pela sua
eloquência e pelo seu exemplo moral, abalar a indiferença da opinião pública
norte-americana num momento decisivo.
Como sublinhou Britta
Waldschmidt-Nelson, professora da Universidade de Augsburgo, nas páginas da
edição de abril da revista britânica “History”, enquanto em 1950 só havia
televisão em 9% dos lares americanos, dez anos depois a percentagem
invertia-se. As imagens de polícias do Sul espancando manifestantes pacíficos
passavam a entrar pelas casas adentro e era impossível ficar indiferente ao que
se passava em Selma ou Albany. E entravam em cena os satélites de comunicações,
como o Telstar, que permitiram que mesmo algum público europeu pudesse assistir
em direto ao famoso discurso “tenho um sonho” em 1963.
MOTINS RACIAIS E NOVAS LEIS
Não sabemos como teria sido a
luta pelos direitos civis se King tivesse continuado vivo ou sequer se a sua
saúde lhe tivesse permitido viver muito mais. Mas é inegável que marcou o
século XX norte-americano. À sua morte seguiram-se motins raciais em cidades
como Washington, Chicago ou Baltimore que se prolongaram durante todo o verão.
Mas houve também, dois dias depois do crime, a aprovação pelo Congresso de uma
terceira lei dos direitos civis (a primeira fora em 1964 e a segunda,
especificamente sobre o direito de voto, no ano seguinte), proibindo a
discriminação racial em matéria de acesso ao alojamento.
Com a eleição de Richard Nixon,
no final de 1968, e o regresso dos republicanos ao poder, a situação das
comunidades afro-americanas evoluirá de forma paradoxal. Estendem-se pontes aos
moderados, ao mesmo tempo que se reprimem, inclusivamente através da eliminação
física, os líderes radicais, nomeadamente dos Panteras Negras. Terminam as
incorporações para a Guerra do Vietname (que tinham incidência desproporcionada
entre os mais pobres) e inicia-se o processo de ascensão social de uma nova
classe média negra, ao mesmo tempo que o número de afro-americanos eleitos para
cargos públicos ou com acesso ao funcionalismo terá um crescimento sem
precedentes nos anos 70. Contraditoriamente com isto, o lançamento da chamada
guerra à droga por Nixon vai aumentar os níveis de violência nos guetos.
Esse processo agravar-se-á nos
anos 80, na época de Reagan, com a difusão do crack, a cocaína dos pobres, para
a qual também contribuiu uma teia de relações perigosas entre a CIA, as
milícias antisandinistas na Nicarágua e traficantes latino-americanos de droga.
As armas, compradas secretamente ao Irão, apesar de então este ser
arqui-inimigo dos EUA, eram enviadas em voos da CIA para a Nicarágua e
fornecidas às milícias ultra-direitistas que combatiam o governo sandinista de
esquerda radical que derrubara o ditador Somoza. A operação era em parte
financiada pela introdução de droga nas cidades norte-americanas (nomeadamente
cocaína e crack), transportada de volta para os EUA nos aviões fretados pela
CIA para levar armas para a Nicarágua. Isso foi sancionado pelo Congresso no
quadro do chamado escândalo Irão-Contras, nomeadamente a partir de um relatório
elaborado pelo senador John Kerry, mais tarde secretário de Estado de Obama.
A dinâmica de violência associada
ao consumo, tráfico e repressão da droga contribuiu para um processo de
criminalização da pobreza, designadamente entre as comunidades afro-americanas
que, embora com diversos cambiantes, chegou aos nossos dias.
Rui Cardoso | Expresso
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