José Soeiro | Expresso | opinião
Não sou dos que possa dizer,
serenamente, que lido bem com a morte. Há para mim, no fim da existência física
- da nossa e da de quem amamos – qualquer coisa de angustiante. Por mais
natural que seja – e é. Por mais que conviva diariamente com pessoas que já
morreram – que conversam comigo através do que escreveram e nos deixaram, ou
que me aparecem nos sonhos e me fazem acordar com a sensação de que estive
mesmo com elas, ou de quem me lembro durante o dia por um motivo ou outro.
A forma como ando a aprender a
lidar com a morte interessa pouco para o que escreverei a seguir. O apego à
vida não é uma ideia abstrata. A própria vida, a nossa em primeiro lugar, não é
uma ideia abstrata. Na próxima terça-feira serei chamado a pronunciar-me, tal
como todas as deputadas e todos os deputados sobre os projetos que preveem a
despenalização da morte assistida. Votarei a favor. Por quatro razões.
A primeira é que defendo a
dignidade da vida como bem essencial e não tenho sobre os meus concidadãos a
arrogância de achar que sei mais sobre a dignidade da sua vida do que os
próprios sabem sobre o que de mais precioso têm. O direito à vida não passa,
para mim, pela imposição autoritária e sem critério de uma obrigação de viver
em qualquer circunstância. Não me vejo, por ser deputado, como dono da
consciência dos outros.
A segunda razão é que as
propostas em cima da mesa são cuidadas, sensatas e muitíssimo prudentes. Por
isso, quanto mais me atiram à cara os argumentos baseados no medo e na mentira,
mais convicto fico de que o medo e a mentira não podem levar a melhor. De que
falo? De agitarem fantasmas segundo os quais se poderia estar a abrir a porta à
eugenia, ou segundo os quais doentes crónicos, pessoas com demência ou doentes
psiquiátricos podiam estar a ser “empurrados” para a morte assistida por razões
mercantilistas. Sejamos muito claros: nas leis propostas, uma demência, uma
doença crónica ou uma doença psiquiátrica não são condições suficientes para a
antecipação da morte, muito menos ser-se velho e socialmente vulnerável. Nos
projetos, a eutanásia por motivos fúteis, ou de doentes mentais, é considerada
um crime. O que se pretende despenalizar é a morte assistida sempre que haja a
combinação de quatro coisas: um diagnóstico de doença incurável e fatal ou
lesão definitiva; um prognóstico de que essa doença é incurável e fatal; um
estado clínico de sofrimento duradouro e insuportável; um estado de consciência
que demonstre a plena lucidez e capacidade da pessoa entender o alcance do
pedido. É sobre isto, e apenas sobre isto, que serei, como os outros deputados,
chamado a votar.
A terceira razão é que, além do
respeito que me merecem os outros, que não são menos capazes do que eu para
decidir sobre si naquelas circunstâncias, parece-me ridículo, absurdo e cruel
atribuir 3 anos de prisão, como a lei prevê, a um médico ou a um familiar que
responda positivamente a um derradeiro pedido de quem ama ou de quem cuida,
naquelas circunstâncias. Não falo no abstrato. Como quase toda a gente, já
assisti ao processo final de pessoas próximas. Já me disseram que gostavam de
poder pôr fim a tanto sofrimento – e francamente, achei cruéis e inúteis
aqueles dias a mais em estado de pura aflição. Já convivi com casos de amigos
que, doentes, preferiram ir para outro país no fim da sua vida vida pelo facto
de em Portugal ser crime antecipar a morte. O que fazer, pois, perante um
pedido de ajuda reiterado nestas circunstâncias? O leitor (e a leitora) sabe de
antemão o que faria? Mesmo? E é capaz de julgar? Mesmo?
Esta, como outras, não é a causa
de um partido, atravessa convicções várias, religiosas e políticas. Mas nesta
como noutras questões tem havido sempre dois campos. Os que privilegiam a
autonomia e a autodeterminação e consideram que a vida é uma realidade
concreta. E os que utilizam sempre os mesmos argumentos, segundo os quais
reconhecer às pessoas capacidade de decidir é desistir sobre o apoio que deviam
ter (um argumento falso, usado até à náusea na questão do aborto para impedir a
escolha e que agora ressurge, até, lamentavelmente, pela mão de quem os
rejeitou naquela altura); e segundo os quais sobre a vida de cada um não é a
cada um que cabe decidir, mas ao Estado ou à Igreja. Não aceito, agora como no
passado, ser cúmplice desses argumentos. Sei em que campo estou: quero uma
sociedade capaz de respeitar e de reconhecer a escolha mais difícil de todas,
sem imposições, sem obrigar as pessoas a esconder-se, sem somar mais
perseguição ao sofrimento, sem a crueldade da arrogância.
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